Fascínio pelos polos
As extremidades do planeta estão ameaçadas. No Polo Sul, os icebergs afundam no mar; no Polo Norte,o gelo derrete e os ursos brancos agonizam. Enquanto isso, os países vizinhos preparam-se para se beneficiar das riquezas minerais e petrolíferas que o derretimento dos bancos de gelo irá proporcionarGilles Lapouge
Se os polos desaparecessem? Bem, estaríamos em sérios apuros. Há muito tempo nos relacionamos – os polos e nós – e já fizemos tantas coisas juntos! Desde a escola, quando adorávamos desenhá-los em nossos cadernos com a ajuda de réguas e compassos; quando os localizávamos, podíamos então adicionar os Trópicos e a Linha do Equador, com a ajuda da rosa dos ventos, e toda uma pequena sorte de geometrias espalhadas pelo cosmo, encarregadas de conjurar a agonizante desordem da geografia. O polo, eixo do mundo, era um local distante e ausente, mas que ligava todo o nosso globo terrestre, lhe conferindo elegância e solidez como um broche que alfineta as pregas de uma beca.
Hoje, os polos estão ameaçados. Não o polo em si, já que é difícil suprimir aquilo que não existe, mas as paisagens brancas que constituem o seu centro. O Polo Norte está agonizando. O seu gelo está derretendo, e há muitos anos os ursos brancos estão definhando. O Polo Sul é sempre mais frio (em média 20ºC a menos) e não é constituído por uma banquisa (banco de gelo) que flutua sobre o mar, mas por um continente de terra encoberto por uma enorme geleira, representando 90% das reservas de água doce do planeta. Ele resiste melhor ao aquecimento que o Polo Norte, mas, ocasionalmente, da costa de Weddell ou do planalto de Wilkins, um iceberg do tamanho de Luxemburgo se desprende, cai na água e perde-se para sempre.
Seduzidos pelas altas de temperatura, os países vizinhos ao Polo Norte (Canadá, Rússia, Estados Unidos, Noruega e Dinamarca) preparam-se para se beneficiar das riquezas minerais e petrolíferas que o derretimento das banquisas irá disponibilizar. Não se sabe se é um conto de fadas ou um filme de terror. As pessoas já imaginavam que havia um tesouro escondido sob essas banquisas, mas antes ele era inacessível. O derretimento do gelo é um milagre e também um vilão, pois é a chave de acesso aos tesouros da caverna.
Ao mesmo tempo, os homens de negócios e do petróleo questionam-se sobre quantos bilhões de dólares poderão ganhar diariamente e também se serão finalmente abertas as duas rotas mágicas pesquisadas há quatro séculos por todos os exploradores do Ártico: a passagem noroeste, através do Canadá, e a nordeste, através da Sibéria, que colocarão o Extremo Oriente em rota direta com a América e a Europa.
Sempre que a primavera retorna, me pergunto o quanto restará de gelo depois que a neve se for. Em que estado e onde irá se refugiar? E o branco dos polos, que cor terá quando os gelos árticos desaparecerem? Sentiremos muita saudade desse branco, bem como do enorme vazio desse “ponto zero” do mundo. Eles detêm os estoques do alimento mais precioso que ouro e antimônio – a água, ingrediente essencial à vida humana e às sociedades –além de riquezas como a brancura, o vazio, o silêncio, o infinito e o desconhecido.
O mundo finito
Hoje, após cinco séculos de grandes explorações, todo o planeta – à exceção dos polos – é conhecido, recenseado e civilizado. As terrae incognitae da África ou da Ásia, que eram o terror dos homens, mas também seu fascínio, já foram medidas, retratadas e classificadas. Os últimos mapas do Instituto Nacional de Geografia da França (IGN) são obras-primas. Até mesmo o território da mais minúscula tribo está registrado. Porém, essas obras são desesperadoras: não existem mais terras desconhecidas, nem mais uma polegada do globo que escape ao nosso conhecimento.
