Esquerda de cara nova
Em oposição à social-democracia e suas políticas neoliberais, o Die Linke é o partido que mais cresce na Alemanha, com filiados em todas as regiões do país. Mas, agora, terá que descobrir como conciliar a atuação ruidosa com a participação no jogo institucional
Em uma das paredes de seu escritório, Klaus Lederer pendurou uma pintura a óleo levemente desbotada. O retrato é do filósofo Karl Marx (1818-1883), seu conterrâneo. Já no computador, a imagem escolhida como fundo de tela é muito mais moderna: trata-se de uma foto multicolorida de uma multidão protestando.
Para os alemães de direita, a sala do responsável berlinense pelo partido Die Linke (A Esquerda) é a síntese de tudo que eles mais repelem: o ressurgimento de Karl Marx, dado por enterrado desde a reunificação do país, e a volta das manifestações de ruas, que com o fim da República Democrática Alemã (RDA) pareciam não interessar a mais ninguém e agora despontam como tendência de época.
Temores também permeiam a ala esquerda do Die Linke, mas a natureza deles é bem diferente. Os integrantes do partido têm receio que, em breve, o marxismo e os protestos passem a existir apenas nas paredes e nos monitores dos escritórios de seus deputados. Para eles, o preço do sucesso crescente do partido pode ser o abandono dos ideais socialistas.
As preocupações de todos os lados são justificáveis. Basta analisarmos a esquerda e a direita alemãs nas últimas duas décadas. Fundado em 4 de fevereiro de 1990 sobre os escombros do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) [1], o Partido do Socialismo Democrático (PDS) consolidou rapidamente sua presença em todo o território e parecia uma força política estável. Porém, apenas 12 anos depois, nas eleições de 2002, não conseguiu mais do que 4% dos votos e foi excluído do Parlamento – é preciso atingir ao menos 5% para eleger representantes no Bundestag. Nesta ocasião, o social-democrata Gerhard Schröder recuperou seu cargo de chanceler e a direita, impulsionada pela União Democrata Cristã (CDU) e sua filial bávara, a União Cristã Social (CSU), comemorou o fim dos comunistas.
De fato, as referências à RDA comunista e à ditadura ainda pareciam contaminar a senso comum sobre as políticas da esquerda e se revelaram eleitoralmente tóxica. A confusão ideológica provocou conflitos até no âmbito do partido: alguns apontavam a ala comunista como responsável pela derrota enquanto outros acusavam os berlinenses, liderados por Klaus Lederer, de serem pragmáticos demais.
Por ironia da história, foi justamente o governo Schröder que permitiu o ressurgimento da esquerda com força total. Com sua “Agenda 2010”, o chanceler reduziu de tal forma a rede de proteção social que acabou induzindo, no primeiro semestre de 2004, a constituição de duas organizações socialistas na parte ocidental do país: a “Iniciativa Trabalho e Justiça Social” e a rede “Por uma alternativa eleitoral”. Pouco depois, estes grupos se fundiram sob o nome de “Alternativa Eleitoral – Trabalho e Justiça Social” (em alemão, WASG [2]).
Sempre contra a sua própria vontade, Gerhard Schröder contribuiu novamente para o crescimento acelerado desta nova esquerda ao convocar eleições federais antecipadas em 22 de maio de 2005, noite da fragorosa derrota sofrida por seu Partido Social-Democrata (SPD) contra o CDU nas eleições regionais da Renânia do Norte-Vestfália. Além de querer confirmar sua legitimidade no cargo em um cenário favorável à direita, Schröder tinha esperança de impedir os avanços dos novos concorrentes: o PDS parecia dogmático demais e a WASG excessivamente desorganizada para poderem ultrapassar a barreira fatídica dos 5%. Contudo, as duas agremiações, a priori tão diferentes entre si, articularam rapidamente um processo de união dentro do calendário eleitoral e conseguiram integrar o Bundestag! O recém-fundado Linkspartei, sob a direção compartilhada de Gregor Gysi e Oskar Lafontaine, obteve 8,7% dos votos e 54 deputados. E Schröder, após um acordo entre o seu partido e o CDU, teve que entregar o cargo à atual chanceler Angela Merkel.
