Fantasias intencionadas contra os direitos humanos
O que “O pequeno príncipe de Maquiavel”, “terra plana”, “o comunismo no Brasil” e “racismo reverso” têm em comum e o que isso tem a ver com direitos humanos?
Em 14 de setembro de 2023 foi julgado no Supremo Tribunal Federal ação sobre os ataques antidemocráticos de 8 de janeiro. No julgamento, onze Ministros analisaram os subsídios jurídicos e fatos que ensejaram a citada ação. Na defesa, uma banca de advogados proliferando uma série de frases, nem sempre conexas, mas alinhadas com a cognição constituída para o entendimento deles.
Um dos advogados citou O Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry como se a obra fosse de autoria de Nicolau Maquiavel. A citação proferida foi que “os fins justificam os meios”. Ponto central é que houve equívoco tanto na obra citada, quanto na citação utilizada. Maquiavel nunca escreveu que “os fins justificam os meios”, o mais próximo que compreendo da citação é que: “Os Estados bem organizados e os príncipes hábeis têm com toda a diligência procurado não desesperar os grandes e satisfazer o povo conservando-o contente, mesmo porque este é um dos mais importantes assuntos de que um príncipe tenha de tratar”.
Entretanto, a realidade é que o chamado “equívoco” é como o professor José Geraldo Júnior explicou durante a CPI do MST sobre cognição. A pessoa “não vê o que existe, mas o que recorta” e esse recorte desenha as possibilidades e limitações no entendimento do outro sobre as ações. Nessa mesma linha, a “terra plana”, conforme Martins (2020), é a tensão com o conhecimento produzido cientificamente intrínseco no negacionismo.
O “comunismo no Brasil” também é parte do recorte constituído a partir da fé daqueles que, em busca da construção de uma oposição à esquerda brasileira, afirmam o medo a um suposto “comunismo no Brasil”. Medo esse que esconde o caráter ilusório e fantasioso próprio do negacionismo observado pela própria análise socioeconômica de um país que nunca foi comunista e que, como aponta Mário Theodoro (2022), se constitui pela desigualdade, racismo e branquitude.
Além disso, atenta-se o olhar para o chamado “racismo reverso”, narrativa inventada fundamentada numa construção ilusória como parte de uma sociedade estruturada pelo racismo como ferramenta de dominação e violação de direitos contra pessoas que foram interseccionalmente atingidas pela categoria etnosemântica da raça (Munanga, 2004). A questão é que o termo “reverso” constitui a possibilidade de dominação feita por uma categoria que historicamente e economicamente esteve em grau de subalternidade sobre outra categoria que esteve historicamente a partir da ideia de superioridade.
“O pequeno príncipe de Maquiavel”, “terra plana”, “o comunismo no Brasil” e “racismo reverso” têm em comum o campo constitutivo de narrativas fantasiosas, elaboradas a partir de achismos, ausência de dados e com a subalternização do conhecimento científico. O ponto chave é que essas citações são elaboradas num seio de uma mediocridade que tem se tornado comumente reverberada no Brasil. Talvez, por falta de leitura ou por uma intencionalidade da ignorância, esses equívocos escondem graus de violências acerca da própria constituição do saber.
Em consequência aos apontamentos, me questiono: O que isso tem a ver com direitos humanos? Tudo. Direitos humanos, como aponta Flores (2009), são resultados de lutas históricas em torno da dignidade, liberdade e cidadania. Ou seja, são conquistas que estão sempre em movimento. Os direitos humanos são necessariamente historicizados e não estão desconectados com as práticas sociais. Segundo Flores (2009), direitos humanos são bens garantidos materialmente e simbolicamente para seu exercício.
Nesse campo da prática em movimento, é necessário pensar a gramática dos direitos humanos compreendendo que: “nosso compromisso, na qualidade de pessoas que refletem sobre – e se comprometem com – os direitos humanos, reside em ‘colocar frases’ às práticas sociais de indivíduos e grupos que lutam cotidianamente para que esses ‘fatos’ que ocorrem nos contextos concretos e materiais em que vivemos possam ser transformados em outros mais justos, equilibrados e igualitários.” (FLORES, 2009, p. 25)
Ou seja, a fantasia, invenção, negacionismo de dados e informação, elaboração de narrativas desconectadas da realidade implicam profundamente nas políticas públicas constituídas como base na gramática dos direitos humanos. Em conclusão, repudiar as fantasias intencionadas e as teorias conspiratórias é parte da prática necessária para a defesa e promoção dos direitos humanos.
Ícaro Jorge da Silva Santana é advogado, Mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Universidade, doutorando em Direitos Humanos e Cidadania na UnB e professor Colaborador do Departamento de Gestão de Políticas Públicas da UnB. E-mail: [email protected].
Referências:
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000052.pdf>. Acesso em: 14 de setembro de 2023.
MARTINS, André Ferrer Pinto. Terra planismo, Ludwik Flecke o mito de Prometeu. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 37, n. 3, p. 1193-1216, dez. 2020.
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: BRANDÃO, André Augusto P. (Org.). Niterói: UFF, 2004, p. 15-35.
FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos direitos humanos; tradução de: Carlos Roberto Diogo Garcia; Antônio Henrique Graciano Suxberger; Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. 232 p. il.