Ficção e realidade religadas pela consciência
Na década de 1970, o filósofo Herbert Marcuse fez um prognóstico pessimista, dizendo que a tecnologia seria responsável pela “escravidão universal” da humanidade. A escravidão, infelizmente, acredito que tenha superado as expectativas de Marcuse.
Instigado a responder a três questões[1] relativas ao impacto dos algoritmos em nossas vidas – se somos apenas algoritmos numa vida de processamento de dados, o que nos espera quando estes, altamente inteligentes, nos conhecerem melhor que a nós mesmos, e, qual o maior valor entre consciência e inteligência no que diz respeito à memória -, começo afirmando que a sociedade humana ainda tem muito o que a aprender a partir de sua própria memória histórica.
A questão central dessa discussão passa efetivamente por entender o quão emergente anda o capitalismo cognitivo, assim como as prioridades de investimentos advindas desta contemporaneidade, que em seu cerne valoriza mais a criação e a inovação do que necessariamente os processos repetitivos da industrialização, boa parte já realizada por máquinas, principalmente em indústrias de base e automobilísticas, entre outras.
Os investimentos em tecnologia, especialmente em Inteligência artificial e em processos de conexões neurais nos dão uma dimensão desta nova realidade. O jornal Valor Econômico publicou matéria[2] destacando uma pesquisa do Grupo Gartner, na qual estima que “a inteligência artificial, sozinha, vai gerar US$ 2,9 trilhões em novas oportunidades de criação de valor para as empresas até 2021, assim como recuperar 6,2 bilhões de horas de produtividade perdidas com atividades repetitivas, ou com a geração de insights e novas fontes de receita”.
Para se ter uma ideia da grandeza dessa movimentação financeira, tal valor é superior ao PIB nominal do conjunto, em caráter decrescente, das economias dos 100 dos 193 países do mundo, cerca de US$ 1,5 trilhão, de acordo com dados apurados a partir de projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI) para 2021[3]. O valor supera também o PIB brasileiro para o mesmo período, estimado em US$ 2,5 trilhões, sendo que o país estará em 80 lugar no ranking das maiores economias do mundo
Isso implica dizer que, do ponto de vista econômico, sob um viés neoliberal, o mercado tende a nos levar a um mundo mais desigual, contudo extremamente sofisticado em termos de inovação tecnológica: carro sem motorista, computação ubíqua, serviços de robótica, máquinas programando máquinas e conectivismo, entre outras, ora objeto de pesquisa em várias áreas do conhecimento, e, seguindo a lógica, com o aumento da fome severa no planeta.
A promessa de um mundo feliz se renova, a exemplo da não cumprida pela terceira revolução industrial, que teve início após o fim da Segunda Guerra Mundial. Sobretudo a partir de 1960, o mundo experimentou um desenvolvimento que transcendeu as transformações industriais de outrora, desembocando nesta suposta quarta revolução que estaríamos começando a viver agora. Na década de 1970, o filósofo Herbert Marcuse fez um prognóstico pessimista, dizendo que a tecnologia seria responsável pela “escravidão universal” da humanidade. A escravidão, infelizmente, acredito que tenha superado as expectativas de Marcuse.
As revoluções industriais, com todas as promessas de uma vida melhor, ainda não conseguiram corrigir as assimetrias regionais e sociais, e tiveram como denominador comum o processo de renovação da concentração da riqueza. Relatório da Oxfam, organização não-governamental britânica, segundo informações da BBC Brasil[4], dá conta de que a riqueza de 1% da população mundial, em 2016, equivalia à riqueza dos 99% restantes, em crescimento constante registrado desde 2009.
Hoje, num mundo onde o celular não é mais símbolo de exclusão social, ao contrário de uma garrafa de água mineral, acabamos experimentando uma falsa sensação, propiciada pelo mundo cibernético, de que as diferenças diminuíram por estarmos conectados a um suposto mundo do conhecimento. A ficção científica tem na trilogia Matrix[5] um ótimo exemplo desse estado.
As assimetrias podem ser vistas no próprio mapa da fome, que mostra uma população de 121 milhões[6] de pessoas vivendo em estado de fome severa em 51 países, ao mesmo tempo em que se registra no planeta uma expansão da “matrix” de usuários de celulares únicos. Em 2017, de acordo com relatório do GSMA[7], este número estava na casa de 5 bilhões de pessoas, e, somente para a América Latina e o Caribe projeta-se que, em 2020, cerca de 150 milhões estejam com seus aparelhos.
