Fantasmagoria e susto
Nos falta ainda o susto com nossa democracia fantasmagórica e fantasmagorizante, com nosso Estado de exceção, com todos os tipos de bovarismos, com a cultura do arremedo de avanço com atraso, quase sempre tendo a violência nas duas pontas
“Ainda vão me matar numa rua.
Quando descobrirem,
principalmente,
que faço parte dessa gente
que pensa que a rua
é a parte principal da cidade.”
Paulo Leminski, Quarenta clics em Curitiba
O Brasil não é avesso à rua, historicamente falando. Desde a colônia, quando cidade era vila, fazenda era cidade e quase nada era público, a rua ou o não palácio/não igreja/não casa foi o lugar de lutas e a rugosidade concreto-imagética de um tecido social sempre esgarçado. A parte principal da cidade no Império, aquela forjada como limite e não lugar era exatamente a rua, muitas vezes o espaço do possível porque ainda não reificada. A rua era o supermercado da escravidão, com seus pretos e pretas pintando com a carne mais em conta na feira cada metro quadrado que se abria nesta nação sempre em obras. Na rua ou na praça, uma rua de pausa, morreram mártires e anônimos e verteram-se memórias em silêncio. Hoje a porta da rua continua sendo a serventia da casa: de quem a tem. Na República a rua ganhou supostamente mais conotação de vereda da cidade que é de todos, mesmo que leve para destinos sempre com donos e muros, placas, campainhas. Nela se deram inúmeros fatos, sociais ou não, mantendo-a leminskianamente como a principal parte da cidade. Não citamos aqui casos ou personagens específicos uma vez que a mirada que objetivamos é breve, mas ampla.
Contraditoriamente a rua também é, na perspectiva histórica, a materialização da aversão brasileira aos ares democráticos, mesmo os de desenho liberal. Aqui o liberalismo é quase um filho bastardo do conservadorismo, um herdeiro que estudou na Europa e voltou para a propriedade de café do pai. Temos uma das maiores populações de rua do mundo e somos a nação que mais lincha no planeta, majoritariamente na rua. Integramos as sociedades que mais condenam o aborto e assassinam mulheres, jovens, negros, sobretudo, e população LGBT, quase sempre no que entendemos como rua – o lado de lá do aqui de onde estamos e falamos. Usamos a rua não em sua profundidade: não chegamos no seu fundo. Em Rua de mão única (1928), Benjamin empreende uma guinada em sua estrutura de pensar e escrever sob forte influência de Paris, sendo a primeira tentativa de traduzir a relação com aquela cidade. Em uma carta a Scholem, admite: “Os meus ‘aforismos’ resultaram numa curiosa organização, ou construção: uma rua que permite descobrir uma perspectiva de uma profundidade tão imprevista – e uso o termo em sentido não metafórico!” (BENJAMIN, 2013, p.123). Em Eisenbahnstraße, Benjamin erige a ponte para as Passagens, sua obra-prima, seu fundo, o limite extremo.
Conseguir conferir concreticidade extrema a uma época, como aponta Benjamin a Scholem em outra parte da carta, nos parece um mapa. Das coisas mais concretas que conhecemos o susto talvez seja aquele que narramos com maior atenção aos detalhes. O susto e possivelmente o sonho. Sobre o primeiro, no escrito Artigos de armarinho – em “Rua” – Benjamin sentencia que ser feliz é poder tomar consciência de si sem levar um susto. Nos falta ainda o susto com nossa democracia fantasmagórica[1] e fantasmagorizante, com nosso Estado de exceção, com todos os tipos de bovarismos, com a cultura do arremedo de avanço com atraso, quase sempre tendo a violência nas duas pontas. Não o susto como percepção individual e do senso comum, mas aquilo que podemos chamar com Benjamin de susto melancólico: uma antevisão da perda (total), um sintoma social e não um lamento. O spleen em nosso filósofo, assim como em Baudelaire no XIX, é o sentimento que indica a permanência da catástrofe. A rua nos assusta? Nós a assustamos?
No Brasil nos assustamos mais com a inclusão do que com a exclusão, com a democracia popular do que com as milícias da lei, com a cor da pele do que com o crime, com as expressões subalternas do que com a heteronomia cultural, com as rupturas do que com as dependências, com a fome do que com o novo shopping vazio do bairro, com as ocupações do que com as casas, com a ética do que com suas corruptelas e metamorfoses para menos, com o espectro do que com a coisa em si.
Assustar-se melancolicamente. Talvez esta seja uma vereda não inédita, mas profícua. Trata-se de uma tomada de posição porque uma identificação coletiva, sintomática socialmente e que exige a crítica radical como dínamo. Identificação do quê? De uma democracia-fantasmagoria, irreal, farsesca, portadora de uma falsa aura, exatamente por ser uma ideia especulativa, uma assombração e um obstáculo à construção da democracia odiável e sem máscaras sobre a qual trabalham Rancière e Badiou, respectivamente. Odiável quando com o rosto popular; mascarada quando com a face dominante historicamente imposta. Não há dúvidas de que aqui falamos de possibilidades entendendo também o spleen benjaminiano como um duplo movimento, tanto de desenraizamento – anomia, corrosão da experiência – quanto de resistência – as novas barbáries exigem ações numa temporalidade agudamente do presente porque o futuro existe como impossibilidade e o passado não mais retorna como foi.
