Escritora Bárbara Mançanares fala sobre o processo de criação de seu terceiro livro, ‘A voz incauta das feras’
Publicada pela Editora Patuá, a obra convida o leitor a explorar a força criadora da linguagem, mesclando memórias e experimentações artísticas que transcendem o cotidiano.
Bárbara Mançanares constrói universos que desafiam a linearidade da compreensão e convidam à imersão no enigma. Em A voz incauta das feras (Editora Patuá, 2024), seu terceiro livro, a poeta e bordadeira explora a potência da palavra como força criadora e independente, enquanto desafia os leitores a se entregarem à densidade das imagens e aos ciclos indomáveis da linguagem e da natureza.
Nessa obra, o mundo natural encontra as palavras fora do dicionário, subvertendo uma suposta utilidade da língua. Dessa forma, a palavra, per si, ganha força de criação. Se elas foram pensadas, proferidas ou escritas, elas passam a existir e a agir. As imagens elaboradas pela poeta são oníricas, selvagens e profundas, indo além do que parece real e cotidiano, evocando, assim, o próprio poder da linguagem. A palavra, nos versos de Bárbara, não são meras ferramentas, elas são protagonistas e se comportam como seres naturais e partes fundamentais de um universo que se expande a cada verso. Em A voz incauta das feras, a linguagem é criadora e criatura.
Natural do sul de Minas Gerais e atualmente residente no sul da Bahia, Bárbara traz em seu livro não apenas a herança de sua vivência no meio rural, mas também uma experimentação artística que transita entre o surrealismo e a escrita automática, influenciada por autores como Alejandra Pizarnik e Herberto Helder. Vencedora de prêmios como o Prêmio Nacional Mozart Pereira Soares e destaque em projetos literários como o Rumos Itaú Cultural, a autora agora nos convida a desvendar o tecido poético que compõe sua obra mais recente.
Na entrevista, Bárbara revela os processos por trás de A voz incauta das feras e compartilha como a escrita se torna um ato de resistência e reinvenção.
Como a poesia se faz presente no seu cotidiano e como foi o processo de escrita de A voz incauta das feras?
A escrita é algo frequente na minha vida, sobretudo a escrita de poemas. Também passo por períodos de seca, em que a vida me engole e eu acabo me afastando de coisas que me são fundamentais – a poesia não é luxo, como bem disse Audre Lorde. Quando participo de oficinas de escrita, minha tendência é escrever mais, o que aconteceu durante a escrita de A voz incauta das feras. O período de escrita foi de aproximadamente seis meses, e eu tenho a mania de escrever e editar ao mesmo tempo. Meu processo de escrita tem variações, mas, normalmente, abro livros aleatoriamente e seleciono cinco palavras. Diante dessas cinco palavras, busco estabelecer conexões entre elas, de maneira a criar o poema. Também coleciono palavras que gosto em um caderno. Às vezes, seleciono cinco palavras desse caderno e trabalho em cima delas. Meu lugar preferido de escrita não é o caderno, mas, sim, o bloco de notas do computador. Em A voz incauta das feras, me propus a testar outros caminhos também: experimentei a escrita automática. Pegava um caderno, uma palavra disparadora, e ia escrevendo o que vinha em fluxo na minha cabeça. Como no bloco de notas eu escrevo e edito ao mesmo tempo, essa foi uma experiência incrível: escrever sem me censurar no processo de escrita e editar, lapidar o poema, somente depois.
Quais imagens e temas principais percorrem a nova obra? E como o território da sua infância influenciou essas escolhas?
O livro mobiliza imagens que perpassam o mundo natural e a linguagem. A constituição da palavra, do idioma, acompanha, atravessa e, às vezes, subverte os ciclos naturais. Nos poemas, a densidade das imagens é o foco, não buscando propor uma interpretação e entendimento linear, mas sim a ‘persistência do enigma’, expressão utilizada por María Negroni em A arte do erro (100/cabeças, 2022).
Normalmente, não escrevo a partir de um projeto pré-estabelecido, mas sim a partir de palavras que me mobilizam. Nos últimos anos, passei a perceber que essas palavras se repetem na minha escrita, criando uma espécie de território poético no qual mergulho. Fui criada na roça, no convívio com a terra, o barro, o verde, os açudes, o isolamento. Hoje, vejo que esse território da infância, da adolescência e de parte da vida adulta influenciam os temas e as imagens presentes na minha escrita.
Que significado A voz incauta das feras tem na sua trajetória pessoal e artística?
A nível pessoal, este livro veio como uma forma de me ancorar à vida. Ele foi escrito em um período em que eu lidava (e ainda lido) com questões de saúde mental, como síndrome do pânico e transtorno de ansiedade. Durante um tempo, tive que me afastar gradualmente das minhas atividades ‘produtivas’, que, em nossa sociedade, são o termômetro de atribuição de valor a uma pessoa. Para auxiliar no meu tratamento, busquei me reconectar ao que me ancorava à vida, como reivindicar novamente meu cotidiano, cuidando das plantas e dos bichos, mas também do alimento, do invisível e da escrita. Curioso que, para enfrentar um cenário de saúde mental, foi preciso não me apoiar em um aspecto racional da vida, mas em um aspecto profundamente inconsciente e onírico, como é o caso da escrita automática, método utilizado por escritores do movimento surrealista. A nível profissional, esse livro foi uma grande experimentação artística, na medida em que aliei aos meus processos antigos novos processos de criação.