Considerando os aspectos relacionados ao capitalismo cognitivo, aos investimentos em tecnologia de dados, informação e comunicação, e ao aumento da concentração de renda no mundo, teríamos elementos indicativos de um cenário no qual os algoritmos inteligentes poderiam sobrepor a nossa consciência. Se voltamos, no entanto, a partir de nossa própria consciência, à história dos 500 anos de escravidão no Brasil, por exemplo, podemos mudar o rumo de nossa conversa.
Antes, porém, vamos a uma definição básica do que vem a ser um algoritmo. Usaremos um conceito simples, retirado da Wikipédia, denominando-o como “uma sequência finita de instruções bem definidas e não ambíguas, cada uma das quais devendo ser executadas mecânica ou eletronicamente em um intervalo de tempo finito e com uma quantidade de esforço finita[8]”. Grosso modo, um algoritmo é desenvolvido com o objetivo de se conseguir alcançar resultados com vista a solução de problemas.
Se preciso alcançar resultados para resolver problemas, podemos dizer, analogamente, que a sistematização dos castigos aplicados pelos senhores escravocratas eram também soluções algorítmicas, e, tinham até nomes: Anjinhos, Máscaras, Tronco e açoite, Bolo, Colar de pescoço e Vira mundo, entre tantas. Cada técnica era usada com determinado objetivo, de forma finita, sistêmica e inteligente, na busca de solução de problemas, não visando o extermínio das “propriedades” daqueles senhores, mas, sim, a obediência e o extermínio de consciências dos escravos enquanto seres humanos.
A partir do nosso exemplo, podemos dizer que, em 500 anos de história, as “consciências” reagiram à “inteligência” criada para perpetuar um estágio de submissão humana, em nome da economia e do acúmulo de riquezas nas mãos de poucos. Tanto os alertas da ficção – leia-se Matrix, e incorporando agora o exemplo de o Exterminador do Futuro – quanto os fatos históricos, nos têm mostrado que as consciências tendem sempre a reagir à inteligência, sobretudo quando dominadora.
Independentemente da situação – seja nos Quilombos, com Zumbi dos Palmares, no submarino Nabucodonosor, de Matrix, onde vivem os rebeldes, ou ainda na vida ficcional de John Connor, que consegue reprogramar um “Exterminador” e enviá-lo ao passado para tentar evitar a morte de sua mãe Sarah, que tinha como missão destruir o supercomputador skynet, que acabaria com a humanidade – devemos sempre recorrer a nossa consciência e memória como meio de se buscar uma vida mais justa.
Na ficção, é oportuno relembrar que o mineral Coltan era utilizado para construir o androide “Exterminador”. Na vida real, esse mesmo produto está no centro de uma disputa bélica no Congo, iniciada em 1998, que já exterminou mais de 4 milhões de pessoas. Sem o Coltan, eu não estaria usando meu computador para escrever este artigo, não estaríamos construindo estações espaciais, capacitores de tântalo, baterias e outras tantas maravilhas que nos seduzem em nosso dia-a-dia. Eu, enquanto consumidor, fomento este negócio, hoje capitaneado por empresas como Apple, Samsung e Sony que figuram, segundo dados da Rádio e Televisão de Portugal (RTP)[9], entre as 16 multinacionais que também exploram o chamado “ouro cinza” do Congo
Não se trata de desprezar o conhecimento, o desenvolvimento tecnológico e a utilização de algoritmos para a solução de problemas necessários à sobrevivência da humanidade e do seu meio ambiente, mas, sobretudo, de se ter consciência de que “apenas a utopia do saber compartilhado na produção como no consumo pode nos unir contra os projetos de sociedade da informação ligados a seus engodos reciclados das ideologias etnocêntricas da modernização sem fim (MATTELARD, 2010)[10].
Se não buscarmos alternativas, continuaremos fomentando barbáries como a do Congo, e outras tantas bem próximas de nós – leia-se, por exemplo, as indústrias clandestinas de carvão, do sexo, do tráfico -, que submetem inúmeras pessoas, sobretudo crianças, aos mais diversos tipos de violência, colocando-as em uma verdadeira “matrix” para gerar energia, produtos estratégicos e “prazer” que garantam a funcionalidade de nosso “admirável mundo novo”.
* Francisco José Daher Junior (Chico Daher) é jornalista, M.e. em Gestão Social e Educação e doutorando em Ciência da Informação (Universidade Federal da Bahia – UFBA)