Euro, a hesitação antes do fim?
O que acontece quando o último refúgio é abalado pela tempestade? No dia 23.11, investidores fugiram do leilão da dívida alemã, sinal de uma desconfiança inédita. Presos em sua própria armadilha, os mercados, que exigiam rigor, agora temem a depressão. Em resposta, multiplicam-se “cúpulas”, cada vez mais, inúteisFrédéric Lordon
Sabemos por conhecimento empírico que podemos assistir ao Magro jogar uma torta na cara do Gordo (ou vice-versa) inúmeras vezes e recomeçar sem nunca nos cansarmos. Mas… e as reuniões de dirigentes europeus? Por um lamentável erro de avaliação, embora sem dúvida na louvável intenção de combater a morosidade, a União Europeia (à qual poderíamos acrescentar o G20) parece ter considerado que a repetição cômica era uma possível arma contra a crise. Não é possível ver outra hipótese à altura da espantosa recorrência da farsa, que se tornou a única linha firme e clara dos governantes europeus, inclusive, em estado de estupefação total.
É preciso reconhecer, a favor deles, que, no entrave das limitações presentes − monumental choque recessivo pós-crise financeira, vigilância permanente das políticas econômicas pelos mercados de capital, independência e covardia do Banco Central Europeu (BCE), obsessões ortodoxas alemãs, falta de uma soberania unitária −, a atual equação do euro é rigorosamente sem solução.
Se não é o espírito do Gordo e do Magro que reinam hoje na Europa, então pode ser o de Santo Agostinho: credo quia absurdum (“creio porque é absurdo”). E é verdade que a obstinação dogmática pró e contra todas as invalidações do real é a última coisa que realmente impressiona na Europa. Afinal de contas, estamos apenas na quinta reunião de dirigentes da Eurozona,1 a parte angustiante consistindo na constância da aberração, e a parte cômica, na repetição de comunicados se felicitando por ter enfim conseguido uma solução global (compreensível) aos problemas da zona do euro… antes que tudo tenha de ser feito outra vez. Sabemos que o público é inclinado à dispersão, e é sem dúvida por isso que a iniciativa sente a necessidade de renovar o espetáculo propondo sensações cada vez mais fortes (novas instituições, novos países a salvar, novas ferramentas financeiras, orçamentos à disposição crescendo sem parar etc.). Na verdade, quase ninguém tem vontade de rir, nem mesmo do último encontro do Eurogrupo no dia 27 de outubro de 2011, cujas formidáveis (e sempre compreensíveis) realizações não levaram nem uma semana para serem reduzidas a quase nada pelo aparecimento do referendo grego, um recorde absoluto.
Na realidade, e é sem dúvida esta a especificidade de uma época que só se compara imperfeitamente à crise dos anos 1930, as reações governamentais têm um caráter duplo, aparentemente contraditório, de uma perfeita confusão, na qual a improvisação luta com a incompreensão crassa dos eventos em andamento, e da utilização oportunista, mas extremamente metódica, de um plano neoliberal inflexível. É preciso ter em mente essa ambivalência para explicar tanto os encontros “Helzapoppin” quanto a impressionante ruptura estratégica que permite ao sistema atual cavar no fundo da (sua) crise a oportunidade de um retrocesso histórico sem precedentes. Coerência e incoerência têm pesos iguais neste período surpreendente, em que o destino do neoliberalismo está em jogo no sistema binário da destruição lenta e definitiva ou da explosão em pleno voo.
