Europeus desafiam o livre-comércio
Avalizadas pelo Parlamento de Estrasburgo em 8 de maio, as conversações para estabelecer o Grande Mercado Transatlântico entre a União Europeia e os Estados Unidos prosseguem secretas. Entretanto, diante dos perigos desse tratado de livre-comércio, uma resistência da cidadania se organiza dos dois lados do AtlânticoAmélie Canonne e Johan Tyszler
Conselho Regional da Île-de-France […] pede a suspensão das negociações sobre a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), dita Grande Mercado Transatlântico (GMT), em virtude da ausência de controle democrático e de debate público sobre as tratativas em curso.” A região da Île-de-France foi a primeira, na França, a se declarar “zona fora da TTIP” (ou “fora do Tafta”, para retomar a primeira sigla, em inglês, do projeto). Desde a votação dessa deliberação em 14 de fevereiro de 2014, cerca de quinhentas coletividades territoriais francesas de todos os portes (isto é, representantes locais de 54% da população do país) aprovaram uma moção similar.
A adoção de um texto assim pela instância política territorial é um ato essencialmente simbólico. Todavia, as assembleias deliberativas mobilizadas constituem um marco na contestação dos tratados de livre-comércio e investimento, marco que hoje se multiplica pela França e pela Europa (ver mapa na página seguinte). Além dos partidos políticos, inúmeros cidadãos propõem a seus eleitos locais (região, departamento, municipalidade) que votem uma moção. É nesse espírito que o movimento coletivo Stop Tafta, federação de várias associações, sindicatos e partidos políticos, propõe um modelo de deliberação e convida todos a se dirigirem a seus representantes. A votação dessa resolução por uma coletividade não protegerá seu território dos perigos do GMT, já que os acordos internacionais envolvem juridicamente todos os escalões institucionais dos Estados-membros, e muitos prefeitos franceses não deixaram de lembrar isso às instâncias rebeldes. Mas a moção “zona fora do Tafta” permite sensibilizar os eleitos e fomentar a mobilização em torno de questões extremamente delicadas das municipalidades: a defesa do emprego, a proteção dos serviços públicos e do meio ambiente, a invasão dos mercados públicos locais por empresas norte-americanas…
Os militantes esperam que o debate travado num contexto de proximidade possa repercutir nas estruturas políticas nacionais. “O fato de a moção ter sido adotada numa cidade como Tulle, onde o atual presidente da República foi prefeito de 2001 a 2008, é para mim simbólico e de importância estratégica”, salienta Samuel Désaguiller, vereador da cidade. “Várias comunas de perfis políticos variados acataram uma moção parecida em Corrèze.”
A Alemanha tem 228 “zonas fora do Tafta” (entre elas, as cidades de Colônia, Leipzig e Munique); a Áustria, 260 municipalidades dissidentes; a Bélgica, 82 comunas (inclusive Bruxelas); e o Reino Unido, 21 cidades e condados (como Edimburgo, na Escócia, e Bristol). As cidades de Milão e Ancona se juntaram ao movimento na Itália e a vitória do Podemos nas eleições locais espanholas, em maio, estimula essa dinâmica por lá. Militantes tchecos também pensam em encorajar iniciativas locais desde o outono local de 2015.
“Como um troll dos contos noruegueses”
O projeto do GMT não é o primeiro acordo de comércio e investimento que representa uma ameaça dessa amplitude. Vigorando desde 1º de janeiro de 1995, o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (AGCS) foi previamente discutido, durante anos, no maior sigilo.1 Mas sua divulgação provocou a cólera dos cidadãos europeus e o início de uma resistência em torno das “zonas fora do AGCS”, no começo dos anos 2000. “Estamos diante de algo que avança rapidamente e está fora do alcance das mobilizações comuns. A ideia é alterar a relação de forças na base e alertar os eleitos locais”, explica Frédéric Viale, que participou da mobilização anti-AGCS no seio do movimento Attac. A campanha alcançou na época uma dimensão inesperada: 816 coletividades locais e vinte das 22 regiões francesas aderiram a ela em quatro anos. Aos que não acreditam nesse tipo de empreendimento simbólico, Viale retruca: “Foi um espinho bastante doloroso no pé da OMC!”.
