Escritor mineiro Bruno Nogueira fala sobre seu romance de formação que explora política, amizade e a importância de ouvir o outro
Publicado pela editora Kotter, Grito Distante mergulha em temas como crescimento pessoal, eventos históricos recentes e a complexidade das relações humanas
O escritor e doutorando em estudos literários mineiro Bruno Nogueira acaba de lançar seu mais recente romance, Grito Distante, pela editora Kotter. O livro, que se enquadra no gênero de romance de formação, acompanha a trajetória de um jovem que cresce em meio a um cenário político turbulento, refletindo sobre amizade, política, arte e a importância de ouvir o outro.

A narrativa, repleta de elementos autobiográficos, se passa em cidades reais como Lagoa da Prata, Uberaba e Curitiba, e aborda eventos históricos recentes, como as manifestações de 2013 e o “Massacre dos Professores”, em Curitiba. Com uma estrutura narrativa inovadora, o livro explora a voz e a distância como temas centrais, destacando a necessidade de superar barreiras e praticar a alteridade.
O romance vai além da simples narrativa de crescimento pessoal. Bruno mergulha em temas como a polarização política, a depressão, o suicídio e a importância da arte como ferramenta de transformação. O personagem principal, Treino, vive em um ambiente onde amigos e familiares se dividem entre visões políticas opostas, enquanto ele tenta encontrar seu lugar no mundo. A amizade com Rodrigo, um personagem que lida com questões profundas como o HIV e a depressão, é um dos pilares da história, mostrando como o afastamento e o reencontro podem moldar vidas.
Bruno Nogueira é escritor, tradutor e doutorando em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Nascido em Lagoa da Prata, Minas Gerais, ele vive atualmente entre Uberaba e Curitiba. Além de Grito Distante, Bruno é autor da coletânea de contos A Síndrome do Impostor e roteirista do podcast First Life. Sua trajetória profissional inclui passagens como professor de inglês, tradutor de artigos científicos e editor de textos acadêmicos. Com uma escrita marcada pela profundidade e pela busca por formas narrativas que se adequem ao conteúdo, Bruno Nogueira se consolida como uma voz importante na literatura contemporânea brasileira.

Confira a entrevista:
Seu livro aborda um período de formação pessoal e política do protagonista em meio a um ambiente polarizado. Como essa turbulência política influencia a jornada do personagem?
É um romance de formação, e então o foco está no crescimento e amadurecimento do personagem principal, e o livro busca discutir como o crescimento num ambiente tão politicamente tumultuado pode influenciar o desenvolvimento de alguém. Treino, que é o narrador, cresce cercado de pessoas que vão se radicalizando cada vez mais politicamente, algumas para a esquerda e outras para a direita, e isso afeta sua visão de mundo. Além disso, eu tento trabalhar com a maneira como questões políticas e sociais afetam as relações pessoais de alguém. Na infância e na adolescência, especialmente, a escola e os familiares mais próximos são responsáveis por moldar muitas das decisões de uma pessoa, e vão afetar a relação de Treino e Rodrigo, seu amigo mais próximo, quando Rodrigo descobre seu interesse por outros homens. O objetivo é pensar em como o machismo e a homofobia que reinavam naquela escola, na década de 2010, vão afetar a vida desses dois amigos e desafiar a sobrevivência dessa amizade. Mais a frente, essas personagens ainda vão passar por inúmeros eventos políticos, desde as jornadas de junho de 2013 até a invasão do palácio do planalto em 2023 — da qual um personagem participa —, passando por diferentes presidentes, golpes, manifestações, e mesmo pela pandemia, enquanto diferentes personagens lidam com o HIV, a depressão, o suicídio e a culpa.
A ideia é retratar esse processo de aprendizado político e social, influenciado por questões profundamente pessoais com as quais Treino lida graças às pessoas com quem se relaciona, e associada a um desenvolvimento de seu amor pela arte (especialmente o teatro). Isso no que diz respeito aos acontecimentos envolvendo o personagem principal.
A voz e a distância são temas centrais no livro. Como esses elementos aparecem na narrativa e qual a relação deles com a escuta e o diálogo?
A expressão “grito distante” aparece num momento em que um personagem tenta de fato ultrapassar a distância que separa ele do outro com um grito, e isso já diz tudo. Termos relacionados a “som” e “distância” aparecem muito, especialmente em relação a sentimentos e relações pessoais, envolvendo a ideia de que “ouvir” o outro é uma maneira de diminuir a distância entre as pessoas. Existem também algumas questões formais, como os momentos em que coloquei parágrafos, e cenas específicas associadas a esse tema, mas isso eu prefiro deixar para o leitor descobrir.
