Família e religião a propósito do “caso Filó”
Na sociedade brasileira, a religião funciona como linguagem na qual uma ordem centrada na família ganha forma
No Dia do Trabalhador, o assunto no Brasil foi um jovem e sua capivara, ambos da Amazônia. Filomena, apelidadade de Filó, foi resgatada pelo Ibama de uma fazenda na região de Autazes no final de abril para ser devolvida à natureza. Instaurou-se incontinenti a polêmica. Uns argumentam que seu tutor, Agenor Tupinambá, criou o roedor em seu habitat natural e não a domesticou, pois ela viveu solta em seu bioma. Outros argumentam que o Ibama cumpriu seu dever constitucional e fez valer a letra da legislação ambiental, que define os limites das relações entre humanos e animais não humanos da floresta.

Duas lógicas distintas, a dos direitos e a dos afetos, estão em tensão no “caso Filó”, que se constitui em uma controvérsia por suscitar o engajamento de vários atores políticos e midiáticos. No cerne desse embate está a domesticação de animais que a legislação brasileira classifica como silvestres e que, por essa classificação, não podem ser legalmente domesticados, mas com que Agenor teria estabelecido, no plano dos fatos, uma relação afetiva. No que nos interessa, como pesquisadores do Observatório da Religião e suas Intersecções, o caso oferece a oportunidade de postular que, na sociedade brasileira, a religião funciona como linguagem na qual uma ordem centrada na família ganha forma. Como mostraremos, ambas as categorias – religião e família – convergem para domesticar a sexualidade, mesmo quando algumas das suas manifestações estariam proscritas da norma.
Agenor Tupinambá é do interior do Amazonas, de uma cidade 4 horas de barco distante de Manaus. Como o avô de Agenor, seu pai cria búfalos, e ele estuda Engenharia Agronômica na Universidade Federal do Amazonas. Em 2023, atraiu a atenção dos internautas e da imprensa publicando cenas de suas interações com animais silvestres no meio da amazônica. Pelos laços criados nessas interações, os bichos aparecem em postagens feitas por Agenor no TikTok e Instagram como sendo “seus”. Esse é o caso da capivara Filó, que é filmada com ele em rios da região. Num dos vídeos postados no TikTok, Filó nada na direção de Agenor e encosta a cabeça em seu rosto, numa demonstração de intimidade que rendeu mais de 840 mil curtidas.
O sucesso alçou Agenor à condição de influenciador digital, mas foi a intervenção do Ibama que o atirou ao centro do debate nacional, cindido entre aqueles que naturalizam a relação entre Agenor e Filó, a inscrevê-la numa lógica dos afetos, e os que a culturalizam, a inscrevê-la na lógica dos direitos. Impulsionado pelo envolvimento da apresentadora dedicada à proteção dos animais Luisa Mell, o imbróglio culminou na transmutação de Agenor Tupinambá em uma dupla figura sob escrutínio público: é ele vítima de uma injustiça administrativa ou autor de um crime ambiental?
A posição ambígua fez o rapaz reaparecer para “contar sua história”, revelando outra verdade de si. Em vídeo, Agenor está sentado, margem aquática, pasto e vegetação ao fundo. Usa chapéu gambler, e uma grande cruz de Cristo dourada e preta pende de um cordão à vista. Em sua camiseta preta, compondo um efeito visual com a cruz, lemos, nas cores do arco-íris à esquerda do peito: “amor demais para caber no armário”. Antes que ele abra a boca, o vestuário de Agenor nos põe diante de um peão comprometido com o Cristianismo e com a bandeira do amor entre pessoas do mesmo sexo, dois elementos comumente percebidos como inconciliáveis. Contrariando o senso comum, no entanto, ele os compatibiliza esteticamente, ao conjugá-los na composição de sua forma de aparição.
