Fortalecer a institucionalidade e a normativa é necessário para garantir que as políticas de direitos humanos sejam mantidas
Andressa Caldas destaca o papel estratégico do IPPDH, sediado na ex-Esma, na articulação de políticas públicas de direitos humanos no Mercosul
O Mercosul tem visão dos direitos humanos. O Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH), criado em 2009 e com sede em Buenos Aires, promove a capacitação de funcionários públicos, a produção de pesquisa aplicada, a participação da sociedade civil e a articulação entre as instituições estatais para gerar políticas públicas integradas. Responde às autoridades dos Estados partes do MERCOSUL e às distintas reuniões ministeriais (de direitos humanos, afrodescendentes, povos indígenas, mulheres), onde são definidas ações estatais e as solicitações de assessoria técnica do IPPDH, como cursos de formação, estudo, campanhas e consultas públicas. “No IPPDH, fortalecemos o processo de trabalho sub-regional e colaborativo em políticas públicas, o que se complementa com os mecanismos de controle e supervisão, que existe no nível das Américas, com a Comissão e a Corte Interamericana”, explica a sua atual diretora executiva, Andressa Caldas, advogada, ex-coordenadora jurídica e diretora da Justiça Global no Brasil e defensora de direitos humanos.

Da sala da direção do IPPDH, é possível ver as árvores que cercam o extenso complexo da Ex-Esma, no bairro portenho de Núñez, onde funcionou um centro de detenção e tortura durante a ditadura argentina. Hoje, esse espaço foi transformado em um local de direitos humanos, abrigando o instituto como um símbolo de memória histórica.
Para Andressa Caldas, o atual cenário de antagonismos políticos na região não é novidade. Mas ela se preocupa com o fato de que a América Latina continue sendo a região mais desigual — e a que mais mata e persegue defensores de direitos humanos e ambientais no mundo.
A questão de como gerir políticas públicas em direitos humanos em um contexto de discursos anti-direitos marca esse diálogo com o Le Monde Diplomatique Brasil.
O dia 24 de março foi uma data marcante para a Argentina ao completar 49 anos do golpe cívico militar. Aconteceu uma manifestação massiva em Buenos Aires num contexto político do governo do Milei que reabre um debate sobre o regime militar e a sua veracidade. Como foi a sua experiência dessa jornada como defensora de direitos humanos brasileira?
Eu sempre fico muito emocionada e inspirada ao participar da Marcha do 24M. Estou na Argentina há quase 11 anos e todas as vezes que estou em Buenos Aires, eu participo. É uma marcha diferente de outras manifestações aqui, porque é uma marcha convocada pelos organismos de direitos humanos, por movimentos, sindicatos, agrupações, mas principalmente por autoconvocações. Tem famílias que decidem ir com seus filhos num dia de feriado nacional. É uma demonstração de força da cidadania, de um orgulho do povo argentino em dizer que tem princípios consolidados da defesa, da memória, da verdade e da justiça. Como brasileira, é impossível não comparar o quanto ainda falta no nosso país a implementação efetiva dessas políticas [de memória, de verdade, justiça e reparação]. Isso conecta com os nossos processos não concluídos de uma consolidação democrática e das recentes irrupções autoritárias que vivemos.
Como é que conecta esta experiência com o IPPDH e o papel que tem com relação à memória e justiça?
A localização física do IPPDH na Ex-Esma é muito emblemática. Além de ter aqui o Museo Sitio de la Memoria Esma, entre outros, tem visitas escolares que acontecem e geram uma repercussão muito grande na forma como se cria um respeito à história. O espaço onde está sediado o IPPDH foi uma definição do Mercosul e do Estado da Argentina pela configuração e o simbolismo que tem a ex-Esma. Foi um mandato simbólico dos países do Mercosul naquele momento chamando de Anticóndor, o processo de criação do Instituto e do que denominamos de “Mercosul Direitos Humanos”, como forma de marcar uma postura de coordenação positiva, de promoção dos direitos humanos, em oposição e como resposta diante dos crimes cometidos no marco repressivo da Operação Condor. Tudo isso tem um significado político para o IPPDH, que também trabalha com a temática de políticas de memória, de verdade e de justiça, com uma gama ampla de outros temas, sendo a única instituição de direitos humanos do bloco. O IPPDH não foi concebido para monitorar ou responsabilizar violações de direitos humanos, como faz o sistema interamericano, mas sim para atuar com os Estados — em articulação com a sociedade civil — no desenho e implementação de diretrizes e políticas públicas regionais de direitos humanos.
