Fim da globalização, início da Europa?
Violando as regras de livre comércio que havia estabelecido anteriormente, a União Europeia não poupou esforços para que os bancos conseguissem se reestruturar. O fato é que as necessidades da beira do precipício não deixaram aos governos europeus outra escolha senão desrespeitar os dogmas da intervenção estatal
Os partidários da globalização econômica, que têm horror absoluto à política, entenderam perfeitamente que apelar para uma governança mundial seria o meio mais seguro de obter a paz. A mesma opinião, embora ligeiramente menos incisiva, ecoa entre economistas subitamente indignados pelos “excessos” do liberalismo e que agora estão engajados para uma coordenação global. Sim! Estruturemo-nos em escala planetária! Isso, porém, pode levar um “pouco” de tempo…
A evocação de grandes horizontes mundiais parece servir, invariavelmente, de desculpa para todas as hipocrisias de ações indefinidamente adiadas. Perseguir o sonho da globalização política que viria, enfim, para completar e estabilizar a globalização econômica, principalmente ao lhe dar “boas” instituições reguladoras, é não enxergar as condições de sua edificação e também de sua “eficácia” – não no sentido de eficácia econômica, mas da capacidade política dessas instituições imporem realmente suas normas. Não é insignificante o fato de que historicamente o capitalismo, ou melhor, os capitalismos, se desenvolveram no interior de cenários nacionais. Poderia ser pelo simples motivo que eles só são um processo de institucionalização significativo quando munidos de uma força adequada, isto é, apoiados em uma autêntica comunidade política constituída. Mas, onde está o Estado mundial que poderia reivindicar possuir tal força? Em lugar nenhum, pelo simples motivo de que não existe uma autêntica comunidade política mundial, ou seja, um corpo social global depositário, em última instância, da força apropriada pelos Estados.
Se a institucionalização reguladora do capitalismo pressupõe que se nivele a economia dos mercados e a política de construção institucional, trata-se então de fazer com que a primeira “desça” sem que a segunda seja impedida de “subir”. Desse ponto de vista, o nível regional se impõe, com força, como o novo plano territorial onde poderiam ser intensificadas experiências políticas já em curso, ainda que pouco desenvolvidas.
Defeitos quase óbvios
A Europa é, paradoxalmente, a melhor e a mais mal dividida de todas as regiões do mundo. Ninguém discute o fato de que ela é a mais avançada no processo de integração institucionalizada. Mas, como ocorre muitas vezes com as crises, o choque atual possui implacáveis propriedades reveladoras, no sentido quase fotográfico do termo, que podem assinalar os defeitos da construção europeia. Há muito tempo bem visíveis para quem quisesse enxergar, esses defeitos eram sempre recobertos pelas habituais negações. Mas, a singularidade e a violência do auge da crise tornaram insignificantes as estratégias cotidianas de minimização, dos necessários “esforços” e do chamado à paciência. Há aí uma oportunidade política que a história raramente põe à disposição. E o que se mostrava inconcebível tornou-se possível: destruir a Europa para refazer outra.
Seria realmente possível? Desse ponto de vista, poderíamos ficar tentados a já considerá-la morta. Simplesmente ela ainda não sabe disso. Entretanto, parece que sua encarnação, a Comissão Europeia, faz tudo o que está em seu poder para precipitar essa revelação terminal. Em uma espécie de apoteose de besteira doutrinária e com um insuperável sentido de oportunidade histórica, Neelie Kroes, comissária guardiã das regras da concorrência, não hesitou, em 2008, em intervir no grande debate sobre a crise financeira, declarando que a injeção de 10,5 bilhões de euros determinada pelo Estado francês para recapitalizar seis bancos (BNP Paribas, Crédit Agricole, Banques Populaires, Crédit Mutuel, Société Générale e Dexia) era ilegal aos olhos das santas leis da livre concorrência.1
É preciso admitir que, no papel e de um ponto de vista absolutamente formal, ela não está completamente errada. De fato há, no “adorável” Tratado de Lisboa, um artigo que proíbe ajudas estatais. Na verdade, o artigo em questão não é o único a ser ultrajado nessa época de salve-se-quem-puder: o fato é que as imperiosas necessidades da beira do precipício não deixaram aos governos europeus outra escolha senão desrespeitar os dogmas. Melhor seria, então, não se estender demais sobre essas irregularidades esperando que, passado o pior da crise, e com a ajuda de alguma espécie de amnésia, tudo entre na ordem da legalidade europeia, por um instante suspensa.
Entretanto, será preciso não ser avaro demais, pois do ponto de vista de suas disposições mais fundamentais de ordem econômica, o Tratado de Lisboa encontra-se reduzido a um estado lastimável. O artigo 123, que proíbe ao Banco Central Europeu emprestar “às administrações centrais, às autoridades regionais ou locais, às outras autoridades públicas dos Estados-membros” não o impediu de abrir um crédito de 5 bilhões de euros ao governo da Hungria, que nem sequer é membro da zona euro!”
Há também os artigos 101 e 102, o retorno à concorrência, que, proibindo as organizações de posições dominantes e servindo mais comumente de dissuasão às operações de concentração, visivelmente não colocaram nenhum obstáculo aos movimentos de reestruturação bancária. Estas, aliás, foram encorajadas pelos Estados, que viram aí uma oportunidade de economizar um pouco as finanças públicas, organizando a retomada dos bancos mais frágeis por aqueles que eram um pouco menos frágeis. Com as compras tumultuadas do Fortis pelo BNP-Paribas, do HBOS pelo Lloyd-TSB, do LBBW pelo Banco Regional da Baviera e do Dresdner pelo Commerzbank, a “consolidação” do setor viveu uma aceleração prodigiosa, dispensando claramente qualquer aprovação europeia numa área em que, em tempos ordinários, cada um desses casos teria sido minuciosamente examinado com uma lupa e, alguns deles, talvez fossem até descartados.
