Estrangeiros para nós mesmos
Na Europa, muitos locais se tornaram depósitos de refugiados. Centenas de pessoas permanecem até 18 meses detidas, aguardando seu desterro sob coação física, psicológica e moral. São cenas surpreendentes para um continente que apregoa valores como o direito, a liberdade e a dignidade humana
Há anos buscam definir como “um problema” a presença de imigrantes na França. Agora, livrando-se de vez de qualquer reticência, a mídia nos apresenta uma “evidência”: nós suportamos essa imigração, mas chegou o momento de escolhermos com quem queremos conviver. “E os estrangeiros que não tiverem documentos estão destinados a retornar a seu país.”
Na verdade, trata-se de uma obra de caridade arrancar essa gente das mãos de seus exploradores europeus. Tudo muito bem administrado, feito da maneira mais limpa possível. À francesa. Sob esse argumento, nossa cultura moral e política acaba comportando cenários antes inimagináveis. Alguns locais se tornaram depósitos de pessoas, onde indivíduos e famílias inteiras estão trancafiados. Julgados culpados por não preencherem os numerosos critérios de nossa hospitalidade, esses refugiados se vêem arrancados de sua e de nossa vida. Detidos, ficam até 18 meses aguardando sua expulsão sob coação física, psicológica e moral.
Cidadãos nos contam o que viram e viveram nas ruas, no metrô e em aviões: cenas chocantes de interpelações e de deportações, sempre repletas de brutalidade. Rostos – ilegais? – imperceptíveis são desfigurados pela angústia ou pela vergonha.
Há, da mesma forma, o estresse dos profissionais de segurança. As emoções de ambas as partes, os gritos, as cuspidas, os choros, os insultos, o medo e a piedade são convertidos em fatores de desaceleração, em riscos de maus resultados. É fácil imaginar o estado de tensão dos profissionais encarregados pela escolta desses degredados, a pressão exercida sobre eles para que atinjam as metas, crescentes. Se falharem, o “clandestino” desce do avião com o desejo de colocar de novo seus pés em nosso chão. E aí é preciso recomeçar tudo…
Mas agora nossas escoltas estão mais bem equipadas e todos os aspectos práticos são levados em conta. As luvas espessas prevêem mordidas que podem causar infecções futuras. Os bebês vão para os braços de alguma funcionária da polícia, mais eficazes que os de uma mãe algemada se jogando ao chão para não partir. Lições foram aprendidas. Aprendeu-se a conter o crescimento vão da esperança, proporcional ao risco de os policiais ultrapassarem os limites morais. Acumularam-se dados preciosos sobre o comportamento dos deportados – a nigeriana é violenta e o chinês, um feixe de nervos.
Sabemos agora que é necessário acompanhar a evolução psicológica de cada um até a hora da decolagem, mantendo um diálogo superficial e apaziguando as resistências com um tom firme e calmo: “fique tranqüilo e você voltará legalmente; resista e nunca mais entrará na França”.
O embarque no avião também é planejado e feito com antecedência, separado dos passageiros comuns – sim, há vôos conjuntos. Os deportados são colocados em um corredor de assentos vazios, no fundo da aeronave. Um dos profissionais se encarrega da negociação com o comandante, eventualmente ofendido por não ser a autoridade máxima a bordo. Outro fala com os passageiros mais espantados e chocados, potenciais causadores de confusão. De acordo com o perfil do viajante que questiona as escoltas, as respostas variam gradativamente, desde a informação – “estamos aplicando a lei” – até a intimidação e a ameaça. Se o número de viajantes inoportunos aumentar, os oficiais passarão à franca demonstração de força, detendo os perturbadores e perseguindo-os juridicamente por atrapalhar o vôo da aeronave ou por incitação ao motim.
Há cinco anos, o pessoal de segurança participa de formações específicas, recheadas de observações de campo. Graças às câmeras de vigilância, pode-se rever indefinidamente uma deportação. Destacam-se os erros cometidos e o instrutor mostra os lugares precisos do corpo, os gestos técnicos recomendados para imobilizar braços e pernas com tiras de velcro. Veja só, em dois minutos, obtém-se uma múmia transportável.
Não é mais permitido “dobrar” rapidamente os recalcitrantes, tapar-lhes a boca com as mãos e sentar-se sobre suas costas até a decolagem, para evitar que sejam vistos ou chamem a atenção dos outros passageiros. Antes da proibição, dois homens morreram assim: o coração deles parou ainda no território francês.
Mas um problema persiste: o dos “resíduos sonoros”. Como impedir que o deportado amotine a tripulação e os passageiros com seus gritos? Uma solução foi encontrada nas artes marciais: basta exercer pressão em pontos determinados do pescoço para cortar a respiração. Se o cérebro não é mais irrigado, o deportado não tem mais voz.
A violência da deportação é intrínseca. Do fax da prefeitura ao assento do avião, da prisão administrativa à refeição, a lógica desumana da expulsão se desenrola até a indignidade final, endossada pelos policiais. Ela estava inscrita já de saída: a pessoa não vale nada. Por fim, os responsáveis pela escolta levam seres humanos inertes, em posição horizontal, carregados como coisas.
Cultura estadista da mentira, da arapuca, do contorno deliberado das leis e dos dispositivos de ajuda existentes em nossas democracias…
E agora a Cimade – Serviço ecumênico de ajuda mútua1, que atua ao lado daqueles que são expulsos, está ameaçada. Seus membros acompanham a chegada aos centros de detenção franceses de pessoas cuja vida foi revirada em algumas horas. Muitas carregam apenas alguma roupa que lhe deixaram pegar, papéis e às vezes um bebê.
A presença da Cimade nesses lugares é o que resta hoje da presença francesa de fato, do nosso olhar. Por meio de seus relatórios públicos, é um organismo humanitário que aponta, para a administração, a polícia, os responsáveis políticos e os cidadãos, algumas faltas inaceitáveis. Querem calar também essa voz. Então elaboraram uma nova lista de critérios e exigências: abre-se o humanitário à concorrência para desagregar a experiência acumulada. Esmigalha-se o território em “lotes” para impedir uma visibilidade de conjunto. Exige-se neutralidade e confidencialidade. O humanitário nunca será neutro. Efetivamente, com o humano vêm o direito e a dignidade da pessoa. Da mesma forma que o segredo e o arbitrário combinam com os lugares fechados, com os abusos e a violência de nossas prisões.
O que podemos dizer em uma hora dessas? Esperam que estejamos tranqüilos? Ainda somos aqueles que querem continuar falando nossa língua: “direito”, “liberdade”, “dignidade” da pessoa. Aqueles que pensam que para eles valem nossos textos e nossas crenças na perenidade da universalidade dos valores. Porque o modo como hoje se tratam, entre nós, esses estrangeiros, os mais vulneráveis, diz alguma coisa de grave sobre a França e sobre a Europa em relação ao resto do mundo. Sobre o que éramos e sobre o que nos arriscamos a ser amanhã. Estrangeiros para nós mesmos?
*Tassadit Imache é escritora e ex-membro da Comissão Nacional de Deontologia da Segurança (CNDS).