Os interesses no esquecimento são tão poderosos que é preciso relembrar o tempo todo o quanto os eventos atuais têm sua origem ligada à crise dos créditos hipotecários, ela mesma uma perfeita expressão de uma configuração do capitalismo, na qual a compressão indefinida dos salários só deixou como solução para a manutenção da demanda o superendividamento das famílias. Da mesma forma que, em razão dos resgates dos bancos e às recessões interpostas, o Estado se encontrou contra sua vontade num desastre financeiro privado… e assim a crise imobiliária foi alegremente metamorfoseada em crise financeira pública. É, então, próximo ao G20, e em suas edições de 2009 (Londres e Pittsburgh), que tem início a sequência de encontros stop-and-go. Mas quem ainda se lembra dos gritos de vitória dados em conjunto por governantes e consultores, sentindo-se aliviados provavelmente na mesma proporção do medo que os havia surpreendido no outono [no Hemisfério Norte] de 2008, quando se chegou tão perto da beira do abismo? É verdade que mais vale esquecer os comunicados triunfantes, as promessas de rerregulação financeira (que parecem bonitas em 2011, quando o sistema bancário ameaça novamente uma ruína total) e as garantias de que “a crise agora ficou para trás” que hesitamos entre catalogar na categoria de alegre provocação dadaísta ou de burrice astronômica. Não foi preciso nem um ano para que a reprise anunciada se manifestasse seriamente e que a revelação do estado de ruína das finanças públicas gregas servisse de detonador, o que permanece sendo a pior reversão de toda a história da política econômica. Pudemos por um instante ter a ilusão de que os governos souberam aprender com os erros do passado, principalmente com os desastres da Grande Depressão, mas nada disso! A aceitação dos déficits pelo jogo dos estabilizadores automáticos,2 única estratégia de meio-termo praticável (não era a tutela delirante dos mercados), não durou um ano. E a Grécia se apresentou como o pretexto ideal que, aparentemente bem situado para derrubar todo o dispositivo da política orçamentária, brutalmente passou da prática sensata dos déficits para a aventura sem esperança de sua redução frenética.
Exceto por aqueles que persistimos em chamar de “responsáveis”, agora conhecemos demais – elas estavam evidentes desde o começo – as razões que levam a estratégia da austeridade ao fracasso: a impossibilidade, para cada um separadamente, de compensar pela demanda externa o estrangulamento da demanda interna, porque todos em volta fazem a mesma escolha de arrocho, conduzindo fatalmente a reduções tais das taxas de crescimento que as perdas das receitas fiscais destroem o efeito das reduções de despesas. Tudo acontece sob os olhares, e sob a autoridade, dos investidores internacionais, cujo horizonte temporal é rigorosamente incompatível com o meio-termo necessário a um ajuste macroeconômico dessa amplitude. O que se segue é esse encadeamento absurdo no qual as elevações das taxas de juros provocadas pelos ataques de pânico especulativo degradam cumulativamente os equilíbrios fiscais (a dívida aprofunda o déficit, que alarma a finança, que faz subir as taxas, que aumentam a dívida…), ao que as políticas econômicas respondem aprofundando o aperto… e as dívidas – de vez em quando a Standard&Poor’s ou a Moddy’s trazem sua amável contribuição ao clima de loucura geral. Incentivados pelo pânico financeiro, pela alta das taxas e pelas reações aberrantes das políticas econômicas, os países se cobram mutuamente em uma sinergia tóxica que a série de reuniões europeias leva a cada vez maiores intensidades.
Correndo então o risco do paradoxo, essa linha de caos é dobrada por uma linha estratégica que vê em cada nível o crescimento da desordem ser acompanhado pelo crescimento paralelo dos avanços neoliberais. Pois a crise não está perdida para todo mundo. E não somente para os banqueiros, graciosamente restaurados pelos bônus e dividendos desde o outono de 2008. O desvio do foco da atenção dos defeitos da finança privada para o “problema da dívida pública” terá levado a seu mais alto ponto uma certa arte da diversão, da retratação e do contra-ataque. Não que nada esteja acontecendo para o lado das dívidas públicas – inclusive raramente foi vista uma explosão tão espetacular. Mas nada acontece como efeito direto da crise financeira privada – e os banqueiros, que afirmam não dever mais nada à sociedade pelas ajudas de emergência, foram reembolsados, agindo como se a recessão que se seguiu, o desabamento das receitas fiscais e a explosão dos déficits não fossem culpa deles. Eles lembram aprendizes de confecção de fogos de artifício que acham que ficaram quites por terem reembolsado a pólvora depois de deixar atrás de si o prédio destruído.