Movendo-se em direção à câmera, o peão influenciador, que tem cerca de 2 milhões de seguidores no Instagram e 1,9 milhão no Tik Tok, apresenta-se, agora verbalmente: “Eu me chamo Agenor, tenho 23 anos”. Nascido e criado em Autazes, numa família de pecuaristas, lembra que sempre gostou de andar só pelos campos e que um dia, nessas suas andanças, “encontrou um homem que estava trabalhando no campo”. Ficamos sem saber da boca dele o que aconteceu entre ele e o homem, pois o vídeo, editado, salta desse encontro para a menção às perguntas que recebe sobre suas cicatrizes.
Agenor vai respondê-las apenas indiretamente. Cotovelos sobre os joelhos, ele se aproxima da câmera e, a olhá-la de frente, fala que se percebeu “diferente” aos 8 anos, “mas a família dizia que era errado, a religião dizia que era errado”. A narração adquire um tom mais e mais confessional, preparando o espectador para a “confissão” do que Michel Foucault chamou de “verdade de si”, a “verdade do desejo”.
A forma subliminar da sua confissão se deixa ver já pelo uso que ele faz do termo “diferente”. Tomado isoladamente, “diferente” é um termo vago, pois as diferenças que nos marcam são inúmeras: nacionais, regionais, étnicas, raciais, de cor, de gênero, de orientação sexual, religiosas, de partido, de opinião, etárias, entre outras. Na fala de Agenor, contudo, o sentido do termo é determinado por sua relação com discursos correntes no espaço público brasileiro que acionam os termos “família” e “religião” para fazer funcionar uma apreciação negativa de orientações não heterossexuais do desejo.
Família e religião são instâncias que asseguram a reprodução de normas sociais, isto é, de padrões de comportamento percebido como apropriado em relação com os quais tanto a ordem quanto os sujeitos se constituem. A heteronorma, a norma social segundo a qual o desejo de seres com genitália masculina deve se orientar para seres com genitália feminina e vice-versa, é um padrão desse tipo. Um dos seus efeitos é fazer com que a homossexualidade seja percebida como orientação desordenada do desejo e “o homossexual” como sujeito desordenado, potencial ameaça à ordem.
Essa percepção informa uma associação comum entre homossexualidade e não domesticidade, a qual ganha contornos particularmente instigantes no “caso Filó” em função da domesticação da capivara pelo peão. O operador dessa domesticação é o afeto que ele nutre pela capivara e que guarda relação com o afeto restaurador dos seus pais por ele. Como nos conta o peão narrador, depois de ensimesmar-se, uma depressão o abateu aos 18 anos e, aos 20, ele decidiu que “tinha duas saídas: ou contava, ou desistia”. Neste ponto da gravação, Agenor vira o rosto, contemplativo, baixa a cabeça, deixando ver uma pena nas cores do arco-íris presa ao chapéu, e revela sua escolha pela desistência.
Três anos atrás, tomou veneno de rato: “porque tinha medo de ser eu de verdade”. Seu auto-envenenamento o levou a ser entubado. Emocionado, lembra que, quando saiu, seus pais lhe esperavam aflitos e ele então se deu conta de que nada do que imaginava impotar tinha realmente importância para os dois. À porta do hospital, seu pai declara que “ama” o filho e que estará sempre ao seu lado. Sua mãe, Agenor conta chorando, pede que ele seja o que é: “incrível”. A reação dos pais lhe teria mostrado que tudo aquilo que ele acreditava acerca da sua diferença não importava a eles”.
A sequência de operações que indicamos no seu vídeo até esta última, podemos observar que a religião funciona como uma linguagem que os sujeitos usam para dar sentido às suas relações humanas e, no caso de Agenor, com os seres não humanos. Ela torna o mundo compreensível para si e seus atos compreensíveis para seus interlocutores. No mundo cristão, a religião e a família, que postulamos serem conformadoras da ordem social, são percebidas como meios que emprestam realidade ao amor, de modo que Agenor as indexa nessa linguagem afetiva e com elas reivindica aceitação de si e da sua sexualidade. Em um desdobramento de uma trama complexa, o genérico rapaz do campo que se tornou nacionalmente conhecido pela relação com animais legalmente não domesticáveis apresentou, assim, sua integridade humana e afetiva, outorgada pela família e a religião.