Financiamento da educação no mundo deve se distanciar de neocolonialismo
Como dois terços dos países de baixa renda cortaram seus gastos com educação este ano, qualquer compromisso para defender e expandir os gastos com educação é bem-vindo. Mas existem problemas fundamentais que ainda requerem atenção urgente.
A maioria das manchetes da Global Education Summit (Cúpula Global de Educação, em tradução livre) destacou os US$ 4 bilhões arrecadados por doadores para a Global Partnership of Education (Parceria Global pela Educação). Algumas matérias focaram a escolha de palavras do primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, comparando a educação de meninas a um canivete suíço – uma metáfora incomum, tendo em conta que a violência contra meninas é um fator importante que as impede de acessar e permanecer nas escolas.
Mas, em geral, a cobertura pouco captou os pontos mais importantes – 10 presidentes africanos comparecendo pessoalmente, 19 chefes de Estado assinando uma declaração ousada que abordou questões estratégicas mais amplas que afetam o financiamento da educação, e governos de países em desenvolvimento se comprometendo a aumentar seus próprios gastos em educação em US$ 196 bilhões.
No mês que vem, o ex-presidente da Tanzânia, Jakaya Kikwete, assume a função de presidente do conselho da GPE, substituindo a ex-PM australiana, Julia Gillard. Tudo isso aponta para o reconhecimento de que a questão crucial é o que os países em desenvolvimento fazem com seu próprio financiamento interno, e que a comunidade internacional precisa fazer mais do que fornecer um pote de auxílio padronizado – por mais bem-vindo que seja.
Antes da Cúpula, o Presidente Uhuru Kenyatta do Quênia desenvolveu um Chamado para Ação sobre o Financiamento da Educação que 18 outros presidentes já assinaram, incluindo a seguinte declaração chave: “Reconhecemos que o financiamento interno é e continuará a ser a forma mais significativa e sustentável de financiamento para a educação.”
Afirmar isso em um espaço internacional dominado por um foco na ajuda de doadores é um ponto de inflexão significativo. Além disso, a declaração pede claramente à comunidade internacional que olhe além do auxílio para outras ações estratégicas que podem impactar o financiamento da educação. Exorta o conselho executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) a tomar medidas sobre os Direitos Especiais de Saque (DES) e “estabelecer uma realocação significativa de DES para beneficiar os países com necessidade de liquidez”. Além disso, há um apelo “para uma ação mais ousada e mais ampla sobre o alívio e o tratamento da dívida, além da Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida do G-20″.
A peça central dos compromissos na declaração de Kenyatta é que “os países parceiros da PGE, que anteriormente gastaram menos de 20% de seus gastos públicos anuais totais em educação, se esforçarão para aumentar progressivamente seus gastos domésticos com educação em direção à referência global de 20% nos próximos cinco anos”.
Com base nesses números, a GPE estima que os países em desenvolvimento pretendem aumentar os gastos em US$ 196 bilhões (um valor que aumentará à medida que novos compromissos forem assumidos).
Como dois terços dos países de baixa renda cortaram seus gastos com educação este ano, qualquer compromisso para defender e expandir os gastos com educação é bem-vindo. Mas existem dois problemas fundamentais que ainda requerem atenção urgente.
Em primeiro lugar, devido à Covid-19, o PIB e as receitas fiscais de muitos países estão caindo, então os compromissos de fazer aumentos modestos na parcela dos gastos com educação não serão suficientes. Também é necessária ação sobre impostos. A ActionAid mostrou que a maioria dos países poderia dobrar seus orçamentos de educação e saúde aumentando suas taxas de impostos em relação ao PIB no médio prazo, de acordo com as projeções do FMI, por meio de reformas tributárias progressivas.
Mas também há uma função da ação internacional em tornar as regras tributárias globais mais justas. Por exemplo, a iniciativa recentemente aprovada do G7 para estabelecer uma alíquota mínima global de imposto sobre as sociedades, em seu formato atual, significa que as receitas vão se acumular nos países ricos, enquanto os países de baixa renda continuarão a perder.

O segundo problema fundamental é que essas medidas não influenciam o impacto da austeridade: 85% dos países – 6,6 bilhões de pessoas – enfrentarão austeridade no próximo ano devido às políticas do FMI, incluindo uma política para congelar ou reduzir a folha salarial do setor público. O maior grupo afetado por esses cortes são os professores.
Considerando que os salários dos professores costumam ultrapassar 90% do orçamento da educação, é difícil aumentar os gastos se você tiver que segurar os salários do setor público. Além disso, as restrições da folha salarial afetam desproporcionalmente as professoras – que tendem a receber os salários mais baixos, com os contratos menos seguros -, minando assim uma área-chave para o progresso na educação de meninas.
Agora é a hora de a comunidade internacional agir sobre essas questões de financiamento estratégico, seguindo o exemplo do presidente Kenyatta e de outros que estão começando a definir o caminho a seguir. Há muito o que a GPE e outros podem fazer para tratar de questões tributárias e de austeridade – tanto nacional quanto internacionalmente.
Com o novo presidente da GPE assumindo seu cargo em setembro, nunca houve uma oportunidade melhor para afastar-nos do domínio da narrativa da ajuda neocolonial e garantir uma ação genuinamente transformadora para financiar a educação pública em todo o mundo.
Artigo originalmente publicado no site da ActionAid Internacional e traduzido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Julia Sánchez é secretária-geral da ActionAid Internacional.
David Archer é líder de participação e serviços públicos da ActionAid