De 2013 em diante, a cooperação entre os diferentes movimentos europeus se organizou e as “zonas fora do Tafta” representam hoje apenas uma faceta da mobilização pan-europeia. Contrariamente à campanha anti-AGCS, a resistência atual ultrapassa em muito o círculo dos militantes engajados. Ela se apoia também na Iniciativa Coletiva Europeia (ICE), apresentada à Comissão Europeia em junho de 2014: 230 organizações de vinte países redigiram uma petição exigindo que o Conselho Europeu ab-rogasse o mandato de negociação e não concluísse o outro tratado de livre-comércio, em curso, com o Canadá (Ceta). Novidade do Tratado de Lisboa, a ICE permite desde 2011, a simples cidadãos, instar a Comissão a submeter ao Conselho e ao Parlamento europeus uma proposta de ato jurídico sobre determinado assunto, desde que reúna 1 milhão de assinaturas em pelo menos sete países.
Em 10 de setembro de 2014, a Comissão rejeitou a Iniciativa, alegando que a abertura das negociações era apenas um passo preparatório, e não um ato jurídico dentro do campo legal de uma ICE. Contestando essa decisão diante da Corte de Justiça da União Europeia, os promotores da Iniciativa pretendem mantê-la de forma “auto-organizada” graças a um reagrupamento de mais de 480 organizações. Objetivo: conseguir 3 milhões de assinaturas em um ano e apresentar a mais importante petição europeia registrada até hoje. A coleta se faz de maneira descentralizada em cada Estado-membro, onde um patamar, número mínimo de assinaturas exigidas para que uma ICE seja válida, é definido em função do número de habitantes (por exemplo, 55,5 mil assinaturas para a França).2
Quanto mais o debate e a inquietação pública são desdenhados pelas instituições, mais a contestação se acirra. Em agosto de 2015, cerca de 2,5 milhões de assinaturas já haviam sido colhidas e o encerramento da iniciativa em 6 de outubro próximo parecia um objetivo alcançável. Tanto quanto no caso de uma moção “fora do Tafta”, a utilidade primária dessa petição é seu potencial mobilizador e educativo. A coalizão em torno dessa iniciativa avançou pela Europa durante o verão, indo ao encontro dos cidadãos para consolidar o esforço de sensibilização e tornar audível um problema que, com frequência, se resume a algumas siglas e a uma linguagem técnico-jurídica abstrusa. “Esse tratado é como um trolldos contos noruegueses: transforma-se em pedra quando exposto à luz do dia”, explica Laura Gintalaité, militante lituana da coalizão. “O objetivo da campanha, país por país, assinatura por assinatura, é trazer à luz os tratados de livre-comércio, pois assim eles não sobreviverão.” Isso porque, quando os cidadãos descobrirem as prováveis consequências sobre os modelos da saúde, educação, agricultura e ambiente, esses acordos de comércio perderão toda a legitimidade.
Como no caso do AGCS, vários eleitos aos parlamentos nacionais e europeu pouco se interessam por questões ligadas ao comércio e ao investimento. Muitos se contentam com uma posição teórica, sem saber nada das verdadeiras implicações dos tratados nos quais comprometem seus concidadãos. No dia 8 de julho de 2015, o Parlamento europeu foi instado a se manifestar sobre as negociações na votação de uma resolução de iniciativa, procedimento corriqueiro em Estrasburgo. Os parlamentares deviam, notadamente, se pronunciar a respeito da inclusão ou não de um mecanismo de controle dos litígios que permitisse a empresas estrangeiras levar os Estados aos tribunais de arbitragem.3 Durante a consulta promovida pela Direção-Geral do Comércio no fim de 2014, 97% do público se manifestou contra semelhante mecanismo.