Esse pensamento da importância do ouvir também veio de uns lugares mais complicados, tipo alguns textos de Emmanuel Levinas, que é um filósofo francês — e eu prometo que no livro eu não saio por aí citando filósofos (muito), só menciono o Levinas aqui porque foi um dos autores que me fez refletir sobre isso. Ele propõe que a única forma de ultrapassar a distância infinita que nos separa dos outros é a linguagem, o ouvir o outro, e que seria impossível a gente simplesmente pegar uma outra pessoa e colocar ela num sistema ou numa lógica só nossa para entendê-la, porque ela sempre estará além da nossa possibilidade de criar esse mundo “total”. O mundo interno dela só pode ser compreendido e explicado por ela mesma, e se queremos conhecê-la, precisamos ouvi-la. Existem algumas coisas no livro que não se alinham muito com Levinas, e os personagens mais politicamente radicais fogem um pouco desse tipo de pensamento, mas as ideias dele guiaram certas decisões formais do romance.
Seu livro reflete sobre a necessidade do engajamento político na arte. Como você enxerga essa relação e como ela se manifesta na sua obra?
Tem alguns trechos do livro que falam disso diretamente — a ideia de que hoje em dia existem alguns temas políticos tão urgentes que o artista se sente pressionado a fazer alguma coisa a respeito. Sem dúvida seria delicioso poder fazer arte pela arte, só pelo desenvolvimento de uma estética, mas o mundo de hoje bate à porta e muita gente se sente irresponsável quando ignora a política, até onde isso é possível, na escrita de suas obras.
Um personagem, em particular, representa bastante isso: é um ator teatral chamado Bressane Daniel, que encarna essas questões. Digamos que, quando o leitor ouvir o que ele tem a dizer sobre isso, vai estar ouvindo uma opinião muito parecida com a minha.
O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita? Quanto tempo levou para escrever o livro?
Eu tenho um livro não escrito que costumo chamar de “meu terceiro romance”. Foi o primeiro romance que comecei a escrever, depois de publicar meu livro de contos. Esse romance tinha tantos personagens, tão diferentes de mim, e eu queria usar uma técnica narrativa que seria tão difícil colocar em prática, que comecei a pensar que era coisa demais para um primeiro momento. Talvez, num primeiro romance, fosse melhor fazer uma coisa mais autobiográfica.
Nessa época, eu tinha começado a pegar o hábito da corrida, vinha correndo bastante — hábito que eu devia retomar, inclusive. E me veio a ideia de um personagem que está correndo por uma cidade, e o que ele vê conforme corre desperta memórias que o levam para outros lugares, muitas vezes desrespeitando a geografia. Essa ideia me levou a escrever, e a estrutura do romance é assim, uma corrida interminável que salta no tempo e no espaço. E se a princípio pensei numa coisa bem autobiográfica, acabei fugindo completamente ao plano inicial. Alguns elementos autobiográficos ficaram, mas muitíssima coisa mudou.
Levei 5 anos. Foi a coisa mais “mal-planejada” que já escrevi, no sentido de que mudei muitos aspectos do enredo depois que a escrita já estava em andamento, exigindo que eu reescrevesse e repensasse várias coisas — e você precisa ter muito cuidado quando muda algo assim. Eu tenho o hábito de pesquisar muito e esconder referências relevantes no meio do livro para gerar camadas extras de leitura, e então precisei trabalhar o dobro na seleção dessas referências e preparação das personagens, etc. No fim das contas, o processo de produção do livro acabou muito parecido com o próprio livro.
Quais reflexões ou temas centrais você acredita que o livro pode despertar no leitor, considerando a complexidade dos personagens e suas experiências?
Sempre achei meio difícil pensar em “transmitir mensagens”, porque a ideia é que os personagens sejam complexos o suficiente para que não exista uma mensagem super clara que possa ser colocada em palavras fácil assim… Mas, se há uma mensagem ali, ela deve envolver a importância de ouvir o outro, se você quer mesmo conhecê-lo. Acho que também tem algo no sentido da relevância de um pensamento político para se entender a própria vida, e o impacto que a arte pode ter sobre alguém.
A escrita do livro trouxe transformações para você? Como esse processo impactou sua visão de mundo e de escrita?