Mas tudo tem um limite: Neelie Kroes, comissária europeia para a Concorrência, quis calar-se enquanto essas instituições brincavam de banco imobiliário, mas também não podemos pedir-lhe que renegasse suas ideias indefinidamente, senão qual o sentido da existência de seu cargo? Observemos a ocasião escolhida por ela para quebrar esse ciclo de desrespeito: o artigo 107, que rege as ajudas do Estado. Afinal, na hierarquia das abominações, é sempre o Estado que vem em primeiro, e Neelie Kroes parte do pressuposto de que o privado sabe o que faz, mesmo que às vezes seja preciso, gentilmente, repreendê-lo.
Mas, o Estado! É óbvio que, entre todas as violações caracterizadas do Tratado Europeu, foram as ajudas estatais que levaram a comissária ao limite – e à sua primeira revolta. Infelizmente, o mundo é cruel e os países-membros, ingratos. A revanche não tardou. Estados especialmente conhecidos por não brincarem com a construção europeia, a Alemanha, a Suécia e a Bélgica manifestaram a Neelie Kroes que seria interessante para ela desaparecer de cena.
Mas como dar crédito a essa ideia de vocação para o pior? Eis que Joaquin Almunia, comissário dos Assuntos Econômicos e Monetários, faz uma aparição notável para lembrar que, ao final do artigo 126 e do pacto de estabilidade reunidos, os déficits públicos são obrigados a permanecer sob a barreira dos 3%. Tudo isso em meio à recessão do século. Procuramos imagens convincentes que ajudem a dar uma noção do grau de delírio a que a Comissão chegou nesse período: uma ambulância parada pela polícia por ter acabado de avançar um sinal amarelo no momento em que se dirigia ao local de um acidente. Ou um avião quase sem combustível impedido de aterrissar porque transportava um produto vencido.
Bem, a realidade é que os déficits aumentam e as dívidas públicas acumulam. Eles acreditam ser os únicos a perceber isso? Todos se preocupam que a mobilização de somas astronômicas pelos orçamentos governamentais seja capaz de preparar uma crise extraordinária das finanças públicas. Mas é de uma racionalidade elementar preferir uma crise possível mais tarde a uma morte certa, imediata. É necessário ganhar tempo. Essa é, sem dúvida, a última margem de manobra que resta aos Estados para tentar conter o desastre.
É preciso reconhecer, desculpando esses pobres comissários, que essa situação coloca a construção europeia em grande desequilíbrio jurídico. Afinal, foram ignorados os artigos 101, 102, 107, 123 e 126. E isso começa a ser um pouco demais.
Mas se os idealizadores desta Europa não ligaram muito para a coerência intelectual, tal não é o caso dos juristas, que têm a ver com a coerência do direito. Nem é preciso dizer o que pode ocorrer com o direito europeu nesse momento em que as necessidades vitais varrem tudo e conduzem a violá-lo alegremente. A ideia de um “direito por intermitência” parece não estar de acordo com a preferência dos juristas…
Quais serão os argumentos da Comissão Europeia após alguns anos, com a crise absorvida e os negócios retomando seu curso? E, sobretudo, como a Corte de Justiça das Comunidades Europeias poderá se opor aos candidatos a fusão bancária, quando estes evocarem os precedentes do Fortis-BNP-Paribas ou do HBOS-Lloyd TSB? Eis a fraqueza das construções institucionais com um aparato jurídico forte demais, como a União Europeia, que admitem ter pouca flexibilidade e que qualquer tentativa de dar um passo além, mesmo na urgência de uma situação de crise, cria um problema potencial. Poderiam objetar que o direito retifica o direito e que novas linhas diretrizes produzem, de fato, a adaptação das antigas. No entanto, será preciso submeter a juristas mais qualificados a validade, não do surgimento de novas linhas diretrizes, mas de linhas diretrizes “temporárias e reversíveis”, ou seja, ad hoc
Afinal, o que se pode dizer de artigos que foram tão mal pensados, e devem ser repudiados na primeira crise séria, senão que é preciso reescrevê-los do início ao fim e que o período presente oferece uma ótima oportunidade? O governo francês, com um pouco de senso histórico, aproveitaria essa ocasião excepcional para abrir uma crise política positiva, tão brutal quanto necessária, tolerável e mesmo desejável justamente porque permite refazer agora o que há muito tempo parecia impossível: relançar enfim a construção europeia sobre novas bases.
Que um governo francês de direita seja novamente o protagonista possível dessa prova de força acrescentaria um charme ao período. A presença de Nicolas Sarkozy à frente do Estado incita evidentemente à moderação, conhecendo a desproporção entre suas declarações e sua ação. O drama político é esse: se ele devia ter aí a mínima esperança, se posicionaria desse lado. Pois não se deve ter nenhuma ilusão quanto à capacidade dos sociais-democratas de fazer emergir uma contestação desse tipo: está irreversivelmente gravado em seu espírito que atacar esta Europa é atacar a Europa.
Se realmente está nesse percurso o resultado cada dia mais provável dessa delirante aventura, nos perguntamos se, para a própria ideia europeia, não seria desejável que um belo dia os “cidadãos europeus” fossem pessoalmente dizer uma palavra aos grandes doentes que tornaram esta Europa irreparável.
*Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu’à quand? L’éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise financeira), Raisons d’Agir, Paris, 2008.