Em junho de 2007, após tornar-se simplesmente o Die Linke, o partido ingressou sucessivamente nos Parlamentos dos Estados de Bremen, de Hesse, da Baixa Saxônia e de Hamburgo, confirmando sua implantação na parte ocidental do país.
Desde então, a preocupação dos conservadores vem crescendo. Aqui e acolá é possível ouvir pessoas citando novamente o Manifesto comunista. Um espectro ronda a Alemanha, afirmam editorialistas dos veículos de comunicação burgueses. “Este avanço da esquerda será mesmo realmente perigoso?”, indagava uma revista semanal [3], enquanto o ministro das relações exteriores Frank-Walter Steinmeier, do SPD, alertava para o perigo que constituia uma evolução desta natureza [4]. Enquanto alguns denunciaram a “infiltração comunista” [5] encampada pelo novo partido, outros lhe negaram toda competência política: “o Die Linke precisa ser colocado no seu devido lugar – e para todos os efeitos” [6]. Nesse meio tempo, após ter se tornado presidente do grupo parlamentar do partido no Bundestag, Gregor Gysi se viu na obrigação de prestar um esclarecimento: “para nós, não há retorno possível à RDA. Não existe volta à nacionalização dos meios de produção”, disse [7].
Apesar do medo evidente da direita e da mídia, os temores da ala mais à esquerda do partido certamente são mais antigos. A aliança do PDS com o SPD na administração do Estado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental (ex-RDA) em 1998 e, em seguida, em Berlim em 2001, levantou uma questão de princípio para os militantes mais esquerdistas: temos ou não o direito de governar?
“As pessoas temem que o nosso partido acabe tendo o mesmo destino que o do Partido Comunista Francês durante a presidência de Mitterrand”, comenta Klaus Lederer, que dirige desde 2005 o Die Linke em Berlim. “O que vocês querem que um partido faça quando, durante oito anos, ele só criticou a situação e, de um dia para o outro, se viu em posição favorável para participar do governo?”, questiona. Lederer cita então – sempre diante do retrato de Marx e da foto da manifestação – Rosa Luxemburg (1871-1919). Na visão desta grande pensadora comunista alemã, o Parlamento representava “o terreno adequado para permitir que os socialistas pudessem praticar uma resistência sistemática contra a dominação da burguesia” [8]. E é este tipo de resistência que tem sido objeto de discussões ao longo das últimas semanas. Os militantes do Die Linke se perguntam qual atitude devem adotar diante das exigências salariais e das greves na função pública. Ou ainda, como o partido, associado ao SPD na administração de Berlim, pode reagir quando o sindicato dos funcionários públicos resolve reclamar um aumento de 12%, depois de anos de renúncia.
A crise de identidade é tamanha que é comum dois comunicados de imprensa diferentes serem publicados no mesmo dia. Por exemplo: no primeiro release, o porta-voz para os assuntos sindicais na diretoria berlinense do partido exige solidariedade com os assalariados dos transportes públicos que estão em greve; no outro, o porta-voz para os assuntos econômicos do grupo parlamentar do Die Linke pede que sejam levados em conta igualmente os pontos de vista dos assalariados e o do empregador, alegando que este último, a cidade de Berlim, precisa manter a implementação do seu programa de recuperação econômica. O dilema é reconhecido com satisfação por Klaus Lederer, que avalia: “enquanto nós não estivermos mais à esquerda do que os sindicatos, sempre haverá críticas”.