Não sei se me transformou. Sem dúvida aprendi e me desenvolvi por ser meu primeiro romance, e isso sem dúvida é relevante para quem até então só trabalhou com textos curtos. Também tem muitos elementos pessoais no livro, autobiográficos mesmo — sobre meu avô, algumas experiências de trabalho, algumas pessoas que inspiraram certos personagens, etc. Tudo isso é significativo. Acho que uma coisa que significa muito para mim é a sensação de que, através da escrita, eu estou agindo no mundo de alguma maneira, mesmo que minúscula, mesmo que poucos vejam. Estou falando de ideias que me parecem importantes, e fazendo isso, é como se tirasse das costas uma responsabilidade. Não existe uma obrigação literal, mas é a sensação de que ao menos eu tomei minha pequena ação, fiz minha pequena tentativa de expressar algumas ideias que parecem importantes nesses tempos difíceis.
De que forma sua trajetória escrevendo desde a infância e publicando em diferentes plataformas influenciou a construção deste livro? E como a experiência com seu primeiro livro, especialmente por ser uma coletânea de contos, impactou seu processo de escrita no romance?
É até difícil dizer. Eu escrevo desde os sete anos, não me lembro de uma época na vida em que escrever não era uma parte do meu cotidiano. Quando criança eu enchia cadernos de histórias inventadas e comentários sobre os desenhos que gostava. Postei muita coisa em blogs ao longo da adolescência inteira, postei no Medium, no Insta, no Substack, e eu até contaria do que postei no Orkut se não me fizesse parecer velho demais. O meu primeiro livro foi muito diferente desse, em grande parte por ser de contos, e, portanto, era possível escrever um conto, lapidar, engavetar, começar a trabalhar em outro, retirar aquele primeiro da gaveta meses depois, para os últimos retoques… um processo que não é possível no romance. Mas pensando bem, acho que meu primeiro livro foi o momento em que eu tomei a escrita como uma coisa realmente séria, em que peguei meu texto e tentei fazer o melhor de que era capaz. Lapidei meu texto ao máximo, aprendi a começar do zero e jogar fora o que devia ser abandonado, tudo isso da maneira mais profunda que tinha feito até então, de um jeito que não se faz em um “texto pro blog”. Sem dúvidas aprendi com isso.
O romance de formação foi a escolha para dar conta dos acontecimentos políticos recentes e do processo de amadurecimento do protagonista. O que fez esse gênero parecer o mais adequado para contar essa história? E como sua experiência escrevendo em diferentes gêneros influenciou essa decisão?
O gênero, no fim das contas, é uma decisão formal, ou seja, ele dá ao livro a forma que ele deveria ter para discutir os acontecimentos políticos dos últimos anos. Me pareceu que a ideia do romance de formação seria interessante numa época em que é tão conturbado a gente se formar como pessoa. Esse gênero tende a ser mais realista, coisa que esse livro de fato é — embora use várias técnicas modernas de escrita. Mas é como dizem, todo escritor se acha realista, num certo sentido.
Suas influências literárias parecem variar de acordo com as necessidades de cada cena ou personagem. Como esse processo seletivo de leituras impactou a construção de Grito Distante? E quais autores ou obras foram essenciais para dar vida aos seus personagens?
Em termos de influências mais gerais, sem dúvida tem marcas fortes de William Faulkner, alguma coisa de David Foster Wallace, e sempre tenho em algum lugar da mente autores como Oswald de Andrade e Veronica Stigger, que são grandes lembretes para que eu não me deixe cair no comum. Mas no geral acabo usando muitas obras para escrever qualquer coisa, porque sempre estou tentando buscar leituras que vão ser úteis para objetivos específicos. Se estou sentindo que estou muito prolixo, vou ler Trevisan, Borges ou Hemingway; se quero uma cena de sexo, posso mergulhar em leituras de Anais Nin, Sade, ou tantos outros, que escolho dependendo do tom; e assim vai. Para esse livro, eu sei que li e assisti bastante coisa sobre política para criar a Maitê, que é uma personagem inteligente, que conhece esses temas melhor que eu, além de ser bastante radical, e então eu li coisas do Comitê Invisível, por exemplo, sobre ocupações, comunas, e etc. A personalidade do Rodrigo tem muito a ver com um livro teórico chamado Realismo Capitalista, do Mark Fisher, enquanto para criar o Bruce, que é um personagem preto que cresceu influenciado pela cultura estadunidense, eu li a biografia do Muhammad Ali e do Malcolm X, além de alguns discursos de Martin Luther King… estou tentando puxar pela memória. Eu vou relendo e buscando as referências conforme uma cena ou personagem precisa, então pode ter trocentas, acabo me esquecendo de algumas, e nem todas são diretas como essas. E isso sem contar as frases espalhadas pelo livro como homenagem. O leitor que conhecer esses artistas vai reconhecer muita coisa ali, de Clarice Lispector a Kendrick Lamar, tudo mais ou menos disfarçado. A ideia é que você consiga enxergar uma simples conversa entre personagens — ou, se quiser mergulhar, encontrar citações e camadas de sentido extras.