Como acontece a dinâmica de trabalho e de diálogo entre o IPPDH e os governos da região do Mercosul, em especial nessa área da memória e justiça?
Nos últimos dois anos e meio, o Brasil tem utilizado lineamentos do Mercosul como um grande subsídio das suas ações nacionais. Fizemos, por exemplo, um trabalho de capacitação para a equipe do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, para a Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Verdade e Justiça sobre a aplicação dos princípios de preservação de sítios da memória. Nas reuniões do Mercosul acontece um diálogo dos funcionários de governo que nos demandam assessoria técnica como, por exemplo, a criação de um sistema de informação regional sobre arquivos e documentos relacionados aos períodos ditatoriais recentes.
O IPPDH então elaborou o Acervo Documental Cóndor, um Guia de Arquivos, atualmente em atualização, que reúne documentos de órgãos de defesa, segurança, organismos e entidades públicas envolvidos em investigações sobre os crimes das ditaduras na região. Também em outros temas, como migrações, crianças e adolescentes, pessoas idosas, entre outros, o IPPDH atua como uma ponte para o intercâmbio de experiências nacionais e para a coordenação de políticas públicas regionais. Suas ações são definidas por consenso entre os estados membros em reuniões do Mercosul, com autoridades de diferentes áreas.
A atual presidência pro tempore do Mercosul é da Argentina, em um contexto de batalha discursiva de Milei, de descaso com os direitos humanos. Como tem sido o trabalho do IPPDH neste primeiro ano de mandato do governo?
O IPPDH está sediado na Argentina, estamos muito atentos ao que está acontecendo. Mas estamos numa situação, digamos assim, distinta do que são as instituições nacionais, que tem sofrido um impacto muito forte. Somos um organismo regional que tem um acordo de sede aprovado pelo Mercosul e nos parlamentos dos países, que garante proteção e imunidade diplomática. Apostamos em que a via da normativa, jurídica e do respeito a esses acordos vai ser mantida. Temos trabalhado com muita transparência e com muito diálogo e sempre apresentando sugestões de soluções para dar mais efetividade ao Mercosul e para fortalecer o IPPDH. Mantive reuniões com as autoridades argentinas. Este primeiro semestre de 2025, a Argentina preside o Mercosul e como fazemos com todos os Estados, colocamos o IPPDH a disposição para assessorar tecnicamente as reuniões do Mercosul, relacionadas com temas de direitos humanos.
Houve algumas propostas apresentadas no ano passado pela Argentina, que sugeriam a mudança da sede para o Uruguai ou para o Paraguai. Estas propostas foram rejeitadas, principalmente pelo Brasil, com o apoio explícito do presidente Lula, que em todas as cúpulas presidenciais do Mercosul tem se manifestado publicamente no sentido de fortalecer o Instituto, e não permitir seu esvaziamento. Uma proposta parecida já havia sido feita pela Argentina em 2017 pelo governo da época. E não prosperou. Qualquer mudança depende de consenso entre os estados membros.
Qual foi o impacto na redução de orçamento que o IPPDH teve a partir da última reunião em Montevideo, no final de 2024?
Na última reunião do Mercosul, foi aprovada uma redução drástica no orçamento para os direitos humanos, tornando-o o mais baixo da história do Instituto. O orçamento de 2025 será composto apenas pela contribuição do Brasil e pelo uso de excedentes de anos anteriores, autorizados pelos estados membros do bloco. O percentual reduzido foi de 58%, afetando a contratação de consultores, campanhas e pesquisas. O novo governo do Uruguai está buscando reverter a decisão tomada nos últimos dias da administração anterior (do ex-presidente Lacalle Pou) para realizar uma contribuição voluntária ao Instituto.
Isso teve e está tendo um impacto direto nas atividades fins do Instituto neste ano. Em 2024, completamos 15 anos e, apesar dos desafios do contexto, dobramos a aposta no sentido de fazer mais, abrindo novas áreas de atuação, também por indicação dos Estados, como o tema da discriminação, racismo e xenofobia no âmbito esportivo, estamos trabalhando em um diagnóstico regional e recomendações sobre sistemas de cuidado. Realizamos um curso de capacitação sobre políticas públicas e novas tecnologias (inteligências artificiais, em particular). Iniciamos alguns projetos de cultura em direitos humanos, como mostras fotográficas e de cinema. Temos um projeto específico com financiamento próprio do Mercosul, o FOCEM (Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul), sobre políticas públicas para afrontar contextos críticos de emergência (como foi o caso da pandemia, e agora dos incêndios, inundações) o que garante uma parte dos nossos trabalhos e atividades, mas há uma situação crítica relacionada ao orçamento institucional, que afeta nossos trabalhos, nossa estrutura administrativa.

