Filosofia: ainda vale alguma coisa?
Diante da marginalização da Filosofia não somente como disciplina, mas como ferramenta no auxílio do pensamento crítico, há motivos para comemorar esse dia?
No dia 16 de agosto, se comemora o “Dia do Filósofo”. Diante do crescente movimento de marginalização da Filosofia não somente como disciplina, mas como ferramenta no auxílio do pensamento crítico, há motivos, atualmente, para comemorar esse dia?
O dia escolhido para jubilar e homenagear os filósofos –e todos aqueles que trabalham e são profissionais dessa área do conhecimento– remete ao aniversário de Platão, pensador grego que viveu entre os séculos IV e III a.C. Platão observava a Filosofia como necessidade de explicar o mundo, o conhecimento supremo das formas, que é o próprio fim da humanidade: a ascensão a este conhecimento. O conhecimento não é fixo ou imutável, não condensado numa doutrina específica, sendo por conta disso aberto à busca contínua.
É importante lembrar que, nos dias de hoje, se discute o surgimento histórico da filosofia enquanto saber racional, visto que, por séculos, foi apontada como nascida na Grécia, por volta do século IV a.C., como necessidade na explicação do mundo e dos acontecimentos. Porém, na contemporaneidade, levantou-se a questão de que existiam inúmeros saberes e filosofias bem antes da produzida pelos gregos, em especial na África, suprimidas ou aprendidas e postas em prática após o contato direto com diversos pensadores. Estes, em contrapartida, não tiveram suas histórias e seus nomes alocados no hall da imortalidade do saber. Em todo caso, a filosofia nasceu como ferramenta para questionar o que antes era explicado pela mitologia, no intuito de compreender o mundo pela racionalidade sistemática.
Em primeiro lugar, o conceito de marginalização à luz da sociologia moderna remete ao processo de exclusão, seja ela política, cultural, religiosa, econômica ou social. Os que sofrem com o processo e movimento se tornam indivíduos “à margem”, nos remetendo algo que não está na diretriz formal ou no caminho traçado a priori, mas como objeto não pertencente ou indigno da participação dentro de um determinado conjunto. Através da normatização desse hábito, que se dá em todas as esferas da vida do ser humano, julgamos previamente o valor da coisa pela sua inserção na normalidade pré-estabelecida. A falácia da generalização apressada é costumeiramente usada quando pressupomos que o não pertencimento da coisa à “normalidade” é a sua condenação ou, em outras palavras, seria o motivo justo para evitá-la. Justo não somente, mas uma condenação latae sententiae (automática).
Quando pensamos no mundo moderno e sua predileção pelo neoliberalismo e pelo capitalismo, como modelos indiscutíveis nos modus vivendi e operandi, em todas as áreas do saber, a Filosofia deixa de ter serventia, transformando-se em um mecanismo sem utilidade prática e sem resultados expressivos. Dessa forma, o caminho trilhado por essa área do conhecimento no Brasil não é o mais atraente: quando não é restrita às elites culturais e econômicas, em especial àquelas que desejam reter o saber para poucos, é posta como disciplina buscada por pessoas inúteis e sem utilidade. “Filosofia é coisa de comunista” virou um jargão tão propagado quanto reproduzido, afastando até aqueles que um dia pensaram em debruçar-se na fina arte do saber.
O processo de marginalização das ciências humanas, em geral, não é novo. Com o golpe militar de 1964, os órgãos de segurança do governo iniciaram apurações com finalidade de extirpar infiltrações comunistas nas faculdades, através de dossiês específicos, resgatados e produzidos desde 1958 pelos órgãos da ditadura, que apontavam eventos e professores suspeitos de doutrinação.
A Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (atual UFRJ) sofreu com a repressão provocada pelo governo ditatorial, mesmo sem comprovação das acusações proferidas, como afirma a professora Marieta de Moraes Ferreira: “a comissão não encontrou elementos importantes para a comprovação das acusações feitas aos chamados comunistas da FNFi, tais como Viera Pinto e Maria Yedda Linhares”. Contudo, gradativamente, qualquer questionamento ou liberdade de pensamento seria suprimido por representar, para as autoridades militares, uma ameaça à ordem do país. Desse modo, a Filosofia (bem como suas seções inseridas nas Ciências Humanas: Pedagogia, História, Letras, Sociologia), que tem inerente à sua natureza o viés questionador de todas as coisas, foi duramente representada como subversiva e recomendada ao afastamento. No currículo da educação básica, foi inserida a disciplina “Moral e Cívica”.
