Feliz colonização digital
A espionagem pelos norte-americanos de dados pessoais de europeus viola o “conteúdo essencial do direito fundamental à privacidade”. A sentença da Corte de Justiça da União Europeia, em 6 de outubro de 2015, marcou uma virada: sob pressão dos empresários, o poder público repentinamente se interessou pela regulação do cMarie Bénilde
Na história da economia digital, o ano de 2013 permanecerá, sem dúvida, como um ponto de inflexão. Até então, a internet era vista como uma selva dominada por grandes feras, mas onde subsistiam vastos espaços de liberdade. Uma série de revelações dissipou as ilusões: vigilância geral dos cidadãos pelo Estado (denunciada em particular por Edward Snowden), roubo de dados pelas multinacionais, acrobacias e sonegações fiscais dos mastodontes do Vale do Silício e destruição em massa de empregos humanos, substituídos pelos algoritmos. A internet, hoje, já não é percebida como um universo à parte, e sim como a modalidade tecnoliberal do capitalismo contemporâneo.
Google, Amazon, Facebook, Apple (o chamado Gafa), mas também Uber e Airbnb, suscitam uma avalanche de críticas. Essa reação, justificada pelo poderio exorbitante dessas empresas, não reflete apenas a ira dos usuários e a mobilização de organizações progressistas. O setor privado tradicional, seus patronos e seus sustentáculos políticos engrossam o coro dos descontentes. Esse conflito entre os herdeiros do capitalismo clássico e os capitalistas digitais lembra o enfrentamento que opôs, no século XIX, duas alas da ordem aristocrática francesa de então: os Bourbons da Restauração, conservadores e legitimistas, e os orleanistas, mais liberais e abertos ao mundo dos negócios.
O ministro da Economia francês, Emmanuel Macron, pertence a essa segunda facção. Segundo ele, “seria um grave erro proteger as empresas e os empregos existentes”. Essas palavras foram ditas diante de um auditório entusiasmado pela causa das start-ups, por ocasião da conferência “Le Web”, de dezembro de 2014, a qual, como um epígono de François Guizot, ministro de Luís Filipe, ele encerrou com uma arenga inspirada: “Uni-vos e enriquecei” – antes de fornecer publicamente seu endereço… um gmail do Google.
O mestre do Cidadão Kane
Se diferentes posicionamentos diante das multinacionais da internet se manifestavam nos governos europeus, o tom endureceu em 2013, no momento em que se travava um debate sobre a sonegação fiscal praticada por tais companhias, mas também sobre a participação de algumas na espionagem de dirigentes e instituições pela Agência Nacional de Segurança (NSA) norte-americana. Portas de acesso à internet, esses gigantes ditam suas condições comerciais, surrupiam dados pessoais e não distribuem os frutos de seu vertiginoso crescimento. De acordo com sua contabilidade social, o Google, que ganha mais de 1,7 bilhão de euros em receitas na França, pagou apenas 5 milhões de euros de impostos em 2014 (7,7 milhões de euros em 2013); nesse mesmo ano, o Facebook contribuía com 240 mil euros por um montante de negócios da ordem de 200 milhões de euros no Hexágono.
No entanto, enquanto no Reino Unido David Cameron impôs em dezembro de 2014 uma “taxa sobre os lucros desviados” de 25% aplicável ao Google, o governo francês aguarda propostas de harmonização fiscal da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e continua a justificar sua letargia: “Todos sabem que existe um problema, mas não conseguimos resolvê-lo por causa de sua enorme complexidade”, alegou a ministra da Cultura, Fleur Pellerin, em discurso perante a Association des Journalistes Médias no dia 8 de julho de 2015, após uma tentativa de tributação da banda larga para financiar projetos culturais.