Agenda conservadora
A oportunidade, que não foi perdida pelos banqueiros, também não está sendo desperdiçada pelos gestores atentos do programa neoliberal, a quem se reconhece ao menos o real talento de ter convertido em grande avanço uma crise que deveria assinalar sua desqualificação histórica. Havia muito tempo, as gesticulações sobre o tema da “dívida” tentavam, pelo cruzamento de relatórios Pébereau3 ou Attali4, preparar o terreno e habituar os espíritos à ideia do corte. Mas todas as comédias de imprecação ou os tremores da falência que se aproximava não eram suficientes para fazer acreditar na existência de um problema inexistente – em todo caso até 2008. A crise financeira privada que faz crescer a olhos vistos a dívida pública, ela sim, conseguiu. E como o “problema da dívida” nunca pareceu tão objetivamente constituído, uma combinação heteróclita de estratégias oportunistas e de pessoas que entendem as coisas ao pé da letra se enfiou numa brecha para proclamar, falsamente preocupada e na verdade exultante, a urgência – enfim – do grande ajuste. Sob o disfarce de uma resposta “racional” e “necessária” da política orçamentária a uma conjuntura particular, trata-se na verdade de uma estratégia estrutural de encolhimento, deve-se dizer até desmantelamento – do Estado social que chega à primavera de 2010 levado pela força de uma situação na qual os liberais acreditam poder usar uma justificativa suficientemente válida para fazer passar o que até então não passava. Já se conheciam os procedimentos comuns de ajuste orçamentário: a não substituição dos funcionários aposentados, a redução de salários nominais, os cortes selvagens nas despesas públicas, a diminuição dos serviços sociais, o aumento da TVA5 etc., mas essa conjuntura abençoada pelos deuses autoriza essas práticas numa escala sem precedentes. Antes de acrescentar a mudança qualitativa à simples intensificação quantitativa. Não é por acaso que a ideia de ajuste orçamentário surgida inicialmente no começo de 2010 sob sua forma “comum” se deu desde 2011 na forma superior de uma dita “regra de ouro”,6 esforço inédito de constitucionalização do equilíbrio das finanças públicas, cúmulo da despolitização e sonho neoliberal de um ajuste automático, subtraindo a deliberação soberana e descartando toda objeção às normas longínquas supremas e inquestionáveis da Constituição.
A característica mais impressionante do neoliberalismo reside com certeza em sua capacidade de alimentar seus avanços com seus próprios fracassos. E os encontros europeus são o lugar por excelência dessa transmutação – cujo fim sem dúvida ainda não vimos. Pois a própria austeridade se transmuta de forma tão notável quanto irreversível (só com a ingenuidade de uma criança se poderia acreditar que ela é transitória e limitada, que é um “momento ruim”). E, além disso, a austeridade conhecerá o mesmo destino funesto que as precedentes descobertas liberais… e o mesmo excesso glorioso. Dessa vez, mesmo conservando o que foi tão bem protegido, será preciso mudar de campo, pois a contraprodutividade tóxica das austeridades europeias coordenadas agora está visível demais (os investidores demandam uma coisa e o seu contrário: a disciplina orçamentária e o crescimento, metodicamente assassinado pela disciplina orçamentária). E começa a ficar visível para os próprios governos, totalmente a reboque dos mercados e ocupados em acompanhar como podem as mudanças de suas ordens sucessivas. E enfim, mas dessa vez de modo mais sério, visível para o FMI, que começa a se preocupar que a restrição da retomada7 (e mesmo Christine Lagarde parece agora duvidar das possibilidades sincréticas do “rinascimento”, da “rilance”),8 ou para a Comissão Europeia, cujas previsões de crescimento registram os efeitos do desastre anunciado. O crescimento da União Europeia para 2012 foi revisto de 1,75% para 0,5%.9 O Reino Unido, para 2011, passou de 1,7% para 0,7%; em 2012, de 2,5% (!) para 0,6%. A França revê sozinha seus próprios anúncios: de 1,75% para 1%. Até a Alemanha percebeu finalmente que não se pode sobreviver sozinha no meio de um oceano de colapso – ainda mais quando seu modelo de crescimento é baseado nas exportações… 2012 não será 1,8% como previsto, mas 1%, disse o governo alemão, e mais provavelmente 0,8%, segundo institutos independentes.
