Essequibo – Venezuela, Guiana e o Coração da Amazônia
Para além da legitimidade em disputar um território, entenda o que o imbróglio de Essequibo pode representar para a realpolitik das relações internacionais latinoamericanas
No primeiro domingo de dezembro (3), o governo venezuelano de Nicolás Maduro realizou um plebiscito consultivo para tratar de uma antiga questão territorial. Em cinco perguntas, a consulta pública de Maduro perguntava ao povo venezuelano se o território da região de Essequibo deveria ser integrado ao país. A resposta popular foi sim (com variações entre 96% e 98% de apoio). A participação no pleito tampouco foi tímida. Mesmo que a consulta não fosse obrigatória, atingiu um expressivo número de mais de 10 milhões de eleitores – mais do que na última eleição presidencial, de 2018. Líderes da oposição questionam essa cifra. Imediatamente após o ocorrido, o governo da Guiana comunicou a questão à ONU e levou sua soberania sobre o território ao fórum internacional, buscando se defender.
Este território, em disputa histórica há mais de um século, atualmente está sobre jurisprudência internacional da Guiana e corresponde a uma parte extremamente relevante do país. A Venezuela se apega ao seu direito sobre Essequibo com base no fato de a área ter integrado seu território original, quando ocorreu sua separação da então Grã-Colômbia. Essequibo já era parte da Grã-Colômbia, país depois extinto que havia se formado nas Guerras de Independência Hispano-Americanas, travadas entre o libertador Simón Bolívar e a Coroa Espanhola.
À época, Bolívar juntou os territórios do Vice-Reino da Nova Granada, da Capitania da Venezuela e das províncias de Quito e Guayaquil, para formar a Grã-Colômbia. Antes mesmo deste cenário, Essequibo integrava a capitania venezuelana e era controlado pela Espanha. O território só passou a fazer parte da Guiana (então Guiana Britânica) com os avanços do Reino Unido pela América Latina. Mais especificamente, quando compraram parte da antiga Guiana Neerlandesa em 1814. Neste processo, se aproveitando do momento de debilidade da Coroa Espanhola e da volatilidade de fronteiras mal vigiadas, o Reino Unido conseguiu, em uma manobra, esticar a linha de seu novo território latino-americano e pegar Essequibo para si. A partir daí, quando a Guiana se tornou independente do Reino Unido, em 1966, Essequibo integrou naturalmente o seu território.
Acontece que a Venezuela já contestava o domínio inglês sobre esse território muito antes da Guiana se tornar independente dos britânicos. O reconhecimento dos direitos ingleses sobre aquelas terras só teria sido oficialmente chancelado em uma arbitragem providenciada pelos EUA, após reclamações venezuelanas. Contudo, essa arbitragem, o Laudo Arbitral de Paris, acabou cedendo o território aos ingleses em 1899. O processo ocorreu com representantes dos interesses do Reino Unido e da Venezuela, além de um partícipe neutro, que naquele momento era a Rússia Imperial. A Venezuela não participou diretamente. Por acordo com os EUA, foi representada por estadunidenses. Os representantes britânicos, vitoriosos, tinham a simpatia do partícipe russo, o que lhes dava uma vantagem no tribunal.
Em 1948, após o falecimento de um dos representantes dos EUA, se descobriu em seus documentos que uma negociação prévia havia ocorrido, incluindo estes partícipes, para dar a vitória ao Reino Unido.
A Venezuela voltou a requisitar o território em 1962. Em 1966, com a independência da Guiana, os venezuelanos conseguiram a admissão por parte do Reino Unido e da recém formada nova república latino-americana de que sua reivindicação sobre Essequibo era válida. Esse é o Acordo de Genebra, no qual o governo venezuelano ambiciona se apoiar para requisitar a região mais uma vez, por meio da chancela popular buscada com o plebiscito.
Direito Internacional e Poder nas Questões Territoriais
É consenso entre especialistas, até este momento, que a manobra venezuelana tem como objetivo reacender o debate internacional e ganhar algumas mesas de negociação. Não se trataria, pelo menos até agora, de um prelúdio a uma ocupação militar. Os discursos inflamados de Maduro, que vão de garantir cidadania venezuelana aos moradores de Essequibo a apontar um governador de província e um batalhão militar à região, também devem ser vistos como uma questão mais vinculada à manutenção de sua popularidade frente às eleições presidenciais de 2024.
Para além disso, era natural que este território em disputa voltasse a ser um conflito ativo, porque se descobriu recentemente que a região é rica em petróleo e minérios. Mais importante do que quem o Direito Internacional pode apontar como soberano daquelas terras, a questão vai se voltar para onde costumeiramente volta: quem consegue exercer mais poder de influência militar e econômica. Esta é a realpolitik por trás destas ações.