As empresas de ponta da era digital não se contentam em sonegar impostos: também roem o tecido econômico existente e tricotam em seu lugar um ecossistema que só depende delas. Essa “uberização”1 provoca a resistência dos setores ameaçados, sobretudo na mídia, cujos oligopólios decadentes agora imploram o maná da concorrência. Reunidos no seio do Open Internet Project (OIP), o grupo alemão Axel Springer (Bild, Die Welt, seloger.com, Aufeminin.com) e o francês Lagardère (Europe 1, Paris Match, leguide.com) acusam o Google de práticas anticoncorrenciais, da mesma forma que trinta outros reclamantes. Após uma pesquisa realizada em 2010 pela Comissão Europeia contra o Abuso de Poder, esse grupo de pressão franco-germânico apresentou queixa em maio de 2014 em virtude da promoção, pelo motor de busca, de seus próprios serviços em detrimento dos concorrentes. Segundo o OIP, esse favorecimento não tem equivalente no mundo físico, exceto se imaginarmos uma grande loja que reservasse os primeiros andares de seu espaço comercial a artigos próprios.
“Na Alemanha, quando você escolhe o nome de duas cidades entre as quais deseja viajar, o Google Maps sempre aparece em primeiro lugar com seu serviço de trens”, fulminou Christoph Keese, vice-presidente executivo do Axel Springer, em maio de 2014. “Da mesma maneira […], quando você procura o nome de uma banda de rock, o YouTube [propriedade do Google] é sistematicamente citado à frente nos resultados da busca.” Presente há pouco tempo na geolocalização viária (Waze), o Google penetrou na área de seguros (Compare Auto Insurance), fibra óptica (Fiber), automóveis (Car), saúde e casa conectada (Nest). Seu ramo “shopping” já permite a comparação de preços de produtos e orienta, assim, as decisões de compra. A fim de camuflar sua ubiquidade, a empresa disfarça desde agosto de 2015 suas novas atividades sob o nome de “Alphabet”.
Caberia enxergar, como o Financial Times, uma ligação entre o apoio dado pelas publicações Springer à chegada de Jean-Claude Juncker à chefia da Comissão Europeia e o resultado da investigação sobre abuso de poder concluída em abril de 2015 pela dita Comissão?2 O procedimento se arrasta há cinco anos. Com o advento da nova Comissão, em novembro de 2014, e a nomeação da dinamarquesa Margrethe Vestager como comissária da Concorrência, as coisas começam a andar. Em abril de 2015, Bruxelas acusava formalmente o comparador de preços do Google de práticas anticoncorrenciais e ampliava suas investigações para outros serviços, despertando o entusiasmo do Parlamento europeu e do ministro da Economia alemão, Sigmar Gabriel.
O círculo estava se fechando. Em 2014, a comissária europeia para a Sociedade Digital, Neelie Kroes, organizou um simpósio sobre a economia digital com o presidente executivo do Google no papel de convidado de honra, enquanto seu colega da Concorrência, Joachim Almunia, tentava impor um acordo bastante vantajoso para o gigante do mundo digital. A mobilização do lobby europeu das empresas de mídia e telecomunicações sem dúvida favoreceu a mudança.
Doravante, a queda de braço será com o outro lado do Atlântico. “Nós possuímos a internet. Nossas empresas a criaram, ampliaram e aperfeiçoaram de um modo que descarta qualquer competição. Frequentemente, o que se apresenta como atitudes nobres foi concebido apenas para defender alguns dos interesses comerciais de nossos concorrentes”, declarou Barack Obama no site Re/code em 16 de fevereiro de 2015, pouco depois da votação (novembro de 2014) de uma moção sem força executória do Parlamento europeu, que pedia o desmembramento do Google. Esse franco apoio a uma empresa que o ajudou financeiramente em sua campanha à presidência em 2012 (o terceiro maior contribuinte, com US$ 804 mil de doação)3 e se juntou à NSA no esquema de escutas revelado por Snowden interferiu na negociação de um tratado comercial entre União Europeia e Estados Unidos.
O presidente Obama sabe muito bem: na Europa, o Gafa enfrenta uma coalizão de interesses industriais. Na França, Stéphane Richard, CEO da Orange, fala em “retorno ao imperialismo e ao colonialismo norte-americano em matéria digital”4 –, evitando esclarecer que seu próprio grupo é alvo constante da mesma acusação na África. Os operadores europeus temem ser relegados à função de distribuidores de fluxo a custo fixo, em um momento em que o princípio de neutralidade da internet, garantido recentemente pelo governo francês, permite às plataformas norte-americanas (YouTube e Netflix, por exemplo) aproveitar-se das infraestruturas de rede (4G, fibra óptica…) para descarregar seus vídeos em rotas de informação que elas não ajudam a manter.