Quais são as estratégias para compensar essa redução e essa falta de investimento num contexto adverso?
Temos uma gama de alianças com instituições acadêmicas, organismos internacionais e defensorias públicas. Em relação as universidades da região, isso permite que a gente compartilhe a realização de cursos de capacitação. Mas o importante é que temos uma história do Mercosul de Direitos Humanos. Estou trabalhando incansavelmente para apresentar soluções alternativas para os Estados, buscando novas opções de financiamento. Apesar do contexto adverso, que já tivemos em outros momentos da história do Instituto, é importante preservar e garantir neste momento os acordos já existentes dentro da organização sobre a igualdade de gênero, o combate à violência política, a proteção das pessoas LGBTI, o combate ao racismo, etc. Várias decisões, recomendações e diretrizes regionais, aprovadas por consenso e consolidadas pelo Mercosul, que para serem derrubadas exigiriam igualmente a aprovação de todos os Estados partes. E estes temas continuam sendo muito caros para vários países.
Hoje, existem posições muito antagônicas entre os governos da região. Na Argentina, completa-se um ano do mandato de Milei; no Uruguai, Yamandú Orsi, do Frente Amplio; no Brasil, Lula; e no Paraguai, o conservador Santiago Peña, e a Bolívia está ingressando como Estado partes. Quais são os desafios para a coordenação da área de direitos humanos?
O desafio atual do Mercosul na área de direitos humanos é justamente fortalecer a institucionalidade e a normativa para garantir que políticas de direitos humanos sejam mantidas mesmo diante de mudanças políticas adversas. No atual contexto é positivo que as diferenças entre as posições dos países estejam mais visíveis, mesmo que sejam antagônicas. Do ponto de vista econômico, essas divergências são históricas e independem das mudanças de governo. A integração regional é desafiada por forças políticas em constante mudança, incluindo o crescimento da extrema direita. Para os direitos humanos, é essencial que sua efetivação vá além do discurso e se traduza em políticas públicas concretas, com respaldo em leis, em orçamento, em planos de execução e mecanismos de monitoramento, como ocorre no Brasil e em outros países. Isso fortalece a proteção dos direitos humanos através de políticas de Estado e não de governos de turno, embora a continuidade dependa de administrações públicas sólidas e de um sistema judiciário atuante.
Por outro lado, tem que mencionar que a base e o vetor das conquistas democráticas na região nos últimos 40 anos foi a força, a diversidade e a participação incansável dos movimentos sociais. Eles foram e são o motor das políticas de direitos humanos e públicas mais avançadas, como o reconhecimento dos direitos das pessoas idosas por meio de uma convenção interamericana, das políticas de cuidado, entre outros. Também como marca do Mercosul, se destacam políticas migratórias (como o acordo de residência) que veem a mobilidade como um direito, apesar dos retrocessos recentes. Tudo isso reflete o papel essencial da mobilização social na construção dessas conquistas. O papel desempenhado pela sociedade civil nas reuniões de direitos humanos do Mercosul é muito estratégico para formular essas posições.
Nos últimos anos, quais foram os principais avanços em termos de direitos humanos desde o IPPDH?
Além dos que mencionei antes relacionadas a políticas de memória, onde a Argentina sempre foi uma referencia para o mundo, também destacaria que no Mercosul temos diretrizes para atenção e identificação de crianças e adolescentes migrantes em áreas de fronteiras. O Brasil, por exemplo, propôs há 10 anos a criação de uma reunião especializada sobre afrodescendentes e outra sobre povos indígenas. O Brasil também tem dado uma contribuição significativa ao compartilhar suas experiências de participação social e de inclusão da perspectiva étnico-racial nas políticas públicas em geral.
O Mercosul, de certa forma, regionalizou a experiencia pioneira do Uruguai ao construir uma política e um sistema de cuidado e uma legislação que reconheça o cuidado como um direito humano. No caso do Paraguai, por exemplo, há a contribuição de vanguarda ao construir um sistema de monitoramento das decisões internacionais (o SIMORE) e a experiencia recente de construção de Plano Nacional de Povos Indígenas, iniciativa que tem sido compartilhada com outros estados na Reunião de Autoridades dos Povos Indígenas do Mercosul (RAPIM). Os estados têm demonstrado habilidade e sentido de oportunidade para incorporar novas temáticas, como o combate aos discursos de ódio, e solicitou ao IPPDH a elaboração de um compêndio regional de iniciativas governamentais nesse sentido. E, por último, o tema das inteligências artificiais, em que os Estados recentemente aprovaram uma Declaração, muito nutrida e substantiva, sobre princípios de direitos humanos aplicáveis as inteligências artificiais.