Enquanto, entre os representantes alemães em Estrasburgo, só os eleitos pelos Verdes e pela Die Linke emitiram voto desfavorável, os deputados socialistas franceses preferiram rejeitar o dispositivo e votaram unanimemente contra a resolução. A ruptura do grupo social-democrático pode ser interpretada como resultado da pressão popular exercida por intermédio das “zonas fora do Tafta” e da ICE, mas também de dezenas de milhares de e-mails e telefonemas transmitidos diretamente aos eurodeputados antes da votação. Estes últimos reconhecem: a pressão obrigou os eleitos europeus a se posicionarem em relação ao que se tornou o problema político principal dos últimos meses em Estrasburgo. Após adiar a votação por um mês, na falta de maioria, o presidente social-democrata do Parlamento, Martin Schulz, conseguiu a ajuda dos liberais e dos conservadores para reter um mecanismo de arbitragem, porém, com juízes profissionais, designados pelos poderes públicos, e a possibilidade de apelar de suas decisões.
Alemães, britânicos, austríacos e franceses promovem campanhas particularmente ativas e aguerridas. O número de assinaturas exigido para que uma petição seja válida no quadro das ICEs foi alcançado em algumas semanas. A resistência surgiu também a leste: países como a República Tcheca, a Croácia e a Hungria atingiram recentemente o patamar para que a iniciativa de cidadania seja acolhida – o que parece notável nesses lugares, onde os problemas europeus quase nunca atraem os cidadãos ou os dirigentes políticos. Com efeito, nessa parte da Europa, a mobilização quase sempre se choca contra outros obstáculos, geopolíticos e sociais. Madalina Enache, militante romena, diz: “É difícil sensibilizar as pessoas sobre um assunto tão complicado quanto o GMT. Aqui, se você não está com os norte-americanos, está automaticamente com os russos. Há também uma espécie de bloqueio. Pensa-se que esse acordo permitirá atingir um nível maior de desenvolvimento baseado no sonho americano”.
Desde o início das negociações, incontáveis debates, encontros e conferências denunciando os perigos do GMT se organizam em toda a Europa. Em 11 de outubro de 2014, nada menos que 1,1 mil ações de protesto (passeatas, reuniões, coletas de assinaturas etc.) ocorreram em 22 países! E quanto aos milhões de europeus e europeias sensibilizados? Como a entrada em vigor dos tratados está prevista só para daqui a alguns anos, a campanha se inscreve a longo prazo, tanto mais que as negociações registram poucos avanços significativos capazes de canalizar os protestos.
Surda às críticas e às exigências dos cidadãos, mas sempre permeável às reivindicações das multinacionais dos setores de energia, finanças ou agronegócio, a Comissão Europeia se obstina em tramar no maior sigilo.4 Somente o Conselho dos chefes de governo tem meios políticos de detê-la. Mas, mesmo nos países onde os cidadãos e seus representantes locais se pronunciaram em massa contra o projeto do GMT (Alemanha e Áustria, por exemplo), nenhum governo quer assumir a responsabilidade de vetar o prosseguimento das negociações. A campanha de mobilização e o trabalho minucioso de educação popular, para fornecer os instrumentos de compreensão necessários aos eleitos e aos cidadãos, apenas começam.
Amélie Canonne é presidente da Associa tion Internationale de Techniciens, Experts e Chercheurs (Aitec), especialista em assuntos ligados às políticas de comércio e investimento e promotora da campanha contra o Tafta (sigla inglesa original do Grande Mercado Transatlântico) na França e na Europa; e Johan Tyszler é responsável na Aitec e na Attac pela campanha contra o Tafta na França e promotor do movimento coletivo nacional Stop Tafta.