“O desmantelamento deve
ser levado em conta”
“Temos medo do Google”, escreveu em 2014 Mathias Döpfner, dono do grupo Axel Springer. “Digo isso clara e francamente porque poucos de meus colegas ousam fazê-lo.”5 Como reina inconteste na pesquisa on-line, equipa três quartos dos smartphones com seu sistema operacional Android, possui o principal navegador do mundo e, com o Gmail, detém o serviço mais utilizado de e-mails, o colosso fundado por Larry Page e Serguei Brin inspira cada vez mais desconfiança. Na Alemanha, até os titãs da indústria automobilística se inquietam. Um consórcio reuniu há pouco Mercedes Benz, Audi e BMW com a finalidade de resistir ao Google Maps, adquirindo da Nokia o serviço de navegação integrada Here: assim, espera-se conservar o controle dos dados de navegação dos motoristas. Podem contar, para isso, com o apoio de Sigmar Gabriel. No entender do ministro alemão da Economia, a batalha contra os grupos do Vale do Silício mobiliza “o futuro da democracia na era digital” e “a emancipação, a participação e a autodeterminação de 500 milhões de pessoas na Europa”.6 O dirigente social-democrata não exclui, como “último recurso”, o desmantelamento do Google para impedir o gigante norte-americano de “esmagar sistematicamente seus rivais”. Nesse ponto, pensa como seu colega Heiko Mass, ministro da Justiça, para quem “o desmantelamento deve ser levado em conta” caso se prove que o Google comete abuso de poder.
A cabeça do Google ainda está longe da guilhotina antitruste que decapitou a Standard Oil há um século e a operadora de telecomunicações norte-americana AT&T em 1982. De um lado, a Comissão Europeia presidida por Juncker parece decidida a impor as regras de um “mercado digital único”. Entretanto, segundo um porta-voz da Comissão, as normas adotadas pela União Europeia devem justamente “tornar mais fácil para as empresas não europeias o acesso ao mercado comum. É do interesse das companhias norte-americanas que essas normas sejam uniformes”.7 Os diretores do Google compreenderam que, doravante, será necessário mobilizar uma força de lobby a toda prova. No primeiro semestre de 2015, com um sólido orçamento anual de 3,5 milhões de euros e após 29 encontros com os comissários europeus, a empresa procurou desenvolver uma forte atividade de influência junto às instâncias de Bruxelas.
Google News, prova da incoerência europeia
A hegemonia do Google se verifica também por intermédio de seu site Google News, que hospeda artigos e conteúdos dos meios de comunicação. Em fevereiro de 2013, os editores da imprensa francesa aceitaram renunciar a seus direitos sobre os artigos divulgados na forma de resumos em troca da doação, pelo Google, de um fundo de 60 milhões de euros, em três anos, para apoiar projetos de imprensa “inovadores”, um sistema que ele agora procura estender a vários jornais europeus, acenando-lhes com 150 milhões de euros. Em contrapartida, o gigante não paga nada pelo fluxo desviado para seu site, alegando que não coleta publicidade.
Eis aí uma abordagem radicalmente diferente da adotada pela Alemanha, que no verão de 2014 aprovou uma “lex Google” a fim de obrigar o grupo digital a remunerar os donos dos direitos sobre os artigos canalizados para seu site de atualidades. Mas, se a lei almejava coagir o Google a pagar, o que ela fez foi induzi-lo a esquecer os artigos e as fotos para só conservar os títulos. Mathias Döpfner, dono do grupo de imprensa alemão Axel Springer, que processara o motor de busca perante a autoridade anticartel de seu país, renunciou a qualquer pagamento depois de perder 40% do fluxo de seus principais sites. Na Espanha, no fim de 2014, o Legislativo acreditou que poderia contornar o problema exigindo que todo compilador de artigos remunerasse seus editores. O Google, apesar de um lucro líquido de US$ 14,4 bilhões em 2014, decidiu não pagar e fechou seu Google Noticias. “Organizar a informação do mundo”, objetivo que o Google dá como seu, custa seguramente menos que produzi-la.