“Exército de Caxias”: uma tradição a ser mantida?
Tanto quanto a ideia de pacificação, a noção de “Exército de Caxias” pertence a uma mesma tradição militar, incompatível com a Democracia
Em meio à politização escancarada das Forças Armadas brasileiras, fato novo para as gerações de brasileiros nascidos a partir de meados da ditadura militar (1964-1985), muitos militares e civis evocam o “Exército de Caxias” como senha para o retorno dos militares aos quartéis. No dia 19 abril deste ano, por ocasião das comemorações do Dia do Exército, o presidente Lula afirmou que “este não é mais o Exército de Bolsonaro, mas o Exército de Caxias”. A expressão define – segundo o general Tomás Paiva, em discurso à tropa no mesmo dia – uma “força apolítica, apartidária, imparcial e coesa”.
Será mesmo isso? De onde vem a expressão “exército de Caxias”? O que ela evoca precisamente? Às vésperas de outra comemoração militar, o Dia do Soldado, dia do nascimento de Luis Alves de Lima e Silva (1803-1880), o Duque de Caxias, mais do que nunca é importante revisitarmos essa história.
Primeiro ponto: Caxias, o general e Duque do Império do Brasil, nada tem a ver com essa expressão. Pelo menos, não diretamente. Ela é resultado de uma política iniciada nos anos 1920, mais de 40 anos após sua morte, de recuperação da sua memória. Até então, o grande herói militar brasileiro era o general Osório, considerado um general menos formal no trato com seus subordinados, como se dizia à época, “mais popular”. Porém, com o Exército atravessado por levantes que mobilizavam desde alunos militares até generais, a imagem de Caxias, então tido como um grande “estrategista”, se bem trabalhada, prometia ser um antídoto eficaz contra a indisciplina e a politização dos militares. Entre a Proclamação da República em 1889, primeiro golpe militar da história do Brasil, e a Revolta Tenentista de 1924, só no Exército ocorreram 7 levantes, que sublevaram o país por nada menos que 11 anos. Incluindo a Marinha, o número chega a 13 revoltas.
Foi nesse contexto que, em 1925, por meio de um aviso ministerial, o dia do nascimento de Caxias, 25 de agosto, passou a ser celebrado como Dia do Soldado. A partir de então, como explica o antropólogo Celso Castro, uma série de investimentos simbólicos começaram a ser efetuados: discursos e desfiles eram promovidos em frente à estátua de Caxias, santinhos com sua efígie eram distribuídos pelos formandos da Escola Militar do Realengo (equivalente à atual Academia Militar das Agulhas Negras, AMAN) para os familiares presentes na cerimônia e biografias laudatórias eram publicadas, distribuídas e lidas coletivamente. Uma ação que repetida de vários modos, em celebrações oficiais ou em ordens do dia, transformava o general do século XIX no “protótipo das virtudes militares”, o exemplo maior de legalidade e disciplina.
Naquele momento, a “fala” das autoridades militares voltava-se para dentro. Ou seja, a preocupação maior era conter a politização que dilacerava a hierarquia.
A “Revolução de 30” aprofundou a crise. Apesar do nome, essa foi a segunda intervenção militar da jovem República brasileira, e o Exército saiu dela totalmente fragmentado. As alianças e conflitos entre grupos de oficiais e lideranças civis eclodiram em várias revoltas. Para se ter uma ideia, entre 1930 e 1934, o historiador José Murilo de Carvalho contabilizou 9 movimentações (dentre conspirações, protestos e levantes) de generais, 15 dos demais oficiais e 20 de praças. Tudo isso mesmo com Getúlio Vargas tendo iniciado, ainda em novembro de 1930, uma série de expurgos no corpo de oficiais do Exército. De 9 generais de divisão, só 2 permaneceram. Dos 24 generais-de-brigada, ficaram 7. O corte mais impactante, porém, se deu entre os coronéis. Dos 83, 40 foram reformados. Nesse momento, além do Congresso Nacional, as câmaras estaduais e municipais já tinham sido fechadas e a Constituição de 1891 e as constituições estaduais revogadas.
Quem projetou o expurgo, ao lado de Vargas, foi o tenente-coronel Pedro de Góes Monteiro (1889-1956), que lucrou imensamente com a nova política. De forma inédita e inusitada, em apenas sete meses, passou a general. Seu interesse, porém, não era apenas no Exército. Formado na cultura militar golpista que fundou a República, o jovem general tinha um projeto político para o Brasil. Acionando a auto imagem que já circulava entre jovens oficiais desde pelo menos 1889 – de pureza e superioridade da “classe militar” face aos políticos e ao povo brasileiro, por eles definido como “uma massa invertebrada e amorfa” – Góes Monteiro defendia uma reforma do Estado em bases autoritárias. As Forças Armadas – acreditava ele – eram a única instituição verdadeiramente nacional, capaz de conduzir o processo de reconstrução da nação e do Estado brasileiros. Mas, para tanto, também elas precisavam ser reestruturadas. Daí, os expurgos. Eles eram o marco zero dessa política autoritária que, ironicamente, se pautava na defesa da disciplina e da hierarquia.