Em certas ocasiões, a controvérsia adquiriu proporções tão excessivas que os dirigentes do partido tiveram de publicar uma declaração comum, na qual eles lembram à sua base os sucessos obtidos pelo governo de coalizão berlinense, tais como a implantação, apesar de inúmeras dificuldades, de um grande setor de empregos financiados por fundos públicos; o fato de a cidade só firmar contratos com empresas que pagam um salário mínimo de 7,50 euros por hora (cerca de R$ 20,00); a inserção na Constituição da realização periódica de referendos, inclusive por iniciativa popular; a gratuidade das vagas no jardim de infância; a não-privatização da Caixa de Poupança de Berlim e de toda outra instituição pública de previdência social, etc. Erguendo uma folha impressa com o pronunciamento dos seus líderes, Klaus Lederer acrescenta: “nós não estamos agindo de maneira amoral. Muito pelo contrário, estamos tentando obter tudo o que é possível nas condições presentes”.
Os debates que vêm agitando o Die Linke lembram aqueles que dividiam os Verdes (ecologistas) alemães nos primeiros anos da sua existência: uma luta sem tréguas era travada entre Realos e Fundis – pragmáticos e ideólogos. Frieder Otto Wolf, professor na faculdade de filosofia da Universidade Livre de Berlim e deputado dos Verdes no Parlamento europeu de 1984 a 1999, aponta um paralelo entre a polêmica dos ecologistas pouco depois da fundação do seu partido, em 1980, e a da nova esquerda contemporânea. De acordo com ele, “um conglomerado de movimentos sociais” desta natureza acaba sempre “se mostrando pouco à vontade” quando se trata de definir como “traduzir suas reivindicações para o espaço parlamentar”. O professor Wolf alerta: “nenhum partido pode sobreviver em longo prazo a uma polarização tão forte entre realismo e fundamentalismo. Quando um partido se mostra incapaz de lidar com essas contradições, no fim das contas ele acaba perdendo em todos os quesitos”.
Para ilustrar suas afirmações, ele enumera as diferenças. O Die Linke, explica, se mostra menos caótico do que os Verdes, mais consciente da necessidade de firmar alianças fortes para acabar com as posições puramente defensivas. Não corre tanto perigo de ver os sucessos eleitorais desgastarem sua influência junto à população: “na época, os Verdes se encarregavam de tudo, direta ou indiretamente. Hoje existem organizações como Attac e os fóruns sociais alemães, europeus, mundiais (que cumprem algumas de suas tarefas)”. O professor vangloria a clarividência da nova esquerda, que se mostra consciente de que “o braço parlamentar tem apenas um alcance limitado”. Diferentemente do que acontecera com os Verdes, obrigados a se dobrar a todas as vontades do autocrata Joschka Fischer, antigo vice-chanceler do governo Schröder, o Die Linke possui em Oskar Lafontaine e Gregor Gysi dirigentes flexíveis: “com esses dois, os ?realistas? e os ?fundamentalistas? terão dificuldades para recomeçar sua briga!”
De fato, os esforços em integrar os diferentes componentes do partido estão começando a render frutos junto à base. O processo de fusão do WASG e do PDS deixou poucos simpatizantes e militantes de lado. Diferentemente do que ocorre com os partidos estabelecidos, o Die Linke vem apresentando um crescimento do número de seus filiados, hoje em torno de 70 mil. A nova agremiação desponta como uma estrutura de acolhimento, não apenas para os sindicatos e os ex-membros de pequenas organizações comunistas, como também para os outros refratários à ordem econômica neoliberal.
Raros são os grupos que, a exemplo da Alternativa Socialista Para Frente (Sozialistische Alternative Voran, SAV), de tendência trotskista, ainda se recusam a entrar para o Die Linke. Lucy Redler, integrante da direção nacional da SAV, deplora a ausência de um programa partidário: “quando você desconhece os objetivos, acaba firmando acordos que não deveria e, sem demora, passa a não se preocupar mais com outra coisa senão impedir o pior, em vez de romper com a lógica de lucro do capitalismo”. Diferentemente do professor Wolf, ela teme um menor engajamento nas ações fora do Parlamento: “ao invés de elaborar ofertas imaturas de coalizão com o SPD, como ocorreu recentemente nas eleições de Hesse, a melhor coisa que o Die Linke poderia fazer depois do seu sucesso eleitoral seria participar dos protestos estudantis recentes”.
