Fernando Solanas: entre a Terra e as Nuvens, o Sonho
Em entrevista especial para Le Monde Diplomatique Brasil, um dos grandes cineastas latino-americanos contemporâneos descreve sua formação política, explica como ela influenciou sua obra e defende uma estética que articule investigação profunda da realidade com invenção formal incessanteMoara Passoni, Javier Cencig
Autor de diversos filmes marcantes – dentre eles Tangos, o Exílio de Gardel (1985), “tanguédia” exibida no encerramento do festival -, procurou formas próprias de contar suas histórias, reunindo a função de crítica política e cultural a um enorme ímpeto criativo. Mesmo em épocas de apatia generalizada, Solanas jamais acreditou na existência de uma arte apolítica (já que o gesto artístico já é em si político). Ele enfatiza que isso não implica a negação da importância da invenção e da criatividade. A terra e seu potencial sempre foram sua preocupação, mas são as nuvens que o atraem. A névoa parece ser uma figura recorrente em sua obra, uma figura que traz a redenção nos momentos mais críticos. É envolta nela que San Martín e Gardel socorrem o escritor desesperançado ao final de Tangos; é envolta nela que o público retorna ao teatro El Espejo, quando já sua demolição mostrava-se o desfecho inevitável, a despeito da heróica resistência de Max, seu diretor, contra a “modernização” – leia-se eliminação dos espaços que não atendem às exigências de produtividade e eficiência – da região.
É Solanas, enfim, que, assistindo a um país cada vez mais dilapidado, busca incessantemente resgatar a nefelibática esperança. É esse o tom do documentário Argentina Latente (2007) que, muito além de denunciar o saqueio ao patrimônio público como nos filmes anteriores de sua série (Memória do Saqueio, de 2004, e A Dignidade dos Ninguéns, de 2005), concentra-se em explorar as potencialidades do país. Os documentários têm grande relevo na filmografia de Solanas, mas o próprio diretor mostra-se pouco à vontade com o termo, preferindo a palavra ensaio. Assim refere-se, por exemplo, a Hora dos Fornos (1968), seu primeiro longa-metragem, realizado clandestinamente na década de 60, com o intuito de discorrer sobre o neo-colonialismo na Argentina e no continente. O filme foi um marco para o cinema de resistência no continente e deu impulso à criação do grupo Cine Liberación, que tinha por mote a busca por um cinema independente e crítico, em uma época de forte repressão. No país, o filme foi exibido em circuitos alternativos de exibição, como organizações sociais e políticas clandestinas; no exterior, difundiu-se em universidades, cineclubes e organizações de defesa dos direitos humanos.
A militância de Solanas, no entanto, não se restringe à sua atividade como cineasta. Sua trajetória política inclui a candidatura à Presidência (em 2007), ao Senado (em 1992) e um mandato como deputado nacional (de 1993 a 1997). Já no início desta década, propôs a fundação do Movimento pela Recuperação da Energia Nacional Orientadora (Moreno) para pôr em debate questões relativas à gestão de recursos naturais estratégicos e à importância da recuperação do patrimônio energético nacional. Concomitantemente, articulou a criação do espaço político Proyecto SUR, dedicado à pesquisa de uma proposta programática nacional, que, certamente, reverbera em seu último filme, Argentina Latente. Sua preocupação com os recursos nacionais, aliás, tem sido uma constância em sua luta e na década de 90, fez com que se altercasse com o então presidente Menem, a quem acusava de liderar um bando de delinqüentes que saqueavam o país. Nesse episódio, acabou sofrendo um atentado em que foi atingido por seis tiros nas pernas.
Como cineasta ou em sua vida política, Pino Solanas é, antes de tudo, um nacionalista preocupado em discutir um projeto (nacional) para a Argentina — mas no contexto de uma integração latino-americana que resgata o sonho de pensadores e libertadores do continente como Bolívar, San Martín, Tupac Amaru, entre outros. Tal postura está patente em seus filmes. Transparece na temática, como em A Viagem (1992), um relato de viagem de um garoto que atravessa o continente em busca do pai, uma metáfora de uma espécie de celebração do quinto centenário de sua “descoberta”. Mas também em sua busca por um cinema mais autêntico, imaginativo e poético, formas narrativas inovadoras capazes de romper com a estrutura de causa e efeito tão cara ao cinema hollywoodiano. A estrutura de Tangos, Exílio de Gardel, por exemplo, é descrita por Pino como uma “acumulação que conta”.