Um respirar momentâneo
Em 2008, o vice-presidente José Alencar sancionou a obrigatoriedade do ensino da Filosofia e da Sociologia no país, e o Congresso Nacional alterou o artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Desde 1971, as duas matérias estavam excluídas do currículo da educação básica. Antes da resolução de 2008, já havia uma resolução, de dois anos antes, que orientava as redes estaduais de educação a ofertarem as duas disciplinas. Isso possibilitou a inserção dos profissionais da área da Filosofia e da Sociologia em seus respectivos campos, abrindo o mercado de trabalho e proporcionando novas oportunidades e renda. O discente, diferente de sua geração anterior, teria o espaço necessário para debater ideias e estimular seu pensamento crítico, à luz dos inúmeros teóricos e pensadores da história. Sem esquecer, óbvio, dos novos profissionais que seriam formados ao longo dos anos.
Um antigo pesadelo
A Reforma do Ensino Médio (ou “deforma”, se preferir), que teve sua gênese com a Lei nº 13.415/2017, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabeleceu uma mudança estrutural na base curricular do ensino médio, visando ampliar a gama de possibilidades futuras aos jovens, possibilitando-lhes a escolha das disciplinas. Na prática, a resolução representou a marginalização das disciplinas consideradas por muitos como de “segundo escalão”, dentre as quais a Filosofia.
A justificativa se deu pela evasão e reprovação dos alunos por conta da antiga grade curricular. Isso não considerou, por exemplo, a péssima infraestrutura da maioria das escolas no país, muito menos a baixa remuneração dos profissionais em geral, que precisam muitas vezes trabalhar em diversos locais para obter o mínimo de dignidade para sobreviver. Privilegiou-se o que fora considerado “essencial” (não excluo sua importância) para a formação técnica e profissional dos alunos, como língua portuguesa e matemática, excluindo disciplinas que possibilitem a reflexão da ordem social vigente. O que se vê atualmente é um enorme “Frankstein” pedagógico, sem base constituída para formar os alunos, expressamente nítido quando adentram os âmbitos da universidade e se deparam com disciplinas de Filosofia.
Qual o destino da filosofia no país?
Num artigo de 2019 para o Le Monde Diplomatique Brasil, a professora Franciele Bete Petry, da Universidade Federal de Santa Catarina, inicia seu texto, sob o título de “Por que não a Filosofia?”, com a seguinte frase: “uma sociedade que decide condenar a Filosofia precisa explicar por que o faz. Ela é inútil? Supérflua?”. Bom, o que se apresenta ao senso comum é uma caricatura formada pelo tempo, com ironia e desprezo, que é aproveitada por governos extremistas que formalizam esse preconceito no intuito de minar cada vez suas oposições. O movimento questionador gera impulsos que permitem refletir o mundo sem dogmatismos, na contramão dos regimes que pregam a uniformidade do agir e do pensar como elementos primordiais para a ordem. Ordem, palavra usada constantemente por grupos totalitários para velar seu projeto de poder hegemônico. Tudo que põe a dita “ordem” em xeque é motivo de perigo e ameaça. Ou seja, sobrou para a Filosofia.
Se no dia 16 de agosto, dedicamos a lembrança dos filósofos e profissionais dessa área do saber. Nos outros dias do ano, restam a marginalidade e o preconceito. No Brasil, especialmente, o desprezo por essa área do conhecimento gera um enorme potencial de pessoas propícias à manipulação, seja ela política ou religiosa, isso está cada vez mais evidente. Exaltam gurus e desprezam pensadores; veneram coachs e ridicularizam os profissionais da Filosofia. Dificilmente essa dinâmica mudará, em minha opinião, pois tudo isso faz parte de uma rede lucrativa sob a ótica neoliberal capitalista. Quanto mais ignorância, maior o lucro.
Concluo com a indagação trazida pela professora Franciele Petry, no mesmo artigo referenciado: “há boas razões para defender um projeto de formação humana que não considera o potencial dos indivíduos para criar e pensar um futuro melhor?”. É extremamente contraditório perseguir quem estimula e desenvolve o pensamento crítico no sujeito e dedicar um dia em sua comemoração. Não faz sentido.
Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF). Imortal da Academia Fluminense de Letras.