Isso se torna especialmente relevante por causa do momento de “baixa” das instituições de Direito Internacional. Como é possível pedir à Venezuela que não atue em seu interesse territorial em Essequibo quando há dois outros conflitos de origem majoritariamente territorial e militar já em andamento no mundo (as guerras na Ucrânia e em Israel/Palestina)? Nestes, cansou-se de se perguntar porque a comunidade internacional não consegue distensionar os conflitos.
A impressão majoritária entre as pessoas é de que as fronteiras dos países são rígidas e desenhadas há muito tempo, ou seja, não são passíveis de questionamento. Contudo, algumas poucas olhadas em mapas das décadas de 1980 ou 1990 já indicam que essa noção é ingênua. Fronteiras se alteram o tempo todo, mesmo que não seja necessariamente algo positivo. Inclusive, vale lembrar que na maioria dos casos isso ocorre mais por expressões de interesses econômicos ou militares do que por direito adquiridos dos territórios.
A realpolitik se impõe ao juspositivismo – alegar ter um direito porque isso foi acordado em algum momento – salvo raríssimas exceções. Ainda mais quando existem direitos reconhecíveis como justos em ambos os lados. A Venezuela tem um argumento forte de que foi “roubada” pelo Reino Unido, quando as fronteiras de sua colônia foram expandidas irregularmente. Já a Guiana tem todo o direito à soberania sobre o território que manteve ao arrancar a independência de sua antiga metrópole. Se pensarmos nos conflitos atuais, é o que também acontece nas províncias disputadas atualmente entre a Ucrânia e a Rússia.
A que ponto se chega, então? Depende dos estopins que costumam levar a um conflito bélico. Na atual guerra na Europa, a questão da reivindicação de territórios em disputa foi mais um pretexto do que o motivo para a guerra. O governo de Vladimir Putin afirma que realizou sua incursão militar para defender a soberania de um povo russo que vive sob governança ucraniana, oprimido pelo governo de Zelensky, e para recuperar sua soberania histórica sobre a Crimeia. No entanto, a guerra começou porque o governo ucraniano se tornou extremamente hostil a Moscou a partir do Euromaidan, movimento político que terminou com o impedimento do presidente à época. A Rússia considera o Euromaidan um golpe de estado. Com isso, as tensões foram subindo gradativamente, e a possibilidade de adesão da Ucrânia à OTAN foi a gota d’água para Putin.
A guerra que ocorre naquela região é pela preservação da zona de influência econômica e de segurança militar da Rússia. Todo o resto é minoritário. O próprio Putin já admitiu isso ao longo do conflito.
A realpolitik deste imbróglio latino-americano e onde entra o Brasil
Qual seria então o principal motivo de realpolitik que poderia levar Maduro a engrossar ainda mais o tom nesta disputa? Certamente não um plebiscito, que serve apenas para fazer com que fóruns internacionais considerem que vias diplomáticas podem ser abertas sobre a questão. Um motivo que poderia aumentar tensões militares seria a disputa pelos recursos energéticos e minerais de Essequibo. Mais precisamente, o fato de que a Guiana concedeu em 2019 direitos de exploração de recursos energéticos na Bacia Amazônica de Essequibo para empresas estrangeiras.
A exploração está sendo realizada por um consórcio entre duas companhias estadunidenses, ExxonMobil e Hess, e uma empresa de capital misto chinesa, a China National Offshore Oil Corporation (CNOOC). O Brasil também começou discussões para que a Petrobras possa prospectar petróleo na região. A Venezuela, membro da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) e dependente economicamente da exploração do petróleo, deseja participar desta economia. Como não teria esse direito, sua outra preocupação natural é com a quantidade de países de fora da OPEP que estão expandindo suas reservas de petróleo. A conta é simples, com esses países mais autossuficientes em energia fóssil e importando menos da OPEP, a capacidade do grupo em forçar uma subida nos preços do barril de petróleo para favorecer suas economias diminui drasticamente.
Caso Maduro consiga mover a opinião pública internacional para voltar a ver a região como um território disputado, poderá, talvez, frear o aumento dessas explorações energéticas. Dificilmente pensa em ir além disso, porque custaria suas alianças com a América do Sul, algo fatal ao seu projeto nacional. Há de se perguntar também se a Rússia estaria disposta a ir contra o Brasil por esta questão venezuelana. O governo Lula deixou claro desde o início que não vai permitir que uma guerra comece nas franjas de sua fronteira. Não há como a Venezuela fazer uma incursão terrestre para a Guiana sem passar por território brasileiro, o que também torna essa opção inviável a Maduro.
