Salvar o feijão e o arroz é retomar a função social da alimentação
A produção do arroz e do feijão não tem chegado no prato da maioria da população trabalhadora. A diminuição da área plantada não é obra da natureza e nem livre opção dos produtores, é parte das consequências da pressão política e econômica pela transformação, inclusive de nossos hábitos socioalimentares, em commodities
De acordo com o Guia alimentar para a população brasileira, o arroz e o feijão são a “mistura mais popular no país”, correspondendo a “quase um quarto da alimentação” da população. Entretanto, nos últimos anos, essa mistura que é característica cultural da alimentação brasileira, está sendo intensamente substituída pelo consumo de ultraprocessados.
Em meio a esse processo social de substituição de alimentos por formulações da indústria, o empobrecimento populacional, condições climáticas e a flutuação de preços do feijão e do arroz são indicados enquanto fatores de relevância nas escolhas alimentares disponíveis à população. Porém, a leitura de que o favorecimento à produção de commodities e a substituição de alimentos por ultraprocessados se localizam enquanto efeitos da dimensão das escolhas políticas e econômicas ultraneoliberais do governo brasileiro nos últimos anos pode auxiliar na compreensão de que é este favorecimento que se desenha enquanto traço determinante para a disponibilidade do arroz e do feijão, sua produção e permanência cultural enquanto traço social e histórico, e de alimentos que figurarão, ou não, nas possibilidades de consumo ofertadas à população.
Entre 2019 e 2022, realizou-se o projeto iniciado ainda em 2016 pelo enfraquecimento e a extinção de programas sociais historicamente conquistados e constituídos com o objetivo de promover e garantir a Segurança Alimentar e Nutricional e a educação para hábitos alimentares saudáveis, a exemplo do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e da composição de estoques públicos de alimentos. Tal projeto é parte de um processo de impedimento sistemático das possibilidades de sobrevivência, desenvolvimento e ampliação da agricultura familiar camponesa diante da pressão da cadeia produtiva do agronegócio, justamente, em favor da circulação de commodities.
Tais programas fazem parte das ações estratégicas do país que são subsidiadas pela formação de estoques públicos de alimentos, e são centrais para o escoamento e a garantia da venda da produção da pequena agricultura familiar em meio ao modelo predominante do agronegócio. Modelo que, cabe notar, gera falsas contradições, a exemplo das altas cifras de produção de alimentos ao mesmo tempo em que há fome generalizada.
Não há contradição que possa observada desde a lógica desse modelo de produção, já que nesta os alimentos são produtos a serem comercializados, e a fome é, ela mesma, efeito da própria lógica produtiva que prioriza a circulação do alimento enquanto uma mera mercadoria. Ou seja, não enquanto item essencial, que cumpre a função social de promover a Segurança Alimentar e Nutricional, a Soberania Alimentar e, portanto, a preservação dos hábitos sócio alimentares e a promoção da Saúde Pública por meio da alimentação saudável. E é essa lógica que exerce pressão política pelo esfacelamento de instrumentos que possuem a capacidade de regular e promover um mercado socialmente mais justo, garantidor da estabilidade alimentar e que assegure a existência do feijão e do arroz em nosso prato.
Entre 2020 e 2021, a pressão política determinante para o progressivo desaparecimento do arroz e do feijão nos pratos brasileiros pôde também ser notada nos números do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, o Pronaf, já que em 2020, 60% dos agricultores familiares não o acessaram. Tradicional programa de financiamento criado para os pequenos agricultores, o Pronaf passou a atender a produção de commodities em desfavor da agricultura familiar, direcionando a maior parte do crédito para a produção de alimentos que abastecem o mercado externo. Afetando, portanto, o mercado interno e, fundamentalmente, a agricultura familiar que é responsável por 87% da produção de mandioca, 70% do feijão, 60% do leite, 59% dos suínos, 46% da produção de aves e 51% da produção de milho, de acordo com dados da Conab divulgados pela Agência Senado em setembro de 2023.
Tais dados significam que a produção do arroz e do feijão não tem chegado no prato da maioria da população trabalhadora e que a diminuição da área plantada não é obra da natureza e nem livre opção dos produtores, é parte das consequências da pressão política e econômica pela transformação, inclusive de nossos hábitos socioalimentares, em commodities. Entretanto, mesmo com o esforço sistemático para cessar a produção da agricultura familiar, dentre outras dezenas de ações que uniram os movimentos sociais do campo e da cidade, em 2021, meia tonelada de feijão foi doada pelas famílias organizadas com o Movimento dos Pequenos Agricultores, o MPA, em parceria com o Sindipetro. Entre 2020 e 2022, em territórios periféricos nos quais a disponibilidade de alimentos tende aos ultraprocessados mais baratos, foi a articulação entre esses movimentos sociais que garantiu a distribuição de alimentação saudável à população mais afetada pelo desmonte das políticas e programas de Segurança Alimentar e Nutricional.