Para discorrer sobre a vida de Solanas é embalde tentar separar arte e política, pois como revelou durante nossas conversas no Memorial da América Latina, ele mesmo não acredita na existência de uma arte apolítica. Realça, no entanto, que o forte compromisso político de uma obra não a exime de procurar maneiras criativas e autênticas de fazê-la. “Não se trata de contaminar a expressão artística com o tema da história, mas sim, de romper com isto, de fazer um cinema com a mesma liberdade que tem um escritor”, diz Solanas. Enfim, a realidade do país, da terra, não espera inerte o fiel retrato do artista; contemplamos, antes, entre as nuvens, o sonho que renova a cada momento a esperança de uma vida livre que recalcitra em meio a tanto sofrimento. Leia a seguir a entrevista concedida pelo diretor a Le Monde Diplomatique, durante o III Festival Latino-americano de Cinema de São Paulo. (Moara Passoni e Javier Cencig)
Le Monde Diplomatique: Como o senhor vê a relação entre arte e política em sua obra?
Fernando Solanas: Estou trabalhando no cinema com mais compromisso que nunca. Ou seja, fazendo um cinema com forte base testemunhal e reflexiva. Sobre grandes problemas sociais e políticos argentinos. Isso se impôs em minha obra desde a sua origem. Observe que meu primeiro filme, A hora dos fornos, foi, em vez de ficção, um longo trabalho de pesquisa sociológica, histórica e política sobre a Argentina dos anos 1960. Eu tinha me formado para fazer cinema de ficção. Comecei na música, fiz a Escola Nacional de Teatro, freqüentei oficinas de pintura, grupos literários… Minha idéia era fazer cinema de ficção com um forte trabalho sobre as imagens, mas as circunstâncias do meu país… Eu sou de uma geração… Veja, quando chega o ano 1955, eu tenho 19 anos e até 73 são 18 anos de ditaduras militares com pequenos momentos de governos constitucionais, mas fortemente dependentes da cúpula militar. Por todas essas coisas que não sabemos bem, por estes mistérios da vida, eu venho de uma família que não tinha nada a ver com política nem com arte. Filho de médico, família burguesa de classe média, tradicional, católica: a política não existia em casa. Mas desenvolvi uma forte sensibilidade social e, desde os 15 ou 16 anos, uma grande inclinação para leituras sobre temas sociais, históricos, políticos — além da literatura: li muita poesia, teatro, romances.
Esta vocação social foi muito forte e me levou a dedicar boa parte da minha vida à militância — em diversas organizações sociais, mais do que em partidos políticos. Na verdade, nunca me filiei a qualquer partido político. Nem ao peronismo. Para mim, o Partido Justicialista era mais um instrumento eleitoral e um foco de degradação das idéias ou de corrupção do que um instrumento a ser levado em conta. Mas assumi, ao longo de 50 anos de militância social e cultural, um forte compromisso político. Sempre tive consciência de onde estava. Sou da geração que vive de perto a revolução cubana e o Che. Em 62, ocorrem a vitória da frente de libertação nacional da Argélia, a derrota dos franceses em Diem Bien Phu, no Vietnã, o ressurgimento do movimento anticolonialista africano: Lumumba, Frantz Fanon, todas as idéias e movimentos dos anos 60, toda essa luta terceiro mundista. Eu freqüentava lugares, personalidades e círculos intelectuais ou políticos… Freqüentava a casa de Raúl Scalabrini Ortiz [1].