Nos anos 1930, o filósofo Paul Valéry dizia: “O tempo do mundo finito começa agora”. O anúncio era prematuro. Naquela época, os espaços imprecisos dos polos e seus horizontes resistiam à ordem do planeta. As civilizações não sabiam como encarcerar o infinito em seus cadastros. Mas hoje, graças ao derretimento dos gelos, os agrimensores plantam seus piquetes no indizível. É a profecia de Valéry se realizando: o tempo da geografia finita começou. O segredo se espalhou. O mistério vazou como se estivesse dentro de uma lata furada.
A corrida ao tesouro foi iniciada. Para os geólogos, o espaço ártico é uma festa. Eles desembarcam em bandos e levantam todo o inventário dos recursos ocultos sob o mar ainda branco; calculam a quantidade de petróleo por bilhões de barris; a de gás por milhões de metros cúbicos; a de carvão, cobalto, antimônio, diamantes, cobre, níquel, pesca e poluição. Resta designar os proprietários dessas raridades.
O direito internacional exclui o Polo Norte dessa batalha, visto que não tem proprietário – pertence à humanidade. Além disso, como uma nação poderia reclamá-lo para si sendo ele um lugar irreal, uma figura meramente matemática, o ponto de intersecção entre o eixo da Terra e a superfície terrestre? De forma geral, está dentro de um espaço onde as horas não existem, já que todos os meridianos e fusos horários convergem num só ponto, de modo que os relógios anunciam todas as horas de uma só vez. Eis um caso de não divisão geológica e geográfica reconfortante.
Mas há uma segunda razão: ao término da convenção da ONU sobre o direito do mar, assinada em 1982, todos os países que margeiam o Oceano Ártico obtiveram o direito de gerir os fundos marinhos de sua costa – desde que estejam a até 360 km de distância – dentro de uma “Zona Econômica exclusiva” (ZEE). No entanto, a maioria dos recursos minerais identificados está perto da costa, dentro da faixa dos 360 km. Assim sendo, a possível exploração de tais recursos não seria causa para litígios. Infelizmente, porém, uma cláusula da convenção de 1992 vem semeando perturbações: se os países envolvidos provarem que a plataforma continental que margeia suas fronteiras se prolonga para além do limite físico de sua ZEE, sua soberania será aumentada em alguns hectares.
Tal cláusula tem agradado muito dos cinco países envolvidos. Seus geólogos rapidamente descobriram inúmeras plataformas continentais. A Rússia anunciou a Dorsal Lomonossov, cadeia submarina de 2 mil km que se estende sob o Polo Norte e atravessa todo o espaço ártico, ligando a Sibéria à ilha canadense de Ellesmere e à Groenlândia. Segundo o Kremlin, o polo e os espaços que o cercam pertencem à Rússia, definição a que os geólogos canadenses se opõem, afirmando que a Dorsal Lomonossov é simplesmente um prolongamento da ilha Ellesmere. Algo que os geólogos dinamarqueses rebatem com ironia, assegurando que a cadeia submarina é um prolongamento da Groenlândia, fazendo da Dinamarca sua representante até segunda ordem – ou seja, até que os inuítes, indígenas esquimós que habitam as regiões árticas do Canadá e da Groenlândia, recuperem os seus direitos.
No momento, o Polo Norte parece protegido, mas em 10 ou 20 anos as finanças e a indústria se jogarão com unhas e dentes em direção aos mares do Ártico. Sobre o silêncio e a brancura glacial que haviam até então escapado da curiosidade de fuinha da História, os homens irão trazer os tratores e escavadeiras mecânicas, os vazamentos de gás, os navios monumentais, as ONGs, os barulhos, as fábricas de bacalhau, as hordas de ecologistas, as plataformas petrolíferas, os “hiper-super-mega” tanques e os navios quebra-gelo nucleares. A brancura glacial irá desaparecer. Em meio aos icebergs fora de rota, a mar será lamacento. As cidades surgirão das brumas e o belo silêncio pré-histórico será substituído pelo frenesi das sirenes e martelos. Uma das últimas reservas de beleza natural morrerá.