O que pode restar da estratégia de ajuste dos déficits quando todos os crescimentos afundam num belo conjunto e que até essa sincronização promete algumas sinergias acumulativas sangrentas? Os governos parecem ter confusamente consciência disso, e podem-se já observar as premissas de uma mudança de atitude que não abandonaria tanto as preciosas conquistas do rigor quanto acrescentaria a elas novos desenvolvimentos em novas direções. É que na verdade o neoliberalismo tem duas obsessões: o Estado e a resistência dos assalariados. Mas, como as coisas não poderiam ser ditas com essa alegre brutalidade, ele esmaga o primeiro argumentando “dívida” e ataca a segunda dizendo “custo do trabalho e competitividade”. E eis onde o impasse da austeridade oferece sua própria saída: se o rigor se revela funesto do próprio ponto de vista de seus objetivos alegados (a redução dos déficits), nada impede acrescentar a ele a estratégia do renascimento do crescimento pela competitividade – quer dizer, pela redução do custo completo do trabalho.
Veremos logo, já podemos ver na verdade, a mudança de discurso das políticas econômicas europeias para moderar a lógica das simples limitações de despesas e substituí-las progressivamente pela ideia da mudança pelas exportações competitivas: o aperto da demanda interna está agora evidente demais, a salvação reside então na demanda externa. Rebatizada de “desvalorização interna” com a ideia da maquiagem verbal que é a marca de uma época, essa reinvenção da desinflação competitiva dos anos 198010 conhecerá o mesmo fracasso que sua versão original, e por pelo menos duas razões. Em primeiro lugar, e supondo que ela tivesse qualquer eficácia intrínseca, ela só manifestaria seus benefícios a médio e longo prazo (foi necessário à Alemanha uma década de deflação salarial para constituir sua vantagem competitiva atual), quer dizer, num horizonte temporal desproporcional com a urgência do reinício do crescimento capaz de reduzir rapidamente as relações dívida/PIB.
É a própria ideia de que todos os Estados europeus adotem unanimemente essa estratégia que a deixa ainda mais claramente fadada à inutilidade, posto que ela só faz sentido sendo unilateral! A vantagem competitiva é um dado relativo. Claro que podemos desejar a conversão de todos ao virtuoso modelo alemão, mas somente à custa de esquecer que sua generalização é em si mesma autodestrutiva. Só sobraria a austeridade propriamente salarial unida à austeridade orçamentária, e uma compressão suplementar da demanda interna vindo se somar à ausência de expansão da demanda externa, esplêndido resultado, todos concordam. Finalmente, pouco importa: a ineficiência das políticas neoliberais nunca foi razão suficiente para recusá-las, só o que resta é que todas as conquistas institucionais constituídas no intervalo que as separa do flagrante de fracasso, conquistas cujos principais objetivos já foram indicados pelo “pacto para o euro” de março de 2011 – redução das pensões, facilitação das demissões, descentralização das negociações salariais, desmantelamento dos status protegidos (CLT, cargos públicos) em conformidade com a lógica liberal querendo que tudo o que puder ser concebido como flexibilizável será flexibilizado –, todos temas aos quais devemos nos acostumar e que serão em breve o novo hit da moda da política econômica.