Esse é o segundo ponto: a memória do Duque de Caxias deixava de interessar apenas a um processo interno, de despolitização do Exército, para se fundir a um projeto político de reestruturação da nação e do Estado. A partir de 1930, a evocação do Duque de Caxias em celebrações oficiais, além de enaltecer os valores da legalidade e disciplina, enfatizava cada vez mais sua imagem como chefe militar a serviço de um Estado forte.
O movimento constitucionalista de 1932, guerra civil que envolveu São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, e o levante comunista de 1935, que rebentou em Recife, Natal e no Rio de Janeiro, forneceram a chave para que se acionasse outra faceta de Caxias, a de pacificador do Brasil. Aquele que assegurou a unidade territorial, reprimindo as várias revoltas que eclodiram de norte a sul do Império. Foi sob inspiração do Duque que teve início a escalada repressiva que levaria à ditadura do Estado Novo. Ainda em 1932, finda a guerra, Góes Monteiro seria novamente promovido, agora, a general de divisão, o mais alto posto do Exército. Fechado o regime em 1937 com o estabelecimento do Estado Novo, por meio de uma parceria com o general Eurico Gaspar Dutra que se tornaria histórica, comandou a execução de sua política militar, que era também de refundação do Estado e da nação brasileiras em bases autoritárias.
Mas o que há da trajetória de Duque de Caxias em todo esse modus operandi? Seu rigor disciplinar – que transformou caxias em adjetivo – é um mito historicamente infundado. Isso porque a formação na Academia Militar, local hoje por excelência de construção de um ethos fundado na disciplina e hierarquia, no início do século XIX, quando o jovem Luís Alves de Lima (futuro Duque de Caxias) a frequentou, funcionava precariamente e, para os padrões atuais, era totalmente desmilitarizada: o regime era de externato, as regras disciplinares eram as mesmas das escolas civis e os alunos sequer usavam uniformes. Cursar a Academia não era nem mesmo pré-requisito para ascender na carreira. As promoções dependiam da prestação de bons serviços à monarquia e do investimento em redes de relações pessoais. Na verdade, o atual ethos profissional, fundado na disciplina, hierarquia e solidariedade corporativa não estava constituído como padrão de “ser militar” nem para as gerações de Dutra e Góes Monteiro.
O que sem dúvida inspirou esses generais foi a imagem do Caxias pacificador. Esta, sim, foi a tradição que lá no século XIX, entre as décadas de 1830 e 1840, fundou o Exército brasileiro. Até a Guerra do Paraguai (1864-1870), o Exército praticamente não tinha enfrentado guerras. Logo, defender a pátria contra o inimigo estrangeiro nunca foi sua missão primordial. O Exército brasileiro foi erguido como instituição para reprimir movimentos populares e a oposição liberal e, assim, defender um projeto específico de Brasil – o de uma monarquia assentada na escravidão. Foi em meio à guerra contra caboclos, indígenas, pretos e pardos, libertos e livres nascidos no Brasil – todos cidadãos, de acordo com a Constituição de 1824 – que os oficiais brasileiros aprenderam a fazer suas carreiras. Assim, Caxias se tornou o “pacificador do Brasil”. Da repressão à Balaiada, no Maranhão, em 1841, o ainda coronel Luís Alves de Lima e Silva saiu general e barão de Caxias (referência à cidade centro da resistência balaia). Da Farroupilha, no Rio Grande do Sul, em 1845, saiu conde e senador do Império. O título de duque, recebido ao final da Guerra do Paraguai, apenas coroava uma carreira militar e política de sucesso.
Góes Monteiro tentava repetir nos anos 1930 o percurso de Caxias, construindo sua carreira em meio à guerra civil. Se a República não podia nobilitar Góes Monteiro, por outro lado, lhe permitiu saltos extraordinários na carreira. Ele pode ainda, com mais desembaraço, implantar seu projeto político-militar. Até o ano de 1945, último da ditadura varguista, o efetivo do Exército pulou de 48 mil para 93 mil homens em armas; seu orçamento praticamente dobrou, sendo boa parte dele composto por crédito extraordinário, ou seja, negociado no Ministério da Fazenda com a mediação do presidente da República. Quartéis foram reformados, o sistema de ensino ampliado e a força reaparelhada. Outra demanda antiga, efetivada nesses anos, foi a implantação do serviço militar obrigatório e a formação de oficiais da reserva (NPOR e CPOR).