Cheguei a cursar alguns anos de Direito, com seu filho; conheci Scalabrini e Jauretche, dois grandes pensadores inclassificáveis. A esquerda dizia que eram fascistas, enquanto a direita afirmava que eram bolcheviques. É o que se chamou de germe da esquerda nacional – uma esquerda que, distanciando-se dos fortes dogmas políticos da época, tentava pensar e ver a realidade nacional tal como ela se apresentava e pesquisá-la exatamente como ela era. São anos de um stalinismo muito duro: se você fosse marxista, tinha que fazer parte do Partido Comunista ou de suas organizações paralelas. Mas eu vivi uma época excepcional, e tenho plena consciência disso.
Em 1956, a Aeronáutica e a Marinha bombardeiam Buenos Aires e matam centenas, para derrubar Perón. Também é o ano em que se revelam os crimes de Stálin. Estes fatos marcaram minha consciência
Como isso influencia sua formação política?
Solanas: Em 55, vivencio o bombardeio da Praça de Maio e acredito que isso tenha sido um grande detonador em minha consciência política. Eu vinha de uma família anti-peronista, católica, em meio ao conflito de Perón com a Igreja. O massacre de 16 de junho de 55 [2]me marcou profundamentete. Começo a ver a história de uma outra maneira. Em 56, ocorre o fuzilamento de José León Suárez [3]. São fuzilados dezesseis civis (pela primeira vez na história argentina), além dos generais Valle e Tanco, que comandaram o levante contra a Revolução Gorila.
Também é o ano do 20º congresso do Partido Comunista da União Soviética (URSS), em que Kruschev revela todas as atrocidades do stalinismo. Boa parte do que os órgãos de imprensa do imperialismo diziam sobre a ditadura soviética, seus crimes e terror era verdade. A consciência e os modelos maniqueístas se rompem. E depois vem a repressão dos tanques russos em Budapeste, algo que se repete, anos mais tarde, em Praga. Tudo isso foi ajudando na formação de uma consciência política de esquerda livre dos dogmas da política internacional da URSS. Os soviéticos exerciam o papel de uma espécie de sócio-imperialismo, as teses chinesas estavam certas. Passo a me identificar muito com Scalabrini, Jauretche, a idéia de conceber um pensamento latino-americano… Tudo isso fez com que eu me dedicasse a ler em mais profundidade a história dos pensadores do continente. Havia, na época, um predomínio do marxismo soviético, entre os intelectuais de esquerda – que desconheciam a realidade latino-americana. Ainda hoje desconhecem. Hoje, isso está mudando, com a chegada da revolução e Chávez, que centrou todo seu discurso na referência a Bolívar, a marcha independentista, Simón Rodríguez, o redescobrimento de Tupac Amaru e dos grandes revolucionários da América Latina, o pensamento revolucionário de San Martín e de Artigas.
De que maneira todo esse contexto encontra eco em A Hora dos Fornos?
Solanas: Meu primeiro filme começa ao final de 1965, sem eu saber muito bem… Queria fazer um grande documentário que resgatasse a história proscrita. Naquela época, as imagens dos dez anos de terrorismo não tinham sido vistas ainda… Todo este fermento fez com que A Hora dos Fornos nascesse da idéia de resgatar as imagens de uma parte da história que estava renegada e censurada. E não é casual que surja paralelamente ao golpe militar do general Onganía. Tudo estava muito claro, mas era muito difícil tentar fazer um cinema crítico, inteligente, em circunstâncias de forte censura. Surge então a idéia de fazer um cinema com a mesma liberdade que um escritor tem ao escrever.
Mas onde exibi-lo? Não é possível responder todas as questões de um projeto ao mesmo tempo. É impossível responder. Percebemos que não podíamos exibir numa sala de cinema — ou seja, seria um erro tentar fazer cinema fora do sistema, mas querendo voltar ao sistema. Sabíamos que as projeções fora do sistema tinham um êxito extraordinário. As pessoas compareciam mesmo. Como não havia nada de referência, fazíamos projeções com curtas cubanos, Joris Ivens, brasileiros como León Hirszman. Muita gente ia ver, em projeções particulares, clandestinas, em bairros populares. Nem bem mudávamos o rolo de projeção 16 mm, as pessoas já começavam a conversar sobre temas diversos. Os filmes serviam como ponto de partida, mas as conversas eram sobre o aqui e agora. Aí nasce a idéia do cine acto. Cinema ação. Um cinema em condições de resistência no contexto do país ocupado pela ditadura militar. Sujeito à mesma sorte a que estavam submetidas as organizações populares proibidas… Um cinema de resistência – não só para combater a ditadura, mas para produzir uma mudança social. E nos demos conta que, se o filme fosse interessante, haveria uma demanda enorme para vê-lo – e como estes temas geravam um interesse absoluto, isso já estava garantido. Projetar um cinema para o sujeito histórico protagonista da história que estávamos contando: como isso não iria interessar?