Mas a crise das dívidas soberanas, cujo desenvolvimento pode a todo instante ficar fora de controle, dará tempo aos governos para negociar essa nova transformação? Nada é menos certo, pois a corrida já começou, entre as manobras retardadoras do neoliberalismo e a dinâmica de sua própria decomposição. As finanças, que agora passaram para o modo “pânico”, misturadas com sua eterna lógica de teste dos limites, foram alinhar os candidatos à salvação um atrás do outro – e quanto mais os troféus potenciais são grandes, maior a excitação. A Itália está agora no centro das atenções, e teme-se que ela não se safe, a não ser pelo plano de salvamento (bail-out). A extravagante nomeação dos primeiros-ministros tecnocratas-banqueiros, barbarismo político tão grosseiro que até mesmo as mídias se deram conta, será apenas fogo de palha. O único mérito que podemos reconhecer nas eminentes figuras de Mario Monti e Lucas Papademos não é simplesmente o fato de serem mais convincentes no manejo dos instrumentos, ou seja, o próprio objeto do naufrágio? O que se pode esperar deles é que façam a mesma coisa que seus predecessores, mas pior, ou então serem os promotores da “desvalorização interna” que terá o mesmo destino. É verdade que Monti há tempos atestou suas credenciais europeias indicando que via no euro uma oportunidade histórica de “germanizar a abordagem orçamentária” da Itália.11 Seria possível então que, daqui a alguns anos, sua entrada repentina no cenário político aparecesse retrospectivamente como uma dessas aberrações que assinalam as manobras desesperadas de um sistema próximo do fim – antigos dirigentes da Goldman Sachs e/ou do BCE, ex-economistas certificados das universidades mais devotadas à transmissão da ortodoxia falida,12 ou seja, mais ou menos o retrato típico de tudo o que fracassou… e que não por isso deixa de existir; e, ainda por cima, o desprezo da política democrática, como cai bem a todos os governos que se pretendem “especialistas”.
Com certeza esses dois homens providenciais não encontrarão muita coisa na situação atual para ajudá-los. Desde que a Itália se tornou a bola da vez, fica muito evidente que o Fundo Europeu de Estabilização Financeira (EFSF, na sigla em inglês) não está mais à altura dessa função. Um cálculo rápido13 sugere que a Itália sozinha acrescentaria algo como 600 bilhões de euros aos custos potenciais do EFSF – por enquanto dimensionados para 440 bilhões de euros. Claro, o encontro de 27 de outubro se deleitou em aumentar a capacidade dos fundos para 1 trilhão… mas ao anúncio não se seguiu nenhum detalhe prático. A Alemanha repetiu que ela não iria além de seu teto atual de comprometimento. Os países de fora (a China ou as petromonarquias) para quem se passou o chapéu pareceram estranhamente pouco entusiasmados com a ideia de embarcar na jangada da Medusa. Isso sem sequer imaginar o que aconteceria com o pobre fundo se a aventura da Itália fosse seguida pela Espanha ou, imaginem só, a França. Por um trágico efeito tesoura, cada novo candidato ao resgate bate na porta do EFSF duas vezes, primeiro evidentemente do lado dos desembolsos, em seguida do lado dos resgates, pois não é preciso dizer que ao entrar para a lista dos socorridos o país abandona ipso facto a lista dos salvadores. O que se segue é uma readequação do valor do conjunto entre os que sobraram… o que torna mais cru o limite do princípio consistindo em salvar uns do superendividamento superendividando os outros. Sem nem sequer chegar até o bail-out declarado, a simples perda do triplo A pela França enviaria o próprio EFSF para o fundo, ameaçado por sua vez de também ver sua nota rebaixada na sequência de seu segundo principal contribuinte – e desde já sabemos que se trata de um evento que seria insensato excluir completamente.
Para sua infelicidade, o pobre fundo está acima do mercado, aflito com missões que não lhe beneficiam em nada. Pois eis que especialistas inquietos, a quem sem dúvida se uniram secretamente alguns governantes em dificuldades, gostariam de fazê-lo comprar nos mercados secundários os títulos soberanos dos Estados-membros em dificuldades, uma maneira de refrear a alta de suas taxas de juros. Mas esse tipo de operação não poderia ser o negócio de um fundo cujos meios são por definição limitados – e que, claro, os investidores não terão consistentemente “testado”. Somente um banco central, imprimindo moeda em quantidade virtualmente infinita, pode se colocar entre a especulação com alguma chance de sucesso. Ainda é preciso que ele se decida, e ainda mais que ele diga isso em alto e bom som, quer dizer, anunciando comprometimentos ilimitados, única maneira de impressionar os mercados e de fazê-los fluir. O BCE não faz nem uma coisa nem outra. Sem dúvida ele interviria, neste momento preciso, mas o menos possível e quase vergonhosamente, em todo caso arrastando ostensivamente os pés, e sempre tarde demais, quando a situação já ultrapassou os limiares críticos da deterioração.
