Fontes passionais da violência
Diante desse quadro trágico, o que fazer? Atribuir ao Estado o monopólio da violência que, sob o pretexto de pacificar a sociedade por meio do estado de direito, dispõe abertamente da vida dos seres humanos? Certamente que nãoAdauto Novaes
Lemos em Alain, filósofo francês, que escreveu boa parte de sua admirável obra no front da Primeira Guerra Mundial, que os homens são movidos unicamente pelas paixões que os transformam em inimigos uns dos outros. Para ele, a violência é “um gênero de força apaixonada que busca quebrar a resistência pelo terror”. Em geral, e com certa razão, as análises sobre a violência tendem a atribuir sua origem a questões econômicas e políticas. É inegável que as dimensões históricas, sociais, culturais e institucionais ajudam a explicar as ações humanas, mas não são suficientes. As abordagens da violência em termos de ódio, vingança, fanatismo e ressentimento perderam pertinência na tradição filosófica e é preciso voltar a elas. Para muitos teóricos, por exemplo, os genocídios são obras de sistemas totalitários que agem sem paixões criminosas e sem pensamento. A violência seria apenas fruto da racionalidade de sistemas totalitários. O mesmo argumento é aplicado hoje com relação aos “Estados considerados democráticos” que se utilizam da mais refinada tecnologia para matar à distância por meio dos drones. Ora, é ainda Alain que nos adverte: nada pode fazer que o homem não tenha paixões porque nada pode impedir que o homem seja uma parte da natureza.
Como esquecer as paixões se sabemos que elas dominam grande parte de nossas ações? Por exemplo, mesmo quando evitamos o mal, agimos, na maioria das vezes, não movidos pela razão, mas conduzidos por medo da punição. E o medo é uma paixão que traz com ela outras paixões. Há ainda aqueles que tentam transformar o ódio em virtude cívica, como aconteceu recentemente no Rio de Janeiro quando moradores da classe média aplaudiram a tortura de um jovem negro amarrado a um poste “em nome do bem comum”: aqueles que odeiam os vagabundos e os ladrões –“inimigos da sociedade” – podem se declarar bons cidadãos ao dizer que, em certas circunstâncias, seu ódio é “racional”. O ódio é sempre ódio e sempre um mal, mas hoje vício e virtude se confundem. Assim, o ensaio de Paul Valéry sobre o fim da ideia de virtude, escrito depois do terror da Primeira Guerra Mundial, impressiona pela atualidade: “Nosso século teria trazido, entre tantas outras novidades excessivas, às vezes desumanas, uma modificação tão grande e tão detestável naquilo que chamaria de sensibilidade ética dos indivíduos, na ideia que eles fazem de si e de seus semelhantes, no valor que eles dão à conduta e às consequências dos atos, que se deve admitir que a era do bem e do mal é uma era superada”.
Diante de números que nos assustam – cerca de 200 milhões de mortos em guerras e massacres em um século (só no Brasil são 50 mil a cada ano) –, o tema das violências passionais pede reflexão: durante dois meses, pensadores franceses e brasileiros vão pôr em debate as fontes passionais da violência em três perspectivas: as paixões violentas, as novas formas de violência a partir do grande salto tecnocientífico e a violência do Estado. (Ver programa completo em www.mutacoes.com.br.)
As atuais guerras no mundo são o signo de uma nova era – de uma mutação. Pode-se chamar essa nova modalidade de violência de “guerras civis mundiais”, como tão bem definiu Hans Magnus Enzensberger em um ensaio publicado na França com o título de Visões sobre a guerra civil. Passadas as duas Grandes Guerras e com o fim da Guerra Fria, vive-se a era das guerras civis, que, neste momento, são em torno de trinta a quarenta no mundo. Enzensberger descreve assim a nova forma da violência: “Vemos o mapa do mundo. Localizamos as guerras em regiões distantes, de preferência no Terceiro Mundo. Falamos de subdesenvolvimento, atraso histórico, fundamentalismo. Temos a impressão de que o combate incompreensível se dá longe de nós. Mas nós nos iludimos. Na realidade, há muito a guerra civil entrou nas grandes metrópoles. Suas metástases fazem parte da vida cotidiana das grandes cidades, não apenas em Lima e Johannesburgo, Bombaim e Rio de Janeiro, mas também em Paris e Berlim, Detroit e Birmingham, Milão e Hamburgo. Ela não é promovida apenas por terroristas e serviços secretos, mafiosos e skinheads, gangues de traficantes e esquadrões da morte, neonazistas e xerifes negros, mas também por cidadãos que do dia para a noite se transformam em hooligans, em incendiários, em loucos furiosos cometendo mortes em série […]. E, se acreditamos que a paz reina sob o pretexto de que ainda podemos comprar nossos croissants sem sermos abatidos por atiradores emboscados, estamos iludidos […]. Nossas guerras civis não ganharam até agora as massas, elas são moleculares […]. A violência está inteiramente livre das justificativas ideológicas”.
Essa é uma descrição mais ou menos completa da explosão dos males, não a despeito da civilização, mas graças a ela, com sua indústria da guerra e a ideologia do “egoísmo organizado”: não é por acaso que as maiores violências habitam (ou partem dos) países civilizados que formam os corpos para a violência e os espíritos para a ideia da violência, como escreve Alain no livro Marte ou a guerra julgada.
O jogo feroz ligado ao que existe de mais atual na utilização da técnica pode ser observado naquilo que estrategistas norte-americanos chamam de “caça ao homem”. Lemos em um livro recente – Teoria do drone,de Grégoire Chamayou – que, em 2001, Donald Rumsfeld convencera-se de que “as técnicas utilizadas pelos israelenses contra os palestinos poderiam simplesmente ser empregadas em grande escala”. Ele pensava, afirma Chamayou, em particular nos programas de “assassinatos de tiro ao alvo”, cuja existência Israel acabava de reconhecer: “Os territórios ocupados tornaram-se”, como explica Eyal Weizman, “o maior laboratório do mundo para os ‘thanatotactiques’ aeroportáteis”. A guerra deixa de ser “direito de conquista” para tornar-se “direito de perseguição” e abate. Sem ironia, um dos membros do US State Department’s Democracy and Human Rights Bureau, Jef Hawkins, escreveu: “Há uma guerra em curso, e os drones são a maneira mais refinada, mais precisa e mais humana de conduzi-la”.
Diante desse quadro trágico, o que fazer? Atribuir ao Estado o monopólio da violência que, sob o pretexto de pacificar a sociedade por meio do estado de direito, dispõe abertamente da vida dos seres humanos? Certamente que não. Responder à violência com a violência pretensamente legítima do Estado significa esquecer os fundamentos da política. Contra a atual destruição do homem e do mundo pela violência, uma das possíveis saídas está naquilo que Étienne Balibar define como organização antiviolência em seu livro As fronteiras da democracia: “A partir do momento em que tendem a se apagar as distinções entre segurança e insegurança, violência pública e privada, militar e econômica, e mesmo entre violências humanas e catástrofes ditas ‘naturais’, o problema não pode mais ser nem regular simplesmente a violência (pelo direito), nem jogá-la para o exterior (pelo Estado), nem eliminar suas causas (pela revolução): convém agora organizar uma ‘antiviolência’, isto é, instalar no centro da política a ‘luta’ coletiva contra as formas da violência ao mesmo tempo múltiplas e interdependentes”.
Adauto Novaes, ex-jornalista e professor, foi, durante vinte anos, diretor do Centro de Estudos e Pesquisas da Fundação Nacional de Artes. Atualmente é diretor da Artepensamento.