De que forma seus livros anteriores contribuíram para a construção deste novo trabalho?
Penso que com o primeiro livro a gente aprende a coragem de lançar algo ao mundo. Meu primeiro livro, Maio (Quintal Edições, 2018) foi um compilado de poemas escritos em um período de 10 anos. O segundo livro, Cartografias do corpo que canta (Editora Patuá, 2021), me mostrou como é importante o diálogo com outros autores, tanto a nível de leitura e ampliação de nosso repertório poético, como também em relação à partilha dos processos e textos criados. Já esse terceiro livro, A voz incauta das feras (Editora Patuá, 2024), me traz a importância da experimentação no processo de reconhecermos e construirmos nossa linguagem.
Este é seu terceiro livro de poesia. Quando e como você descobriu a poesia como seu principal gênero de escrita?
A poesia é o gênero que escrevo desde mais nova. Lembro-me de, no Ensino Fundamental I, ter uma professora de português chamada Maria do Carmo, que era poeta e nos incentivava a escrever poemas também. No Ensino Fundamental II, passei a andar com um caderno na bolsa, onde escrevia poemas com tom confessional. Foi no Ensino Médio que comecei a publicar meus poemas em um jornal local de Alfenas, o Jornal dos Lagos, por incentivo de uma professora chamada Patrícia, que trabalha lá. Até então, minha escrita era restrita a mim e a poucos amigos. No momento, estou escrevendo um romance híbrido, que mescla prosa, poesia e bordado. Tem sido uma experiência diferente da que estou acostumada.
Por que escolheu publicar A voz incauta das feras pela editora Patuá?
Acompanhava o trabalho da Patuá há alguns anos e admirava tanto os autores da casa quanto o trabalho gráfico da editora. Em 2021, publiquei com eles Cartografias do corpo que canta, e foi para mim uma experiência muito positiva. Meu livro chegou a lugares que eu nem poderia imaginar, como algumas livrarias de São Paulo, mas também à biblioteca nos Estados Unidos e a livrarias na Alemanha. Diferentemente do meu primeiro livro, que circulou mais entre familiares e amigos, Cartografias ganhou um público leitor maior. Por conta dessa experiência com meu segundo livro, optei por continuar nessa casa editorial tão querida.
Quais autores e obras têm sido suas maiores influências? E quais marcaram a construção do novo livro?
Penso que, em cada momento da vida, a gente se conecta mais ou menos com determinadas obras e escritores. Alguns deles marcam períodos, como se fossem divisores de águas. Trago aqui escritores que me afetaram no lugar da escrita.
Meu primeiro impacto na literatura foi com Adélia Prado e Clarice Lispector; elas inauguraram em mim o sem-nome, aquilo que nos toca e nos escapa em uma leitura. Depois, vieram outros: García Márquez, Manoel de Barros, Guimarães Rosa, Alejandra Pizarnik, Ana Martins Marques e Herberto Helder.
Escrevi A voz incauta das feras ao som de Alejandra Pizarnik, Ana Paula Tavares, Herberto Helder, Mónica Ojeda, Mell Renault e Al Berto.
Como você enxerga o seu estilo de escrita e as características da sua poesia?
Confesso que sou uma pessoa que conhece bem pouco sobre teoria literária; isso não fez parte da minha formação acadêmica nem da minha formação como leitora. Diante disso, não consigo definir meu estilo de escrita nem a estrutura que utilizo em meus processos, já que raramente crio a partir de uma pauta ou escaleta. Me interesso por uma escrita menos rígida, por uma poesia com mais espaço para as imagens se formarem e ditarem os caminhos.
Quais são os seus projetos futuros na literatura? Pode nos contar um pouco sobre eles?
Já tenho um contrato assinado com a Editora Toma aí um Poema (TAUP) para a publicação de outro livro de poemas em 2025. Curiosamente, ele foi escrito antes de A voz incauta das feras. O tom do livro passa pela morte e pelo luto paterno, mas não se limita a isso. Também estou no processo de escrita do meu primeiro romance, com o título provisório de Depois de mim não haverá nada, com o apoio do Itaú Cultural.
O futuro livro traz a história de uma mãe enlutada que se agarra a um tecido bordado como se fosse uma carta profética, uma forma de lidar com o sem-nome do luto. Em torno da personagem, tudo se move e narra em travessia: o barro, o rio, as árvores, o próprio tecido bordado. O poeta William Carlos Williams afirmou que o barulho das cataratas “parecia constituir uma linguagem que estávamos e estamos procurando” e que sua busca “tornava-se a luta para interpretar e usar essa linguagem. Essa é a substância do poema”. Em Depois de mim não haverá nada, escutar a voz do chão e escrevê-la foi a forma que encontrei para tocar nas reentrâncias do luto, da perda, do pertencimento, do corpo estilhaçado, mas também moldável, como as cerâmicas do Jequitinhonha.
Veriana Ribeiro é uma escritora acreana, formada em Jornalismo pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalha há 15 anos na área de comunicação, tendo atuado como assessora de imprensa, repórter e redatora. Publicou o livro Coletânea dos Amores Partidos (autopublicação, 2021) e participou da coletânea Antes que eu me esqueça \ 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje (Quintal Edições, 2021), além de escrever projetos literários independentes como zines e newsletters.