É que o BCE é uma das grandes referências do defeito europeu: prisioneiro de dogmas absurdos, de regras paralisantes e de obsessões alemãs, ele está igualmente no epicentro do problema objetivo do perigo moral no seio de uma comunidade de políticas econômicas conduzidas independentemente, mas solidarizadas de fato por seu comum pertencimento à Eurozona. Encurralado, o BCE tenta agora acertar tão delicadamente quanto possível uma posição de compromisso em que trata de sua própria existência. Intervir maciçamente, como lhe pedem atualmente, equivaleria a seus olhos a validar o mau comportamento dos Estados com finanças degradadas, que ainda por cima sugere implicitamente a possibilidade de abusar dele de novo como último recurso, no fim das contas sempre disponível – ou seja, a pior incitação possível para a ortodoxia orçamentária de quem ele pretende ser o guardião. Mas não intervir é correr o risco de deixar a situação coletiva se deteriorar até um ponto em que a destruição da zona do euro será a única saída possível – e com ela o desaparecimento do BCE!
Ser infiel a si mesmo ou então perecer, esse é o dilema do qual o BCE tenta se safar como pode. Mas não é tarde demais? E, por ter sacrificado demais seus princípios, o BCE já não passou, junto com o euro, do ponto do qual não tem mais volta? A generalização da lógica depressiva, inevitável correlato das austeridades cegas, aparece agora em todos os espaços especulativos de onde resultam a alta incontrolável das taxas de juros (a Itália, mais recentemente, onde as taxas por um período de dez anos passaram de 5,8% no meio de outubro para 7,5% no meio de novembro) e a degradação cumulativa da dívida do Estado em questão. A França, tremendo, espera pela revelação de sua sorte. Ela sabe que está numa zona cinza ou já é um alvo em estado latente, entre rumores, “desprezos” de agências e relações suspeitas.14 Por enquanto, todas as economias que entraram nessa zona só saíram com a especulação desvairada e fadadas a procurar o EFSF – mas do lado ruim do guichê.
Da inutilidade das reuniões à repetição, condenada a percorrer novamente ad nauseam as contradições sem solução da atual moeda única, até as nomeações aos mais altos postos de tecnocratas de quem se espera que sejam providenciais, passando pela epidemia de falsas alternâncias (Grécia, Portugal, Irlanda, Itália, Grécia de novo, Espanha e depois a França, talvez), substituindo os mesmos pelos mesmos, a zona do euro transpira desespero. E começa a feder a morte. Talvez seja a insurreição vindo, é o despedaçamento! – mas despedaçamento de quem? O paradoxo da época quer que seja simultaneamente o das populações – que já foi iniciado –, mas também talvez o do próprio neoliberalismo. Pois este último bem que poderia estar dando seus últimos suspiros. Ainda mais que a inepta “desvalorização interna”, última solução que pode nos salvar a todos, trata apenas de uma pequena meia-década – não é certo que as finanças tenham o bom gosto de esperar até lá. O campo de ruínas que se seguirá ao encadeamento de falhas soberanas e desmoronamentos bancários terá ao menos a poderosa virtude da tábula rasa, e para todos, inclusive os liberais. Nunca se viu um sistema de dominação entregar suas próprias armas. É preciso colocar energia nisso, muita energia; que ela venha da onda de choque de um desabamento sistêmico ou de um levante interno. Que o segundo impulso acompanhe o primeiro, e com todas as suas incertezas, talvez não fosse tão ruim: se, entre o neoliberalismo e a população, um dos dois tiver de passar por isso, que ao menos seja ele.
Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu’à quand? L’éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise financeira), Raisons d’Agir, Paris, 2008.