Feminismo e solidariedade em torno da luta contra uma opressão comum
Em debate promovido pela editora Boitempo, Preta Ferreira e Judith Butler falam da interseccionalidade de suas lutas, que combatem as diferentes formas de opressão que a violência de gênero assume
Dentre as mesas que integram o ciclo de debates “Feminismo para os 99%”, idealizado pela Editora Boitempo, a discussão sobre “Feminismo, corpos e territórios” posicionou Preta Ferreira e Judith Butler lado a lado para apontar, dentre outros temas, as mazelas vividas por diferentes grupos dentro da luta contra o patriarcado. Mediado pela escritora e cientista política Flávia Biroli, a conversa perpassou as batalhas travadas por cada uma das palestrantes e a interseccionalidade de suas lutas, em torno do combate às muitas formas de opressão que a violência de gênero assume.
“Quem não luta, está morto”
Janice Ferreira Silva, conhecida como Preta Ferreira, abriu o debate com relatos de sua própria vida. Coordenadora do Movimento Sem-Teto do Centro, de São Paulo, que tem como uma de suas palavras de ordem “Quem não luta está morto”, foi presa, no ano de 2019, por 108 dias após ser injustamente acusada de subverter o movimento do qual é líder, episódio que relata em seu livro “Minha Carne: diário de uma prisão”. Ao ver sua vida marcada pelas acusações de um Estado racista e que busca criminalizar, a todo custo, os movimentos sociais, torna-se uma abolicionista prisional, cuja principal tese está na exposição dos reais objetivos das prisões brasileiras: punir, torturar e matar corpos pretos e pobres.
A partir de sua experiência, incorpora à sua luta o olhar sobre as brasileiras presas, cujo perfil é facilmente delineável: mulheres negras, mães solteiras e pobres, sem acesso à educação e emprego formal. “[O movimento] Não é só ‘Preta Livre’. São ‘Pretas Livres’, mulheres livres. Não temos Justiça no Brasil.” A exclusão desse grupo da sociedade representa mais que uma política racista, é uma legitimação de seu extermínio, que nunca deixou de vigorar no Brasil.
Para além da militância anti-cárcere, Preta fala sobre as dificuldades da defesa de moradia digna para todes. Durante a pandemia de Covid-19, ficaram evidentes as desigualdades que permeiam a própria contenção da doença: o Estado que recomenda que as pessoas fiquem em casa é o mesmo que promove despejos e reintegrações de posse em larga escala, durante o período de crise que vivemos. Segundo levantamento feito pelas mais de quarenta entidades que integram a Campanha Despejo Zero, cerca de 6.373 famílias foram despejadas, entre 1º de março e 31 de agosto de 2020.
A falta de amparo estatal e até sua reprodução de violência, legitimada por meio de leis feitas “por homens e para homens”, como coloca a ativista, faz o fardo da pobreza e da crise recair sobre as mulheres. “Quanto maior a ausência do Estado, maiores são as obrigações da instituição familiar nas tarefas do ‘cuidado’, lógica que acentua a exploração do trabalho reprodutivo das mulheres.” Essa colocação acende uma importante luz no cenário do debate feminista voltado para a maioria: a luta feminista é, essencialmente, anticapitalista.
O feminismo existe para não morrermos
É sob essa mesma luz que a filósofa estadunidense Judith Butler inicia suas colocações. Uma das maiores referências em feminismo e teoria queer contemporânea, Butler viu de perto a disseminação do conservadorismo e da negação das pautas de gênero no Brasil ao sofrer ataques de grupos “contra a ideologia de gênero” quando visitou o país em 2017 para ministrar uma palestra cujo tema era – ironicamente – “Os fins da democracia” (“The ends of democracy”). Através de uma análise precisa do governo Bolsonaro, no que tange a vida das mulheres e pessoas LGBTQIA+, além do combate ao coronavírus, a filósofa faz coro com Preta ao apontar o projeto político de genocídio contra essas pessoas.
A pandemia de Covid-19 acentuou todas as opressões já existentes, há séculos, sofridas por corpos precarizados pelo capitalismo. Quando o governo federal prioriza a abertura do comércio em detrimento da proteção de vidas humanas, os homens no poder sabem bem quem compõe a classe mais afetada pela doença. São aqueles considerados não produtivos, cuja existência e preservação da vida não interessam aos que buscam o lucro a todo custo. Portanto, muitos dos representantes políticos não se envergonham de promover um genocídio massivo em defesa da lógica de mercado.
Como em todos os cenários de crise, o chamado capitalismo do desastre – termo cunhado por Naomi Klein em A doutrina do choque – recaiu de forma muito mais violenta sobre as mulheres, principalmente as negras. Os serviços informais, os mais impactados pela recessão gerada pela pandemia, como faxina, venda ambulante, feirantes, que são, em sua maioria, desempenhados por mulheres pretas, foram interrompidos de forma brusca, sem qualquer suporte para que sua renda e suas condições de vida fossem mantidas. Não é condizente exigir que essas mulheres fiquem em casa quando não há moradia digna, proteção contra a violência doméstica e auxílio financeiro do governo, para que não sejam forçadas a ir trabalhar.
Nesse cenário, o movimento conservador e a extrema-direita têm se aproveitado da fragilidade das estruturas sociais para desenvolver artifícios que visam derrubar as poucas leis feitas para protegê-las. Diante disso, o feminismo se torna uma necessidade, que nasce da ausência de direitos básicos. E ele deve ser cultivado não como uma identidade, mas como “exercício de solidariedade no qual se negociam as diferenças em prol da luta contra um opressor comum” diz Judith Butler. “É um cuidado radical, deve ser uma forma de conectar lutas, e não se restringir a uma delas.” Essa definição da filósofa aponta um norte para o qual o feminismo para os 99% deve rumar, sua essência é combater a morte e o descaso nos piores cenários, “ele existe para não morrermos”.
A criminalização da defesa de direitos
Somado ao assassinato, perseguição e racismo contra os grupos colocados em situação de vulnerabilidade pela sociedade, há também o repressivo silenciamento daqueles que reclamam por direitos constitucionais básicos. Os combatentes de um projeto político higienista, aqueles que tomam a frente da luta por justiça, passam a ser vistos como inimigos do Estado.
A criminalização de movimentos sociais e do ativismo político também integra a agenda de repressão e violência mantida pelo atual governo, a exemplo da prisão política de Preta. Na ausência de direito de justiça e de reintegração das populações marginalizadas na sociedade, esse movimento é feito por redes de apoio comunitárias, que já nascem, em sua maioria, na mira da polícia e da lei. Deslegitimadas pela subversão da ideia de justiça nas esferas de poder, tudo aquilo que configura oposição à necropolítica bolsonarista é uma ameaça, enquanto aquilo que caminha ao lado de seus ideais, como milícias e grupos paramilitares, encontram a aprovação tácita do governo, mesmo que não se enquadrem na lei.
Para Judith, “as mulheres, especialmente as pretas, sempre foram uma ameaça à nação, porque a ideia de nação sempre foi masculina e branca”. E não há a garantia de segurança num cenário autoritário, potencializado pela crise sanitária. Os direitos básicos prestes a serem conquistados, a duras penas, agora sofrem um retrocesso sem retorno, e violentam, cada dia mais, as mulheres e seus corpos. Num país onde imperam projetos genocidas, a lei se torna o instrumento da morte, em vez de uma ferramenta para evitá-la.
Laura Toyama faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.
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