Número zero: como surgiram os fasci italiani di combattimento
Entender a gênese do movimento desvela que não é de um dia para o outro que uma ideologia totalitária nasce
Por ressentimento entendemos uma manifestação emotiva descrita pela mistura de medo, repugnância, decepção e ódio, quase sempre desencadeada por frustrações. Com a participação fracassada da Itália na Primeira Guerra Mundial, instaurou-se a insatisfação, devido à quantia que foi gasta durante o confronto e às inúmeras vidas perdidas.
Com a eclosão da Primeira Guerra, nasce, em Milão, no final de 1914, o chamado Fascio d’azioni Rivoluzionaria, um pequeno movimento iniciado por intervencionistas, no intuito de organizá-los independentemente do partido pertencente. Dentre eles estava um jovem jornalista chamado Benito Mussolini, recém expulso do jornal socialista Avanti!, do qual era editor e escritor. Com o apoio de alguns anarco-sindicalistas e de membros de outros partidos, além de outros exs-militantes do Partito Socialista Italiano, o movimento desenvolveu-se ativamente durante o ano de 1915, patrocinado por Alceste De Ambris, Angelo Olivetti e Benito Mussolini. Com o fim da guerra, em 1918, o grupo cessou suas atividades – porém, seus membros não pretendiam mais voltar ao ostracismo político.
No dia 2 de março de 1919, um comunicado foi anunciado no jornal Il Popolo d’Italia – fundado por Benito Mussolini – marcando uma reunião geral para o dia 23 do mesmo mês. O comunicado foi reafirmado uma semana depois, contendo a seguinte descrição: “em 23 de março, será criado o ‘anti-partido’, ou seja, surgirá o Fasci di Combattimento, que enfrentará dois perigos: o misoneísta da direita e o destrutivo da esquerda”. O intuito do futuro grupo seria opor tanto a direita italiana, acusada de covardia e avessa às mudanças, quanto a esquerda, considerada como responsável pelas catástrofes sociais e econômicas – sintoma também da narrativa anticomunista que começara a proliferar-se.
Dois dias antes do 23 de março, uma reunião preliminar ocorreu nas instalações da Associação de Comerciantes e Lojistas em Milão, formando uma junta denominada Fasci di Combattimento di Milano, como resposta aos diversos rumores, nos dias anteriores, de que o grupo de defesa proletária conhecida como “Guarda Vermelha” iria impedir a reunião. Estavam presentes Benito Mussolini, Enzo Ferrari, Ferruccio Vecchi e Michele Bianchi. No dia seguinte, alguns participantes começaram a se reunir em Milão, quase todos ex-combatentes de guerra.
A reunião principal do dia 23 de março foi realizada na sala de reuniões do Círculo da Aliança Industrial no Palazzo Castani, disponibilizada pelo presidente da Aliança Industrial, o intervencionista e maçom Cesare Goldmann, que, curiosamente, havia financiado anteriormente o jornal Il Popolo d’Italia. Na publicação do dia 24 de março, foram enfatizados três pontos por Benito Mussolini, sendo o terceiro deles um prenúncio dos tempos que viriam pairar na Itália: “o comício de 23 de março empenha os fascistas a sabotar por todos os meios as candidaturas dos neutros de todos os partidos”.
O propósito de criar uma chamada “terceira via” entre os dois polos políticos fica evidente nos discursos apresentados por Mussolini no dia da reunião, quando ele se coloca como uma alternativa no enfrentamento aos desafios apresentados pelo pós-guerra: a grave crise socioeconômica e o sentimento de vergonha causada pelas ambições frustradas. É importante salientar que, mesmo que seja óbvio, aos olhos atuais, qual perfil seria construído pelo movimento, no início, sua conduta político-ideológica não assumia sinais de radicalismo. Porém, como disse Mussolini: “não temos uma doutrina constituída: nossa doutrina é a ação!”. Essa frase, sem o mínimo de dúvida, já prenunciava possíveis tendências radicais ao incorporar uma semiótica da “construção contínua”, ou seja, de adequar-se às circunstâncias para impor seu plano de dominação através da violência. Não havia uma doutrina constituída, obviamente, o grupo estava aberto a ideologias perniciosas e autoritárias, desde que elas fundamentassem suas ações.
Em 6 de julho de 1919, seria publicado o chamado Manifesto dei Fasci di Combattimento Italiano, um programa político desenvolvido a partir das declarações feitas durante a fundação do movimento em março daquele ano, propondo resoluções para a questão política, para as demandas sociais, para a ordem militar e para a questão financeira.
Podemos listar as principais medidas em cada área: a extinção do senado; a alteração no projeto de lei sobre o seguro invalidez e velhice, reduzindo o limite de idade; a criação de uma milícia nacional com serviços educacionais; a apreensão de todos os bens de congregações religiosas e um forte imposto de caráter progressivo.
Nas eleições de 1919, as primeiras a usarem leis eleitorais adequadas para uma democracia representativa, o grupo sofreu uma derrota pesada. O Partito Socialista (esquerda) e o Partito Popolare (democracia cristã) alcançaram uma grande margem de eleitos, pondo fim na hegemonia parlamentar do liberalismo. Porém, isso não significou o fim dos fasci ou do projeto de poder iniciado por Mussolini meses antes: dois anos depois, o Fasci di Combattimento, que contava com aproximadamente 321.000 membros, reestruturou-se. No III Congresso em Roma, em novembro de 1921, o movimento foi dissolvido e o Partito Nazionale Fascista foi criado. O nome permaneceu, não obstante, para indicar as estruturas territoriais locais do novo partido, incluindo a Federazione dei Fasci di Combattimento em nível provincial.
Guiado por Mussolini, em 1922, após a manifestação fascista conhecida como “Marcha sobre Roma”, o partido assume o poder – até 1943. A raiz ideológica finca-se no nacionalismo italiano e no desejo de restauração e de expansão territorial, que obrigaria seus líderes a seguirem sordidamente tudo o que os ajudasse a conquistar tais objetivos. O totalitarismo, o controle, a aniquilação a qualquer manifestação de oposição e o culto à personalidade egocêntrica do Duce se tornaram o norte dos adeptos do movimento e da própria nação italiana.
Entender a gênese do movimento desvela que não é de um dia para o outro que uma ideologia totalitária nasce.
Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF)
Completo o artigo, muito bem escrito por sinal, com o que li no livro “O Fascismo Eterno” de Umberto Eco:
“Uma das características mais típicas do fascismo histórico foi o apelo a uma classe média frustrada, uma classe que sofre de uma crise econômica ou sentimentos de humilhação política, e assustada com a pressão de grupos sociais inferiores”.
Não se constrói uma ideologia totalitária da noite pro dia.