O fascismo, o muro, a horta
É mais fácil lutar pela padronização e extinguir diversidades do que exigir, elaborar, aprovar e efetivar políticas públicas voltadas às diferenças
O título deste pequeno texto que apresento conecta elementos que parecem não ter nenhum tipo de vínculo. Na verdade, é um convite que faço aos senhores leitores e às senhoras leitoras. É um convite a um passeio, uma imersão ao mais banal dos cotidianos. Indo além, é um convite ao olhar, à observação, já que, muitas vezes, é esse mesmo cotidiano que, paradoxalmente, esconde e escancara o que há de pior a emergir.
Pergunto: se vocês tivessem que escolher entre um muro ou uma horta, qual vocês escolheriam? Se a reforma de um muro – falo aqui de uma reforma meramente estética, sem viés estrutural, e que muitas vezes pode pender para o mau gosto – significasse a destruição de uma horta, qual seria a sua escolha?
É com essa metáfora, apenas uma metáfora, que daremos início ao nosso passeio. Em termos práticos, quais os efeitos de um muro? O muro, seja ele feito a partir de critérios de bom ou mau gosto, chapiscado ou não, significa o isolamento, significa o deixar-do-lado-de-fora-quem-lá-deve-permanecer, significa a restrição e significa a blindagem da vista, da observação. Embora seja um elemento que há muitos séculos marque paisagens, suas funções não vão além dessas que foram citadas. Talvez, de forma deliberada, significa a negação da observação pelo simples fato de a pessoa se recusar a observar qualquer coisa para além do muro. É uma opção pela ignorância, materializada na forma de tijolos e cimento. É uma escolha, muitas vezes.
E a horta? Talvez a lista seja um pouco mais longa, visto que ela possui mais funções que um muro. A horta produz vida e mantém vivos aqueles que dela dependem. Hortas alimentam. A horta embeleza, já que toda e qualquer planta é linda. A depender das dimensões, hortas podem influenciar positivamente microclimas e garantir mais água no lençol freático. Ao contrário do muro, que blinda, a horta exige o olhar, o cuidado diário e a observação permanente. Devemos alimentar quem nos alimenta. É diante dessa retroalimentação, desse cuidado, desse olhar e desse carinho que hortas são mantidas. É uma mistura de amor pela vida, amor pela natureza, saberes diversos e conhecimento científico sistematizado.
Em poucos dias, fomos assolados com a notícia de uma fã que morreu em um show, em razão das altíssimas temperaturas que afetam parte do país, sem que a empresa responsável pelo evento tomasse qualquer tipo de providência ou fizesse uma previsão, essencialmente amadora, sobre a possibilidade de as pessoas não se sentirem bem com o calor que fazia na cidade do Rio de Janeiro. A outra notícia diz respeito à vitória do recém-eleito presidente argentino. Mesmo com o Brasil tendo passado por quatro anos marcados pelos cortes de investimentos em todos os campos que apresentam traços de racionalidade e beleza – educação, ciência e cultura –, mesmo com o Brasil tendo passado por quatro anos de obscurantismo, incluindo aí questionamentos pueris sobre o poder da vacina, mesmo com o Brasil virando alvo de chacota no cenário internacional durante quatro anos e mesmo com o Brasil colocando sua frágil democracia em risco, nossos vizinhos passam a ter um presidente similar. Emerge aí – seja no caso de uma empresa de eventos que se recusou a enxergar o óbvio, pois o óbvio pode reduzir lucros; seja no caso da escolha deliberada por quatro anos de atrocidades – a metáfora do muro. É o muro que faz com que não vejamos além.
Quando o muro ameaça a horta – a vida, a beleza, os saberes, o alimento e o cuidado –, quando uma voz autoritária diz “reformem o muro”, sabendo que a reforma do muro pode vir a destruir a horta, os heróis e heroínas do cotidiano, o mesmo cotidiano que camufla e escancara atrocidades em escala industrial, podem entrar em ação. É uma disputa por espaço, é uma disputa entre o alimento que dá vida e o cimento que cerca os horizontes, que inibe a visão do óbvio, que restringe possibilidades, pois só entra na esfera do possível aquilo que conseguimos vislumbrar.
Aproveito para citar uma estrofe do poeta uruguaio Mario Benedetti:
“defender la alegría como un derecho
defenderla de dios y del invierno
de las mayúsculas y de la muerte
de los apellidos y las lástimas
del azar
y también de la alegría”.
Ou posso citar o início daquela que, para mim, é a melhor música dos Beatles, I am the walrus:
“I am he as
You are me as
You are he and
We are all together”[1]
A defesa da alegria, ou então a ideia de que eu sou o outro, permitindo, também, que o outro seja eu, são perspectivas de quem pensa no âmbito da horta, nunca do muro. O muro é ranzinza, feio, egoísta e morto. A horta é alegre, viva, dinâmica, solidária e fértil. Um muro sempre será um muro, enquanto uma horta nunca será a mesma horta. Ela sempre muda. O muro permanece lá, inibindo, restringindo e isolando. Seja ele um muro de tijolos e cimento sem nenhuma pintura, seja ele um muro pintado com cores que não combinam – algo como azul e abóbora –, um muro sempre será aquilo ali e somente aquilo ali. É o muro que faz com que um pneu seja alvo de oração, sendo o mesmo muro o grande responsável por fazer um cidadão se agarrar à frente de um caminhão por um motivo que talvez nem ele saiba explicar. O mesmo muro faz as pessoas erguerem seus telefones celulares para o céu, aguardando salvação. O mesmo muro foi responsável pela demissão de um cientista que afirmou, com base em dados científicos, que a Amazônia estava batendo recordes de desmatamento. O mesmo muro foi responsável pela execução de um trabalhador da Funai que denunciou atuações ilegais em terras indígenas. O mesmo muro gerou comentários deslegitimando a luta e a morte de Marielle Franco. É ele – ainda o muro – que cria um desejo insano pela eliminação de diferenças: “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”, já dizia Chico Buarque. Israel nos dá o exemplo a respeito.
É mais fácil lutar pela padronização e extinguir diversidades do que exigir, elaborar, aprovar e efetivar políticas públicas voltadas às diferenças. É mais fácil erguer o muro que cultivar a horta. Diante disso, vale a pena resgatar a última coluna escrita por Fernanda Young, quando ela afirma que “O cafona manda cimentar o quintal e ladrilhar o jardim”. Mais certeira, impossível.
Giam C. C. Miceli é professor de Geografia, mestre em Educação e doutorando em Geografia.
[1] Eu sou ele como
Você sou eu como
Você é ele e
Nós estamos todos juntos