Quais são os desafios regionais mais urgentes no bloco do Mercosul?
Seguimos sendo a região mais desigual do planeta, a que mais mata e persegue defensores de direitos humanos e ambientais. Todos os outros problemas, os novos, como as mudanças climáticas, atacam principalmente as pessoas mais pobres. E, nessa linha da pobreza, estão as mulheres, que já enfrentam uma desigualdade de gênero vinculada à desigualdade de renda; os afrodescendentes, os migrantes, as pessoas com deficiência, a população LGBT, as crianças, os adolescentes e as pessoas idosas. Então, tudo isso, desigualdade e violência, transversalizado é a nossa realidade, o nosso pano de fundo.
O segundo ponto tem a ver com a conexão entre direitos humanos e democracia. Toda a agenda de memória, verdade e justiça não desapareceu, segue atual e ainda tem implicações para o presente. Hoje, no Brasil, há um julgamento muito importante envolvendo Bolsonaro, que está fortemente conectado à participação de integrantes das forças armadas em um golpe de Estado. E hoje isso se agrava com outros fenômenos: a disseminação de falsas informações, discursos de ódio e como isso repercute em violência política. Os principais alvos da violência política são defensores de direitos humanos, ambientalistas, jornalistas, mulheres e afrodescendentes, migrantes, enquanto os perpetradores estão se diversificando com novos atores.
Nesse contexto, vamos trabalhar para construir um compêndio sobre discursos de ódio, a necessidade de regulamentação e regulação de conteúdos, e a necessidade de responsabilizar judicial e penalmente quando os disseminadores de informações falsas e discursos de ódio forem autoridades ou pessoas investidas de função pública. Esse é o consenso civilizatório que precisamos alcançar.
Com relação ao Brasil e ao cenário de impulsionamento das direitas – muito ativas nas redes sociais – em figuras como Bolsonaro e Pablo Marçal, com narrativas anti-direitos muito fortes, quais são as possíveis formas de enfrentar essas narrativas?
Eu cada vez me convenço de que não vamos conseguir enfrentar isso apenas com sanção, penalização e responsabilização judicial dos responsáveis, mas com estratégias de educação, cultura e comunicação.
Os grupos e governos de direita sempre existiram, essa não é uma questão problemática. O problema são grupos assumidamente antidemocráticos e antidireitos. Para esses grupos, deve haver uma resposta firme e coordenada da cidadania, das instâncias judiciais e da legislação, porque isso sai fora do esquema civilizatório que demoramos anos, no pós-guerra, para construir. Eles não podem agir como se fossem jogadores legítimos, quando defendem, por exemplo, a eliminação de adversários políticos pela via da eliminação física.
Eu escutei recentemente uma fala aqui na Argentina, dizendo que foi feito um acordo na construção democrática, de que tudo valeria no jogo político, menos voltar ao que foi tão trágico, como as execuções sumárias perpetradas na ditadura. E isso foi colocado em xeque com a tentativa de assassinato da ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner. No Brasil, a violência política infelizmente é uma constante, e isso precisa ser alterado. Houve o assassinato de Marielle Franco, e antes de Manoel Mattos, advogado, defensor de direitos humanos e vereador do PT em Pernambuco, de Chico Mendes, Margarida Maria Alves, Dorothy Stang e tantos outros, que indicam que é perigoso e pode ser letal defender direitos. O Brasil ainda que tardiamente está colocando isso na agenda pública. O julgamento, em breve, dos autores intelectuais do assassinato da Marielle pode ser um divisor de águas, neste sentido.
E neste novo contexto de violências disseminadas em redes, através de plataformas digitais, você precisa também de uma forte estratégia de transformação educativa, cultural e artística. Não é à toa que os primeiros alvos de ataques desses movimentos extremistas, anti-democráticos e anti-direitos são os professores, as escolas, a universidade pública, os artistas, a cultura, como vimos no Brasil, recentemente e estamos vendo se repetir em outros países. Isso deveria nos alertar de que é justamente por aí que devemos buscar construir, e isso deve ser feito junto com as políticas públicas, com educação e cultura em direitos humanos.
Soledad Dominguez é jornalista com foco em direitos humanos, com especial atenção às mulheres negras, lideranças antirracistas, comunidades indígenas e quilombolas na América do Sul, especialmente no Brasil. Colabora com veículos internacionais e foi fellow da International Women’s Media Foundation (2023–2024) e do Instituto Serrapilheira (2022).