Apesar da safra recorde de grãos prevista para 2023, os efeitos do esfacelamento dos últimos anos se revelam na “menor lavoura plantada com feijão e arroz nos últimos 47 anos”, com a “diminuição de 7% da colheita de arroz”, de acordo com a Conab. É expressivo o efeito social desse quadro, e caminham juntos, tanto a diminuição do consumo do feijão e do arroz, quanto o curto circuito nos instrumentos que conectam a produção ao consumo, o que pode ser observado nos estoques nacionais desses alimentos. De acordo com dados da Série Histórica de Estoques Públicos de agosto de 2023, publicados pela Conab, desde fins de 2016, os estoques de arroz e feijão oriundos da agricultura familiar já se encontravam a zero.
As ações de redirecionamento das prioridades do governo brasileiro durante o mandato do ex-presidente Jair M. Bolsonaro (PL) em favor da concentração de renda e do empobrecimento generalizado dos trabalhadores, acentuaram um cenário que já vinha se desenhando desde o governo de Michel Temer (MDB). O horizonte era o da privatização, sincronizada com o esvaziamento dos estoques públicos de alimentos, culminando na anulação do papel do Estado na regulação dos preços de alimentos.
Criada ainda em 1991, a Conab se estruturou sincronizada ao interesse público, ainda que em meio à entrada do cardápio das políticas neoliberais no país durante a década de sua criação. Porém, desde 2018, a companhia esteve sob o risco real de privatização, e entre 2019 e 2022, frente à resistência e ação de servidores para que permanecesse atrelada ao interesse público, foi politicamente esvaziada pelo governo, desfinanciada, congelada e correu risco de fechamento. Diante do desmonte, sua capacidade de atuação estratégica para a formulação e desenvolvimento de políticas públicas ecoou no vazio, já que as próprias políticas públicas antes mencionadas foram tornadas inoperantes.
Como pontuado na Política Agrícola de 1991 – que orienta a estrutura dos programas relacionados ao setor no país –, a produção deve ser organizada sobre o fundamento de que o “adequado abastecimento alimentar é condição básica para garantir a tranquilidade social, a ordem pública e o processo de desenvolvimento econômico-social”, e dentre outros objetivos deve estar voltada à eliminação das “distorções que afetam o desempenho das funções econômica e social da agricultura”, de modo a promover e “melhorar a renda e a qualidade de vida no meio rural”. Lição antiga e alinhada com as políticas liberais, o espalhamento da fome e a mudança brusca de hábitos dos trabalhadores sempre foi vista como ameaça à ordem social. Vale lembrar que, em meados de 1993, o governo Itamar Franco liberou estoques de feijão da Conab que estavam parados por meio de um programa de distribuição emergencial conectado às ações do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) dos anos de 1990. Frente aos números da fome do período, a intenção anunciada de Franco era também a de evitar “convulsões sociais” e o estado de “calamidade no país”¹.
A mudança de cenário, provocada pelo ciclo de aprofundamento da concentração de renda e da desigualdade social nos últimos anos, evidencia as limitações das ações existentes para que a alimentação saudável, simbolizada no acesso ao arroz e ao feijão, esteja disponível de forma regular e constante. Para a população empobrecida, a perspectiva do acesso à alimentação saudável é indissociável da manutenção da função social das políticas, programas e estratégias que garantam que a produção da agricultura familiar seja ampliada e continue a existir, com a garantia de acesso a um mercado que absorva seus produtos.
Nesse sentido, a manutenção de estoques reguladores e estratégicos, que garantem a compra da pequena agricultura familiar, é parte essencial não só da regulação e pacificação social, como da garantia de preços mínimos por meio da comercialização e aquisição de produtos agrícolas. Em outros termos, a produção agrícola, os programas e estratégias que a estruturam devem possuir, prioritariamente, uma função social. O direito à alimentação e a promoção da saúde pública estão conectados à disponibilidade do arroz e do feijão produzido pela pequena agricultura familiar.
Denise De Sordi é historiadora e doutora em História Social, pesquisadora da FFLCH/USP e da Fiocruz. Especialista em políticas e programas sociais de combate à pobreza e à fome e nas relações entre movimentos sociais e Estado no Brasil contemporâneo. Desde 2020 se dedica a pesquisas que analisam a emergência das Cozinhas Solidárias e comunitárias enquanto formas de mobilização social que têm revitalizado a esfera pública brasileira.
Mateus Quevedo é jornalista, comunicador popular e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores.
[1] De Sordi, Denise. Reformas nos programas sociais brasileiros: Solidariedade, pobreza e controle social. Tese de doutorado. PPGHI-UFU, 2019. p.39.