A hora dos fornos expressava um conceito de cinema-ação. Mais de 60 grupos exibiram o filme clandestinamente. Em 1968, ficou seis meses em cartaz na França, onde ainda não havia o cinema político de Godard
Esta foi a idéia de concepção do filme. Cinema ação, cinema para a ação. Projetado para motivar debates na sala, para ajudar a passar a uma instância de consciência superior. Enfim, esta foi a história de A Hora dos Fornos, que desenvolveu um circuito de cinema militante muito grande. Mais de 60 grupos, de diferentes organizações políticas, sociais e estudantis exibiam o filme clandestinamente. Em seguida, ele mostrou um caminho para boa parte do cinema de contestação mundial. A Hora dos Fornos já estava concluído quando ocorreu o maio francês. A estréia foi em 3 de junho de 68. Em seguida, foi exibido na França, onde ficou seis meses em cartaz. Ainda não existia o cinema político de Godard e o cinema de intervenção. Nos Estados Unidos, circulou por todas as universidades, com um sucesso extraordinário. Era a época do movimento hippie, em São Francisco, Berkeley. Continuei marcado pelos acontecimentos.
Se na literatura havia muitos escritores que combinavam literatura com ensaios políticos, mas no cinema, não. Eu fiz cinema de ficção e cinema-ensaio. Não gosto de chamar de documentário: não é simplesmente um testemunho da realidade, é intervenção, reflexão, cinema-ensaio. É um cinema que tem, ou pelo menos tento, o mesmo nível de um ensaio de história ou de sociologia ou de pensamento. Antes de fazê-lo, há uma intensa pesquisa, e depois a imagem é fortemente trabalhada. Não é simplesmente uma câmera que sai em busca de imagens. Há uma proposta de cena, de imagem, em cada uma das seqüências. Por isso, nos meus documentários, chama muita atenção o cuidado especial com a forma e a linguagem. A critica também assinala isso. Estão divididos em capítulos, como se fossem livros. As principais idéias são ressaltadas, aparecem escritas na tela, todas essas coisas que, enfim… Gosto muito do cinema mudo. Retomei muitos dos procedimentos do cinema mudo.
Num momento como o que vivemos, em que o cinema de resistência ou qualquer outra forma de cinema parece muitas vezes absorvidopor um sistema que transforma tudo em espetáculo, em show, como é possível criar uma resistência?
Solanas: Acredito que quando os trabalhos realmente descobrem uma realidade que não é vista nem ouvida, isso provoca um certo impacto. Um filme não é visto por todo mundo. Quem quer ver uma comédia não vai inventar de ver um dos meus documentários. E, além disso, como já conhecem o que eu penso, pois já tenho mais de 50 anos trabalhando, não vão vê-lo mesmo. Estes grandes documentários que estou fazendo, por sorte, acabam sendo vistos no canal educativo do Estado dirigido por um grande diretor, graças a quem foi possível assistir aos filmes em forma de série. De Memória do Saque a Argentina Latente, cada capítulo foi exibido 6 vezes por dia. E cada série foi reprisada três ou quatro vezes, de modo que pôde ser vista por toda a Argentina e isso teve um impacto enorme. Nada melhor que isso para a difusão. Depois, as salas… Não são feitas para este tipo de cinema. São os Multiplex, estimulam as pessoas a ir ao cinema em busca de entretenimento. Ninguém vai levar a namorada num sábado para assistir à Dignidade dos Ninguéns ou Memórias do Saque. São filmes que funcionam muito bem nas universidades, nos circuitos sociais. Permitem a reflexão, os debates e a descoberta de mundos.