Como surgiu a ideia de moldar a forma do texto para refletir conceitos como voz, silêncio e diálogo? E como esse processo influenciou a experiência do leitor?
No fim das contas, muitas questões se resumem à mesma ideia: eu quero que a obra tenha uma forma que se encaixe bem com o conteúdo. Quero que o próprio leitor dê um sentido à maneira como eu uso a forma ao longo do livro, então não vou dizer exatamente o que eu pretendia com cada decisão, mas dou um exemplo: eu só coloquei parágrafos quando alguém fala em voz alta, para que a voz se destaque da narração de uma maneira mais flagrante. A ideia é que a forma do livro, por meio desses parágrafos, destaque a voz dos personagens, simbolizando a importância que a voz deles tem enquanto tema. Tentei usar a forma, também, para simbolizar silêncios, discussões, e intrusões da arte no dia a dia das personagens, e o leitor é quem vai dizer se consegui ou não atingir esses objetivos.
A questão é menos seguir um estilo do que tentar descobrir qual é o estilo que cada texto ou personagem quer ter, para em seguida aprender a escrever naquele estilo. Quem manda é o texto. Quando dizem que tenho uma voz autoral clara, me parece um elogio só em parte, porque quero sempre manter essa possibilidade de mudança. Só sei que vou tentando me adaptar, ser super descritivo quando acho que devo e nada descritivo quando acho desnecessário, lento ou rápido, sangrento ou fofo, etc.
Sua relação com a escrita começou muito cedo, ainda na infância. Você se lembra do momento em que percebeu que gostava de escrever?
Eu não me lembro exatamente, mas sei que para mim era um passatempo e uma diversão. Existe uma cena no livro em que o avô do narrador lhe presenteia com dicionários de sinônimos, e é uma cena real: meu avô me deu o mesmo presente quando descobriu que eu gostava de escrever. Mas quem conta a história mais antiga que eu conheço sobre isso é a minha mãe.
Diz ela, que quando eu tinha sete anos, minha professora entrou em contato e perguntou se ela tinha me ensinado sobre a “política café com leite”. Aparentemente, numa atividade da escola, a professora pediu para os alunos escreverem sobre “Nosso estado” — Minas Gerais, no caso — e eu escrevi sobre isso. Quando minha mãe perguntou, eu disse que tinha visto o nome “Política café com leite” quando fucei em algumas enciclopédias por curiosidade, e achei engraçado. Foi por isso que eu li, e como envolvia Minas Gerais, enchi as páginas da atividade na escola falando sobre isso. É claro que eu não entendia tão bem esse tema, mas puxei pela memória e escrevi do jeito que conseguia escrever na época. Isso levou minha mãe a descobrir que, enquanto ela trabalhava, eu escrevia muito no meu caderno, inventava histórias, fazia comentários sobre os desenhos que assistia e coisas do tipo. A única coisa que me lembro é que eu inventava histórias de super-heróis, quase sempre cômicas, naqueles cadernos da infância, e criava desenhos para acompanhar. Depois eu percebi que meus desenhos eram péssimos e acabei ficando só com a escrita mesmo.
Quais são seus projetos atuais de escrita? Há algo novo no horizonte?
Tenho um livro de contos de molho, mas ainda não decidi o que vou fazer com ele, se já quero lançar agora ou esperar. Também tenho um romance em andamento, a respeito de uma suposta profeta que funda uma seita, consegue vários seguidores, e prevê uma data para o fim do mundo. O romance acompanha a profeta, o principal pregador da seita, e alguns outros personagens, à medida em que o dia indicado por ela se aproxima.
Também estou trabalhando na segunda temporada de um podcast de histórias ficcionais chamado First Life, baseado num conto meu de mesmo nome. Cada episódio tem cerca de 20 minutos e é narrado por um ator diferente. Ele está parado no momento, à exceção de alguns episódios de bastidores, mas quero lançar a segunda temporada ainda esse ano.
Amanda Magalhães é jornalista, pesquisadora, escritora, mestre em Comunicação e Temporalidades pela Universidade Federal de Ouro Preto. Transita, pesquisa e atua no jornalismo cultural e nas produções audiovisuais. É autora de 5 obras literárias, com destaque para o romance Do verbo corresponder e o que vem antes, lançado pela Editora Urutau em 2020.
“Ouvir o outro” – Nestes tempos nada fáceis, vale a sugestão do autor: tempo para ouvir