Os dirigentes da nova esquerda compreendem essas críticas, mas não as compartilham. Helge Meves, um militante experiente e veterano do PDS, se diz “cético em relação a um partido com pretensões ideológicas globais”. Para ele, “isso provoca debates que atrapalham a percepção sobre o que pode realmente ser feito para mudar as coisas. As questões de estratégia são mais importantes que as de programa”. O fato de o Die Linke pretender elaborar uma plataforma oficial somente depois de concluídas as próximas eleições nacionais, em 2009, não o incomoda. A perspectiva, aliás, é animadora: segundo as mais recentes pesquisas, o Die Linke pode alcançar 14% dos votos no pleito seguinte. Caso isso se confirme, este sucesso deverá muito ao envolvimento pessoal de Oskar Lafontaine, que foi primeiro-ministro da região de Sarre de 1985 a 1998, além de presidente do SPD, seu candidato oficial à chancelaria e ministro das finanças, até demitir-se do seu partido para protestar contra a política de cunho neoliberal de Gerhard Schröder.
Desde julho de 2007, o antigo líder social-democrata é um dos presidentes do Die Linke. Em tom eufórico, ele esboça um balanço sobre a evolução de sua força política: “nós havíamos prometido a nós mesmos fundar um partido capaz se arraigar de maneira duradoura na Alemanha e de mudar a política neste país”. Ele avalia que os dois objetivos foram atingidos e o Die Link progrediu “ainda mais rapidamente do que o previsto”. Lafontaine interpela com entusiasmo os contestatários que deploram a falta de um programa: “nós estamos fazendo a política do real! Isso equivale a um programa! Quando nós exigimos pisos salariais, quando nós queremos impedir a privatização dos transportes ferroviários, quando exigimos a retirada das tropas do Afeganistão, tudo isso equivale a um programa!”
Lafontaine havia apresentado o “seu programa” uma semana antes de sua eleição à presidência do Die Linke, em um artigo publicado no Frankfurter Allgemeine Zeitung intitulado “A liberdade pelo socialismo”. Nele, exigia que “setores econômicos vinculados às redes que garantem o atendimento de necessidades elementares da população permaneçam sob a responsabilidade do poder público” [9]. Ele também preconizava uma legislação reforçada sobre os cartéis, a implantação de pisos salariais, o abandono da Agenda 2010 e o direito de greve geral. E ainda citava o escritor Hermann Hesse: “na situação atual, o socialismo é mesmo a única doutrina que exerce uma crítica séria dos fundamentos da nossa falsa sociedade e [da nossa] maneira de viver” [10]. Por fim, Lafontaine evocava uma reflexão do papa Bento 16, igualmente alemão: “os déficits humanos deste sistema econômico que segue consolidando a dominação das coisas sobre os homens têm nomes: exclusão, exploração e desumanização” [11]. Aliás, para decorar o seu escritório no Bundestag, o co-presidente do Die Linke também escolheu um retrato, não de Karl Marx, mas sim do sumo pontífice, valorizado por uma bonita moldura dourada.
Para ele, da mesma forma que os Verdes no passado haviam “ecologizado” a vida política alemã, o Die Linke a “re-socializou, devolvendo para a esquerda a importância do seu papel político”. Esses avanços encontraram uma tradução na semântica pública. Os jornais não mais se referem aos “socialmente fracos” e voltaram a falar dos “pobres”. Ninguém mais se torna suspeito de ser “invejoso” ao pedir por “justiça”. “Solidariedade” não é mais um palavrão e “socialismo” deixou de ser assimilado ao “stalinismo”. Estas conquistas simbólicas serão, provavelmente, mais importantes em longo prazo do que qualquer ponto percentual obtido nas negociações salariais.
Lothar Bisky, um dos aliados de Oskar Lafontaine na diretoria do partido e novo presidente eleito da Esquerda Européia (EL), constata, com espanto, que fora da Alemanha as pessoas já começaram a se interessar pelo sucesso do Die Linke: “a Alemanha Ocidental sempre foi considerada um território onde não havia lugar para um partido à esquerda do SPD. E de repente, aqui estamos!”
*Peter Linden é jornalista.