Que filmes têm hoje influência ou alguma relação com seu trabalho? Quais filmes o senhor vê hoje em dia?
Solanas: Devo dizer, antes de qualquer coisa, que vou raramente ao cinema, disponho de muito pouco tempo. Boa parte é ocupada pelo cinema e a outra metade pela política, propriamente. Há seis anos, fundei o movimento pela recuperação da energia (Moreno) e o projeto SUR, uma força política que participou das eleições pela primeira vez no ano passado. Fomos muito bem-sucedidos, apesar de pequenos: obtivemos 8% dos votos na capital sem dinheiro e com apenas dois meses de campanha. Somos uma força emergente de esquerda nacional — ou de uma nova esquerda. Isso demanda um tempo enorme: viajo ao interior, às províncias. Por isso, não vejo cinema. Às vezes, alguns filmes.. Evidentemente, adoro ver um grande documentário. Vi alguns muito bons, não lembro os nomes, alguns longas sobre o conflito palestino-israelense. Sobre o conflito na Faixa de Gaza, sobre a China. Vi O pesadelo de Darwin, muito bom, e alguns outros… Assisto cinema de ficção também, mas não só o cinema enriquece o que fazemos: também uma boa peça de teatro, exposições.
O essencial é tentar uma nova proposta, reinventar a comunicação. Pensar que tal invenção não é mais possível é o mesmo que afirmar a impossibilidade de pintar um retrato, depois de Da Vinci ou Picasso…
É possível falar em um cinema latino-americano? Como é fazer cinema hoje e como era fazê-lo nos anos 60 e 70? Onde fica o projeto de buscar poéticas próprias para contar as histórias da América Latina?
Solanas: São temas muito vastos e é difícil falar sobre eles. As estéticas não são programadas. São resultados de uma prática que busca determinada expressão. Esses resultados estéticos, quando têm impacto e certa originalidade, exercem uma determinada influência. Além disso, o cinema latino-americano é muito vasto, muito grande. Eu assisto pouquíssimo, pois não chega. Praticamente só é possível vê-lo em festival, algum filme que me recomendam. Os mexicanos estão fazendo coisas interessantes. Em Guadalajara vi um filme muito interessante de ficção do diretor Reygadas. Um tipo de ficção de alguém que sai dos cânones.
Hoje, a América Latina tem três ou quatro linhas. Uma linha faz cinema de Hollywood em seu próprio país; outra, tenta fazer um cinema de ficção com identidade própria, como é o caso de Reygadas. Claro, isso sem mencionar o cinema claramente comercial que é feito em nossos países. É um cinema de raiz hollywoodiana, que procura o público com uma linguagem brilhante, profissional, violenta e uma estrutura de roteiro de causa e efeito. Você assiste a um filme mexicano como Babel, ou um filme brasileiro de sucesso, e não dá para saber quem filmou. Também na Argentina acontece isso. Mas é um cinema de qualidade, um cinema em seu ofício e seu objetivo. Do contrário, não funcionaria. É inegável que Cidade de Deus tem uma excelente qualidade. Mas é um cinema de estrutura hollywoodiana feito no Brasil. Seu diretor tem muito talento: o fantástico trabalho feito com aqueles jovens, com as crianças. Em todos os nossos países existe um cinema comercial. Há ainda um cinema que procura a si mesmo; e um cinema jovem, de vanguarda. Aí está a coisa mais fresca, porque não está condicionada. Não estão nem um pouco preocupados com seu destinatário, nem com a comunicação, ou com o público. E isso é extremamente difícil, porque de repente acontece que não sobra ninguém na sala de cinema para assistir. O outro extremo é fazer um cinema para captar mais público, torná-lo mais rentável e cair no cinema de fórmulas.