Assim reestruturado, o Exército – historicamente rechaçado pela população em função da violência extrema do recrutamento – se enraizava no tecido social. Milhares de cidadãos passaram a ser, como explica o historiador Frank McCann, continuamente devolvidos à sociedade (após prestar serviço militar) doutrinados no anticomunismo, na crença de que a elite política era corrupta e de que o povo brasileiro era uma massa heterogênea, amorfa e arredia à disciplina e ao trabalho. Apesar das resistências, algumas delas organizadas no interior da própria caserna, pela primeira vez a sociedade se abria ao Exército e muitos brasileiros começavam a defender um Estado militarizado, que dispusesse de amplos e eficientes instrumentos repressivos.
Estes são os três eixos – comunismo, corrupção civil e o povo desqualificado – que fundam a ideia do Exército como tutor da nação ou, se preferirem, como poder moderador. Não à toa, vimos o fantasma do comunismo brotar, de forma absolutamente extemporânea, nos últimos anos. A frustrada revolta comunista de 1935, por um lado, serviu de pretexto para a prisão de militantes políticos, sindicalistas, parlamentares e militares de esquerda, para a suspensão das liberdades constitucionais e para a criação de um Tribunal de Segurança Nacional; por outro, foi um elemento simbólico crucial na composição dessa cultura autoritária. Por mais de 60 anos, até finais dos anos 1990, anualmente, todo dia 27 de novembro (data da eclosão da revolta comunista no Rio de Janeiro), comemorações oficiais reafirmavam o papel político a ser exercido pelas Forças Armadas, unidas e vigilantes, no combate ao “perigo vermelho”.
Para assumir o comando desse novo Exército, era preciso outra mentalidade. E, mais uma vez, a memória do Duque de Caxias foi evocada. Para melhor educar as futuras gerações de oficiais, criou-se o “corpo de cadetes”. Hoje cadete é sinônimo de aluno da AMAN. O que não se sabe é que a palavra tem raízes no século XVIII, e estava associada a uma tradição militar de Antigo Regime. Designava um privilégio, um título honorifico a que tinham direito os filhos da nobreza ou de militares (com patente de major para cima) e que lhes permitia ingressar na carreira sem servir em seus postos subalternos. O Duque de Caxias, filho e neto de militares, assentou praça no Exército como cadete.
Ao recuperar a palavra em 1931 para nomear o grupo de alunos ingressantes na Escola Militar do Realengo, o então coronel José Pessoa (1885-1959) – comandante da Escola – deu um tom aristocrático à condição de aspirante a oficial do Exército. Não por acaso, o corpo de cadetes foi criado também no dia do nascimento de Caxias, 25 de agosto. Mais uma vez, simbolicamente, os alunos da Escola Militar seriam vinculados ao general. Inspirando-se naquele que foi o único duque – grau mais elevado da nobiliarquia – do Império do Brasil, o coronel pretendia constituir “uma verdadeira aristocracia”.
A partir de 1940, a homogeneização do Exército pretendida pelo coronel José Pessoa, que enfatizava a disciplina, avançou e tornou-se uma política institucional discriminatória. O Exército passou a excluir do acesso ao oficialato, como mostrou o historiador Fernando Rodrigues, jovens negros, filhos de imigrantes, de famílias não católicas, de pais não casados legalmente ou com orientação política divergente da do regime.
Foi também no final desta década que a moldagem do Exército inspirada na figura do Duque de Caxias se consolidou, com a decisão do governo Dutra (1946-1951) de transformá-lo em patrono do Exército brasileiro: este é o “Exército de Caxias”!
O Exército tornou-se, sem dúvida, um corpo mais homogêneo e disciplinado, uma corporação. Porém, nada tem de apolítico e legalista. Foi forjado em meio a uma política autoritária, fundada em expurgos internos, em práticas racistas, e na perseguição, repressão e eliminação da oposição política e movimentos populares.
A expressão “Exército de Caxias”, tanto quanto a ideia de Exército pacificador, pertencem a uma mesma tradição militar, incompatível com a democracia. Nas democracias, o Exército cuida exclusivamente da defesa contra inimigos externos. Nunca se envolve em política. Para resolver conflitos e disputas internas, há polícias, que não são militares.
Adriana Barreto de Souza é Professora do Departamento de História da UFRuralRJ, autora dos livros Duque de Caxias: o homem por trás do monumento (Civilização Brasileira, 2008); O Exército na consolidação do Império: um estudo sobre a política militar conservadora (FGV, 2022) e coorganizadora de Pacificar o Brasil: das guerras justas às UPPs (Alameda, 2007).
Muito bom! Excelente artigo. Militares, políticos, jornalistas, estudantes, enfim, toda sorte de brasileiros deveriam lê-lo. Parabéns professora. Uma das mais lúcidas análises do poder militar que já tive oportunidade de ler.
É real, é a pura verdade. Muito esclarecedor.