Explorando memórias coletivas e afetivas: uma conversa com a escritora carioca Lilian Dias sobre ‘Futuro do Pretérito’, seu novo livro
A obra se passa em um período marcado pela redemocratização após a ditadura militar, a criação de uma nova Constituição e o advento da militância ambiental, o que traz um olhar político e cultural para a narrativa
Imagine lembrar-se apenas do que não viveu e ter que redescobrir suas memórias a partir do que se está vivendo. Esse é o ponto de partida da obra Futuro do Pretérito (Editora Labrador, 176 págs.), que narra a história de Mariana, a única sobrevivente de um acidente aéreo, que acaba perdendo a capacidade de memorizar fatos cotidianos. Ela passa a se lembrar do passado por meio de experiências do presente.

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Além de abordar a memória afetiva, o livro ambientado na década de oitenta também aborda a memória coletiva: se passa em um período marcado pela redemocratização após a ditadura militar, a criação de uma nova Constituição e o advento da militância ambiental, o que traz um olhar político e cultural para a narrativa.
Esses temas são muito caros a Lilian, que cursou as faculdades de Filosofia e Ciências Sociais, mas escolheu não seguir carreira acadêmica. Trabalhou como tradutora de inglês, francês e espanhol até começar sua trajetória no universo dos livros. Antes de se dedicar completamente à escrita, foi sócia de sebos em Copacabana e no Centro do Rio e trabalhou como restauradora de livros antigos.

Confira abaixo a entrevista com a autora:
Qual é a sua visão sobre a relação entre a memória individual e a memória coletiva na construção da realidade? Como essa visão aparece na obra?
A principal mensagem do livro seria a de que o mundo não tem realidade objetiva, ele é um emaranhado de construções de narrativas que se entrecruzam e, muitas vezes, brigam entre si. Deste modo, as relações entre as pessoas dão o tom à construção cultural de um povo, por maior que seja a diversidade presente no interior deste conceito abstrato e abrangente (povo). Relações estabelecidas na base do afeto e do acolhimento do outro são capazes de construir um edifício de memória coletiva extraordinário, sendo que tudo se inicia nas relações interpessoais.
O Brasil apresentado no livro é fragmentado e contraditório. Como você espera que essa narrativa contribua para o entendimento das complexidades e contradições atuais do país entre os leitores?
A descoberta recente de um Brasil obscuro provocou em tantos de nós, brasileiros, grande perplexidade, e despertou uma contradição que não se resolve com fórmulas simples, como gostaríamos. Por isso, a ideia do livro é tomar histórias individuais, envolvendo personagens comuns, e levar à reflexão sobre a construção de um país.
A literatura e a música são elementos importantes para Mariana. Como você escolheu esses aspectos culturais para enriquecer a história?
A literatura e a música são referências constantes em tudo que escrevo. Meus dois primeiros romances são a prova disso. É como se a vida dos meus personagens fosse, de alguma forma, pautada por essas referências, que, além de tudo, são muito amplas. Ter sido tradutora por mais de uma década abriu enormemente meu universo literário. Mas a literatura de língua portuguesa sempre foi a base de tudo.
Apesar disso, nesta terceira obra, procurei, senão me afastar propriamente dessas referências, ao menos torná-las menos evidentes. Busquei dar mais destaque a diferentes aspectos da cultura brasileira, com suas inúmeras influências, seus diferentes falares, evidenciando a diversidade de populações que vivem em diferentes biomas e produzem singularidades que só um país do tamanho (e com a história) do Brasil é capaz de produzir.
A estrutura de tempo do livro também é um aspecto muito importante para a obra, certo? Você poderia explicar um pouco sobre ela e como essa estrutura se desenvolve ao longo da narrativa?
Adotei uma estrutura não cronológica. O tempo, no caso deste romance, é memorialista: um fato puxa a narrativa de outro, por mera evocação. Deste modo, de um capítulo para o outro, podemos ter um salto de décadas, para frente ou para trás. O desafio é fazer com que tudo faça sentido, que o leitor nunca se perca nos diversos tempos da narrativa. Neste livro, essa estrutura faz todo sentido, mas não a definiria como um estilo único de escrita. Gosto muito dela; meu primeiro livro, Acorde Vagante, também tem essa estrutura.
Como foi o processo de escrita da obra? Quanto tempo você levou para ela ficar pronta?
Esse livro, especificamente, foi escrito em 4 meses. Em geral, meu processo de criação toma um tempo mais longo, mas este me pegou num momento em que tive muitas perdas pessoais consecutivas, separações, lutos, que geram um sentimento de desenraizamento muito forte. Então, o livro tomou força rapidamente dentro de mim, a ponto de eu parar tudo que estava fazendo para cuidar somente dele; inúmeras vezes, despertei de madrugada para escrever… foi um processo assim, muito intenso.
Você comenta que a escrita da obra ajudou a lidar com a solidão e a incompreensão de um período complicado de sua vida. Poderia comentar mais sobre isso? O que a obra representa para você nesse aspecto?
Esse livro representa a forma que encontrei de lidar com as perdas, tanto pessoais, quanto as que se relacionam com a ideia de um país do qual nos tornamos subitamente órfãos, como se nos tivessem tirado o próprio chão. Pessoalmente, foi transformador. Havia alguns anos que não escrevia, desde o meu primeiro romance em 2016. O livro praticamente me salvou do naufrágio, me ensinou o poder que tem a construção de uma narrativa para a compreensão de um mundo que se afigura cada vez mais estreito e mais caótico. Escrever me ensina a lidar com a solidão e com a incompreensão daquilo que nos rodeia.
Então, a solidão é um aspecto necessário ao seu processo criativo? Como ele se desdobra? Existe algum ritual?
Quando a história começa a ficar madura dentro de mim e passa a me pressionar para vir ao mundo, preciso estabelecer um tempo para me dedicar a esse nascimento. Isso implica algumas horas de isolamento diário, nas quais, não necessariamente as palavras virão generosamente como rios represados. Pelo contrário. Esse início é muito trabalhoso, cheio de silêncios angustiantes. Porém, quando a história ganha vida própria, o que sempre acontece em algum ponto do seu percurso, deixo de ser tão rigorosa com a rotina de isolamento ou com o estabelecimento de metas. A história vai fluir com liberdade e me encontrar nos momentos em que eu estiver disponível para ela. Por exemplo, já escrevi o capítulo inteiro de um romance no celular, sentada no saguão de um aeroporto, durante o atraso de um voo.
Ana Ferrari é jornalista formada pela Faculdade Cásper Líbero e pós-graduanda em Edição e Gestão Editorial pelo Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (NESPE). Sempre teve forte ligação com a literatura e às vezes se aventura a escrever textos ficcionais.