Nos anos 60 e 70, fazer filmes era, para nós que vivíamos sob ditaduras militares, uma verdadeira aventura épica. Eram atos de resistência. Na ditadura de Onganía, por exemplo, fazer um filme sobre Che Guevara era pedir para ir preso. Mas também nesta época, funcionava o cinema normal, havia cinema de autor, comercial, etc. O principal é que hoje, em nossos países, o que domina a cultura e a comunicação audiovisual — e, portanto, o imaginário social e a consciência coletiva — é a televisão. Ela impôs seus códigos, sua linguagem, seus ritmos, sua estrutura dramática e sua estética. Transformou-se em um verdadeiro flagelo, açoite de nossos povos. É o açoite doce como o carinho da mulher desejada. Seduz, acaricia. As pessoas agradecem desde sua solidão: é a televisão que as diverte. Ela mostra a garota seminua, o palhaço, o jogo de futebol. Domina a linguagem e o cinema. Na minha época, conhecíamos o cinema indo às salas. Atualmente, os jovens assistem ao cinema na televisão. E a que tipo de cinema assistem? Ao cinema norte-americano. A televisão marca um sentido do tempo. Tudo isso influi, e o cinema está em minoria ou retaguarda, hoje. O que chega às salas é o cinema hollywoodiano. Na minha época, assistia a La dolce vita, 8 ½, La Strada, Acossado, de Godard, filmes de Bergman em salas com 1.500 lugares. Isso é impensável hoje.
Diante desse predomínio da televisão, o que resta ao cinema?
Solanas: O cinema ficou como algo da minoria, não tem comparação. Hoje, atrai um décimo ou 8 vezes menos espectadores que nos anos 50 e 60. Os códigos, os modelos comunicacionais são marcados pela televisão. Evidentemente, isso não significa que não haja uma grande audiência. Surpreendentemente, por exemplo, os documentários que fiz tiveram uma enorme audiência, quando transmitidos pela televisão. Alguns se equipararam aos programas de maior audiência. Não é que não tenham interesse. Para poder medir essas coisas, é preciso levar em conta muitos fatores: se houve a devida informação, publicidade, etc. Se você exibe um filme no mesmo horário do jogo entre Brasil e Argentina, por exemplo… Todas essas coisas devem ser levadas em conta para fazer uma medição real. O que existe, sim, é uma grande deserção por parte da juventude das expressões culturais clássicas, bem como da política. Certamente, o desafio é descobrir como voltar a despertar o interesse. Este é o papel da imaginação, da criatividade, do que não tem limites. O melhor, nesses casos, é afastar-se da televisão e do cinema que se submete. Tentar uma nova proposta, reinventar a comunicação. Isso é essencial. Pensar que essa invenção não é mais possível seria o mesmo que afirmar a impossibilidade de pintar um retrato, depois que grandes pintores como Da Vinci e Picasso o fizeram. Ou que não seria mais possível continuar escrevendo grandes histórias e poemas de amor, por mais que já tenham sido escritas tantas metáforas sobre olhos, sorrisos… Existirá sempre um poeta capaz de dizê-lo de uma forma diferente.
Mais
Esta é a terceira de uma série de matérias sobre os latino-americanos e seu cinema a partir do 3º Festival de Cinema Latino-americano de São Paulo, redigidas em colaboração por Iana Cossoy Paro, Javier Cencig, Thiago Mendonça e Moara Passoni. Veja os outros textos:
1.
Imagens de um continente em busca de si mesmo
Filmes, debates e oficinas expõem, em São Paulo, estado da produção cinematográfica na América Latina. Festival reflete momento em que tanto o continente quanto seu cinema buscam novos rumos ? mas já não o fazem com as lentes e projetos que marcaram o século 20
2.
O universal e o latino-americano: diálogos entrecruzados
Jornalismo-cinema: numa mesa imaginária, colagem de falas reais, personagens presentes ao 3º Festival, em São Paulo, debatem tanto as condições de produção e distribuição do cinema latino-americano quanto a possibilidade de um projeto estético que expresse a identidade da região
4.
Memórias do Subdesenvolvimento, arte e revoluções
Edmundo Desnoes, romancista e inspirador de um filme que marcou o cinema cubano, conversa sobre seu processo criativo, as encruzilhadas da Ilha, política e literatura na América Latina, a banalidade do consumo e a importância do ato de narrar, como sentido da própria existência humana
5.
Memórias do Desenvolvimento será dois filmes
Dirigida por Miguel Coyula, obra homônima ao roma