A evidente falha no combate ao racismo: caso da filha de Samara Felippo
Advogado envolvido em defesa da adolescente negra observa que, “quando você atribui à educação um papel de repressão ao racismo, você está empobrecendo as possibilidades que a educação tem”
O racismo está presente em todas as instâncias da sociedade, e nas escolas não seria diferente. Todo ano diversos casos chegam às mídias, enquanto a grande maioria permanece banalizada e esquecida.
Neste ano, no dia 22 de abril, a filha mais velha da atriz Samara Felippo sofreu ato de racismo no colégio de elite Vera Cruz, quando duas meninas do mesmo ano pegaram o caderno dela escondido para rabiscá-lo com frases de cunho racista. O entregaram no setor de achados e perdidos da escola, em um ato nítido inequívoco de violência.
Esse não foi um acontecimento isolado. Dois anos antes, em uma entrevista no “Sexta Black” do canal GNT, Samara já relatava eventos cotidianos de racismo em relação a suas filhas na escola. Pequenas brincadeiras e comentários surgidos em meio a uma educação racista. Além disso, alguns meses antes do ocorrido, as mesmas agressoras acusaram a filha mais velha de ter roubado uma bolsa, demonstrando uma recorrência nas agressões que muitas vezes não eram denunciadas para evitar constrangimentos sociais.
O caso envolvendo figuras públicas repercutiu com peso pela mídia, mas permanece sem uma responsabilização oficial das partes agressoras. Estas confessaram a prática de violência, e apenas uma delas foi retirada da escola pela família. Segundo o Vera Cruz, expulsá-las seria uma perda no diálogo e reeducação antirracista. Em entrevista à reportagem, o advogado Hédio Silva Junior, envolvido na defesa das filhas de Samara, pontua que “o papel principal da escola é preparar as pessoas para conviver com a diversidade. Mas a escola não fez isso esses anos todos. Poderia ter feito isso, não fez. (…) A prome ela, por ser negra, está sujeita a qualquer tipo de violência sem que ninguém seja responsabilizado. É assim que a sociedade funciona, apenas quando a vítima é preta”.
Para além da responsabilização das agressoras, menores de idade sob tutela da escola, não há como afastar a responsabilização também da instituição no caso. Silva Junior conta que eles estão ingressando com uma medida judicial contra a escola para que ela possa provar em juízo que tomou todas as medidas previstas na Constituição. O Vera Cruz há anos possui programas de combate ao racismo, mas, ao que tudo indica, de baixa eficácia. E esse, lamentavelmente, é um cenário que faz parte da educação brasileira em sua concepção e ocorre de forma silenciosa, normalizada.
Por princípio, a educação no Brasil é excludente. Se por um lado a Constituição de 1988 prevê o ensino da história e da cultura africana; por outro, sua aplicação acabou se dando como um adendo na história predominantemente eurocêntrica. Nas palavras do advogado, “o problema da coesão, da questão do ensino da história da cultura africana, vira um assunto de preto, de índio, quando é um assunto da qualidade da educação. Um país multicultural como o nosso, plurirreligioso como o nosso. A educação não trabalhar com a diversidade significa uma educação sem qualidade. É nessa perspectiva que ele tem que ingressar no processo educacional e não como um penduricalho, um puxadinho”.
O sistema judiciário não é diferente. Da mesma forma que o comportamento da escola reflete a sociedade e vice e versa, ele também reproduz essas tendências sociais. “Os juízes entendem que a prisão é uma coisa muito extremada, muito radical para o racismo. Então, eles têm uma tendência a refletir: ‘não, isso agora não é tão importante assim para poder mandar alguém preso’. Então, essa tendência de diminuir, secundarizar, não reconhecer a carga violenta do racismo e que, portanto, não justificaria uma sanção tão grave ao ofensor é o mesmo raciocínio que a escola está desenvolvendo. É por isso que, sem dúvida nenhuma, o racismo é uma ideologia”, explica Silva Junior.
Considerando a estrutura racista da sociedade, apenas discursar e conscientizar o público sobre o a história do racismo e seus efeitos não trará grandes mudanças em uma estrutura essencialmente excludente. É necessário que haja uma mudança fundamental das narrativas que permeiam o Brasil, para que culturas pretas e indígenas sejam vistas com a mesma importância que a branca. É necessário também que o país reconheça sua diversidade de forma orgânica. Na mesma entrevista, o advogado diz que a educação não deve combater nada, pois é uma atividade capaz de ingressar num sistema de valores da sociedade. Assim, ela é responsável por preparar as pessoas para verdadeiramente valorizarem e viverem a diversidade. Ele conclui: “quando você atribui à educação um papel de repressão ao racismo, você está empobrecendo as possibilidades que a educação tem”.
A luta contra o racismo deve ser, principalmente, coletiva. É imprescindível que haja o reconhecimento da gravidade da violência que ocorre diariamente dentro das escolas, e que atos como esse não saiam impunes, para que as vítimas se sintam confortáveis para denunciar as agressões sofridas. O caso da filha da Samara Felippo não é o primeiro e nem será o último. Portanto, não só os crimes já cometidos devem ser julgados devidamente e punidos, como deve haver uma mudança significativa na base da sociedade, a educação.
Nanna Tariki faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.