Mesmo assim, internamente, foi importante para o líder venezuelano se mostrar favorável a voltar a considerar Essequibo como parte da Venezuela, especialmente com o pleito de 2024 se aproximando. Para o povo venezuelano, essa questão é extremamente popular, o que explica inclusive o fato das oposições ao líder bolivariano também, em geral, reivindicarem o território. Algumas dessas lideranças se animam a defender soluções ainda mais inflamadas do que um plebiscito, o que também é mais fácil de se fazer quando se é oposição. Mesmo assim, não deixaram de criticar Maduro pelas suas ações, classificando o plebiscito como sem valor e algo que isolaria ainda mais o país do resto do mundo.
No que concerne ao Brasil, o que a fala do presidente Lula não conseguiu conter, ao comentar o caso pela primeira vez, é que seria mais do que inoportuno para os interesses brasileiros ter um conflito escalando entre dois países vizinhos e aliados. O surgimento de um terceiro front tão perto de casa seria muito indesejável para a diplomacia brasileira, ainda mais durante a campanha de Lula, em conjunto a outros países, pelo fim dos conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio.
Por isso mesmo que o governo foi veloz no envio do assessor diplomático especial, o ex-ministro do Itamaraty, Celso Amorim, para uma conversa com Maduro em Caracas. Posteriormente, tanto na sua coletiva de imprensa da COP28, em Dubai, como na 63ª Cúpula do Mercosul, no último dia 7, Lula pediu mais uma vez o fim da animosidade. Seu plano parece ser conseguir traçar um novo détente aos crescentes conflitos globais, e essa questão com a Venezuela pode ser um primeiro teste de efetividade ao seu papel de liderança para soluções nestes moldes. O governo brasileiro também já informou que o país não permitirá que seu território seja violado, confirmando que as Forças Armadas já estariam de aviso e em prontidão, a caminho da região.
Além disso, Lula deixou claro que caso haja a necessidade de um mediador externo para esse conflito, o Brasil quer sê-lo. Esse posicionamento é importante porque afasta as tentações de potências externas mais distantes em querer esquentar o conflito como uma forma de confrontar seus interesses econômicos e políticos usando a região como um proxy. Os esforços do presidente brasileiro teriam já inicialmente dado frutos, pois após suas ligações aos líderes da Venezuela e Guiana, ambos os países teriam aceitado a realização de um encontro para tratar de Essequibo, convidando Lula para ser um observador. A reunião acontecerá na próxima quinta-feira (14), em São Vicente e Granadinas, no Caribe. O presidente do país caribenho também estará presente como um intermediário. Até o momento, não se confirmou se Lula estará presente ou se enviará Amorim.
Dificilmente se imagina que se chegará a isso, mas outros problemas podem surgir desse renascente conflito territorial. Quem alertou para essa outra possibilidade, que seria a maior preocupação brasileira, foi Amorim. O assessor especial alerta que a situação de Essequibo pode ser utilizada como uma desculpa para o aumento de bases militares estrangeiras na região da Bacia Amazônica. Mais precisamente, bases estadunidenses no território da Guiana. Isso não só pioraria as tensões com a Venezuela, como aumentaria o militarismo em uma região importante para os interesses geopolíticos do Brasil.
O medo da presença internacional na Amazônia é antigo. A necessidade de evitar a presença militar na região foi compartilhada desde Vargas até os militares da ditadura. A região amazônica é a maior bacia hidrográfica e repositório de biodiversidade do mundo. Ao Brasil, não interessa o aumento de presença militar de nenhum país estrangeiro ali, por motivos de defesa da soberania do território e da proteção de sua zona de segurança e influência.
As ações de Maduro provavelmente ocorreram por motivos internos e certamente não são oportunas para mais ninguém entre os envolvidos e interessados. De qualquer forma, já vieram. A discussão sobre quem tem mais direito a ocupar Essequibo é menos importante do que a compreensão de como pode ficar a balança de poder na região. O mais novo desafio de Lula é demonstrar como manter o détente, ou seja, como relaxar as tensões deste conflito. Sua mediação é uma oportunidade de provar ao mundo que pode ser um líder deste calibre. Uma derrota diplomática, no entanto, seria tremenda aos interesses da política externa brasileira.
Daniel Azevedo Muñoz é professor e jornalista, mestre e doutorando em História Contemporânea pela Universidad Autónoma de Madrid. Integra o grupo de pesquisa em Jornalismo Popular & Alternativo, da Universidade de São Paulo.