O susto também pode ser a tímida antessala de experiências desfetichizadas, desbovarizadas, desalienadas, ou seja, enfrentamentos das fantasmagorias encontradas em qualquer esquina da cidade capitalista. O Brasil da Nova República, colapsado desde a origem porque uma gambiarra de interesses retrógrados com pequenas vitórias progressistas deveria nos assustar diariamente caso houvesse a percepção da democracia que temos como mercadoria e engano, brutalidade tornada comum pela sociabilidade burguesa de gravata e bota com chapéu. Queimamos nossos espaços de memória, literalmente no caso paradigmático do Museu Nacional da UFRJ, um dos mais importantes do mundo. Logo após o ocorrido já existem mais soluções – enquanto o espetáculo fantasmagoriza o MN – que a partilha da experiência da morte, sem script exatamente porque humana.
Tensionemos os sentidos da violência brasileira e socializemos os lutos impedidos de Marielles, Amarildos e Herzogs. De tão acostumados com nosso bovarismo social de rótulo cordial e higiênico e com justificativas as mais cínicas para mortes epidêmicas somos neste país mais vacinados contra o susto que em muitos outros lugares de dor. Bolsonaro não é o sinal dos tempos, mas o produto molecularmente desenvolvido em nossos laboratórios da coerção: a família, a escola, as corporações, as religiões, os clubes, as universidades, os partidos e nossas intimidades tornadas armas via redes sociais.
Quando falamos no presidenciável capitão do Exército que defende tortura, racismo, misoginia, extermínio de pobres e estupro (tendo como candidato a vice um general que justifica abertamente a inferioridade de negros e indígenas), apontamos para um arquétipo e ao mesmo tempo um sintoma que está na bancada do Jornal Nacional, nas camisas vendidas em lojas de departamento e nos milhares de spams que recebemos, como uma marca, como commodity e como sentimento. O atentado contra Bolsonaro em Juiz de Fora traduz o Brasil-violência que fomos capazes de forjar desde sempre, mas principalmente com a Nova República das conciliações pelo alto e pelo rodapé. Em tempos de golpes togados e de democracia beligerante temos uma arma branca no meio da sala, aquela mais acessível para quem deseja empunhá-la e a mais terrível para quem não quer morrer aos poucos após atacado. A faca amolada sob a fé caolha, numa alusão enviesada à letra de Milton e Beto Guedes, talvez seja a imagem que nossos adiamentos e acertos conservadores merecem: o fio da navalha. Não se brinca com instrumentos cortantes por tanto tempo impunemente.
É preciso confessar nossa miséria e admitir, não sem susto, que Bolsonaro “chegou lá”! Não o Jair, mas o real vivinho da Silva de nossas tragédias nacionais, de nossos protofascismos, condomínios Casa-Grande, foros privilegiados e auxílios-moradia-pra-quem-já-tem-casa, a despeito de todos os medos, traumas, atentados, teorizações, mobilizações, análises de conjuntura. Ele estará nesta e na próxima eleição e talvez na outra. A ideia Bolsonaro, que na verdade é um modus aqui em Pindorama: antes a mãe do outro chorar que a nossa, doa a quem doer e graças a Deus.
A rua deixar de ser a parte principal da cidade – mesmo encarnando costumeiramente o palco principal de atentados – é um dos apagamentos maiúsculos da modernidade capitalista, que cobra um preço mais alto em suas periferias dependentes e tardias. Essa perda possui um vínculo ontológico com a incapacidade do susto, que nos adia e afasta das profundidades imprevistas, aquelas que os materialistas históricos costumam chamar de História. Marielle morreu na rua, Bolsonaro quase morreu na rua. Esperamos que nossos ensaios democráticos mais populares e sem nomes pré-definidos resistam na rua, para além do pleito de outubro, sob o sólido risco de morte, que é muitas vezes o que nos impele a agir.
*Eduardo Rebuá é professor adjunto de Educação na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), professor adjunto credenciado do Programa de Pós-Graduação (mestrado/doutorado) em Educação da Universidade Federal Fluminense (PPGE-UFF), doutor em Educação pela UFF, mestre em Educação pela UERJ, bacharel e licenciado em História pela UFF, coordenador do Observatório de História, Educação e Cultura da UFPB (HECO – CNPq), pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (Nufipe-UFF), organizador das obras Gramsci nos trópicos: estudos gramscianos a partir de olhares latino-americanos (2014), Educação e filosofia da práxis: reflexões de início de século (2016), em parceria com Pedro Silva, e Pensamento social brasileiro: matrizes nacionais-populares, em parceria com Rodrigo Gomes, Giovanni Semeraro e Martha D’Angelo (2017).