Por quatro séculos, o homem tentou se esgueirar através de ilhas e geleiras, a fim de encurtar as distâncias do globo. A partir do Canadá, buscou-se a passagem noroeste que permitiria cruzar o Estreito de Bering e atingir os países do Oriente. Dezenas de equipes e capitães corajosos se perderam nesses brilhantes labirintos, vítimas de ursos ou da solidão e isolamento. Seus corpos estão no gelo. A Rússia, a partir de sua costa, buscou uma rota no sentido nordeste para atingir o mesmo Estreito de Bering, mas junto à Sibéria, a fim de guardar suas mercadorias nos portos da Ásia. O fim inevitável da banquisa ártica vai abrir naturalmente essas duas passagens. Um presente inestimável.
Certamente, há de se esperar algum tempo, cerca de 15 anos, segundo os especialistas, para que as passagens Nordeste e Noroeste se tornem operacionais. Mas os litígios jurídicos já começaram: o Canadá considera que sua soberania deve ser respeitada sobre o braço de mar que serpenteia por entre as ilhas canadenses. O direito marítimo tem uma visão contrária, e se prevê um sistema de pedágio. Será também mais adequado constituir frotas possantes, incluindo quebra-gelos nucleares ou navios com cascos reforçados por triplas camadas de aço, capazes de navegar por entre os detritos do degelo.
Fabricando uma nova geografia
Mas os benefícios esperados são consideráveis. O comércio com o Extremo Oriente passa até hoje pelo Canal de Suez ou pelo Canal do Panamá, que estão funcionando no limite de suas capacidades. As duas passagens polares reduziriam as distâncias e o tempo de navegação: os 21 mil km que separam Londres e Tóquio seriam reduzidos para 14 mil graças ao atalho no Ártico, enquanto a rota nordeste economizaria de 15 a 20 dias de navegação entre a Noruega e a China.
O dia em que as frotas comerciais deslizarem por entre as ilhas canadenses ou ao longo da Sibéria marcará uma grande data na história mundial. Batalhas, coroações, fome e pestes sempre pontuaram a trajetória das nações; porém, a aparição de uma nova rota, a descoberta de um istmo ou de um túnel, ou a formação de um novo itinerário marítimo deixam impressões mais duradouras, fabricando-se uma nova geografia. E sempre que uma geografia é apagada para dar lugar à outra, a história se move.
No ano de 1498, o doge de Veneza convocou seus conselheiros. Ele recebera um despacho, e a notícia era estarrecedora: o navegador português Vasco da Gama havia conseguido dobrar o sul da África pelo Cabo das Tormentas (rebatizado de Cabo da Boa Esperança). Era uma tragédia. Até então, a Índia não era acessível senão por rota terrestre, longa e perigosa, até Veneza, e só esta cidade possuía as chaves do percurso – e por causa disso fez sua fortuna e glória. A Índia, a partir de Vasco da Gama, passou a ter proximidade com Portugal e com toda a Europa pela via marítima. A cidade dos doges não servia para mais nada.
Quando um mapa-múndi desaparece, surge outro da obscuridade. Os atlas são refeitos com muita pressa. O Polo Norte e o Equador estão à deriva. As fronteiras que se acreditavam imutáveis são apagadas. O Mediterrâneo está minguando; suas águas estão estranhamente deslizando na direção oeste, como se uma placa tectônica estivesse se movendo, e espera-se outro movimento da geografia.
O faustoso comércio construído no cruzamento entre Ásia e Europa está falido. Começou assim a longa e suntuosa letargia da cidade dos doges.
Gilles Lapouge é escritor, autor de La légend de la geographie, Albin Michel, Paris, 2010.