Francisco e a fé
Agora é o tempo de refletir sobre as inovadoras ações do falecido Santo Padre, que ousaram (no limite do possível) cogitar uma Igreja mais inclusiva e atual
O falecimento do Papa Francisco causou uma verdadeira comoção mundial. Seu ato final, a aparição surpresa na Praça de São Pedro, foi mais um dos gestos da eloquente generosidade do Santo Padre. Pareceu simbólico que o Pontífice tenha esperado a finalização da celebração da Páscoa para dar adeus a este plano. Como se tivesse escolhido aguardar até o último momento possível para preservar o protagonismo da ressurreição de Cristo, de modo a fazer sua partida apenas depois, feito um servo fiel.
A perda dessa figura abateu com tristeza os cerca de 2,4 bilhões de cristãos no mundo, mas também abalou os seguidores de outros credos, que manifestaram seu pesar pelo óbito de um homem que deixou sua marca na história global. Não à toa, a sensibilização foi geral. Imagens de devotos enlutados correram as notícias e já há muita especulação sobre a seleção de um novo Papa, tema que ganhou ainda mais força midiática após o filme Conclave.
Em meio a este cenário, chama atenção a manutenção do poder da fé, essa convicção inabalável, de base dogmática, que desafia as fronteiras da razão. Não importa quanto a humanidade desenvolva as ciências e as tecnologias de matriz racional, a crença religiosa ainda reverbera nas mentes e corações dos habitantes terrestres, trazendo eixos de moral, esperança e comunidade.
Tão intrincada com a formação do ser e do seu conhecimento, a fé é um processo gradual e mutável, que dispõe de contornos absolutamente individuais, mas com estruturas universais e ritos coletivizados. Nesse sentido, não é trivial refletir sobre a origem deste fenômeno que é comum às mais diversas doutrinas e cultos. Sem o propósito de esgotar o tema e adotando um viés expositivo, analisaremos a contribuição de quatro autores para essa temática.
Em seus estudos sobre o desenvolvimento cognitivo, Jean Piaget adota vertente construtivista e sugere a existência de quatro fases principais do processo de aprendizagem na infância: sensório-motor, pré-operacional, operacional concreto e operacional formal1. Nestas, há um progressivo acúmulo de experiências sensitivas, linguagens e símbolos, interpretações lógicas e de entendimentos sobre a abstração, rumando para a autonomia de ideias. A interação entre homem e meio também é fundante, de modo que atos de adaptação, assimilação e acomodação estão sempre presentes. Para este autor, a criança precisa de liberdade para alcançar o conhecimento de forma ativa e crítica.
Indo além, as conclusões de Lawrence Kohlberg também merecem melhor exame. Seu enfoque no desenvolvimento da moral no âmbito de dilemas hipotéticos entre o “certo” e o “errado” resultou na percepção de que existem seis estágios de desenvolvimento moral englobados por três diferentes níveis2. O nível da “Moralidade Pré-Convencional” é composto por estágios que trabalham as noções de punição e obediência e de individualismo instrumental, com uma moral fundada em interesses próprios. Já o nível “Convencional” se subdivide em estágios que tratam das relações interpessoais e da ordem social, sendo a moral baseada em regras determinadas e expectativas de outrem. Por fim, o terceiro nível, chamado de “Pós-Convencional”, possui estágios que se debruçam sobre as ideias de contrato social e de princípios éticos universais, quando a moral se pauta em conceitos axiológicos entre a igualdade e a reciprocidade.
O desenvolvimento psicossocial do homem também foi alvo das análises de Erik Erikson, que sugeriu a ocorrência de oito graus evolutivos e contínuos, cada um deles produto de uma crise a ser solvida, advinda do choque entre fatores biológicos, sociais e culturais3. Situados entre a infância e a velhice, estão as fases de embate entre: i) confiança x desconfiança; ii) autonomia x vergonha e dúvida; iii) iniciativa x culpa; iv) competência x inferioridade; v) identidade x confusão de papéis; vi) intimidade x isolamento; vii) generatividade x estagnação; e viii) integridade x desespero.
James W. Fowler, por sua vez, propõe um dos ápices da compreensão teórica sobre a fé. Caracterizada como um fenômeno social e interativo, a fé também se mostra crucial para a formação identitária e para a construção de sentidos em mundo de estruturas culturais e simbólicas. Em sua obra, o autor defende a existência de sete níveis de desenvolvimento da fé, percebidos no decorrer da vida de uma pessoa4. São eles5: Pré-estágio: Lactância e fé indiferenciada (baseada na confiança emocional); Estágio 1: Fé intuitivo-projetiva (foco em noções do divino e do proibido num viés lúdico-imaginativo); Estágio 2: Fé mítico-literal (apropriação mais lógica e autônoma, dotada de senso de justiça e pertença); Estágio 3: Fé sintético-convencional (visão de uma fé institucional e dogmática como base identitária); Estágio 4: Fé individuativo-reflexiva (assunção de compromissos ativos e responsabilidade com a crença); Estágio 5: Fé conjuntiva (coexistência com contradições e mistérios antes suprimidos); e Estágio 6: Fé universalizante (engajamento e comprometimento com ações comunitárias, visando à transformação da realidade para todo e qualquer ser humano). Como se vê, há polos emocionais e racionais neste processo evolutivo da crença.
Cumpre notar que a fé, aliás, não pode prescindir dos ritos. Enquanto técnica de manutenção da ordem social e de suas estruturas semânticas, os ritos são mecanismos de performance regular, formal e repetitiva, que manifestam valores, reafirmam sensibilidades e propõem a continuidade dos grupos e de seus signos6. A encenação reitera consensos e atualiza paradigmas que são fulcrais à permanência de um culto religioso7. Exatamente por isso é que as cerimônias fúnebres relacionadas ao velório e ao enterro do já saudoso Papa Francisco serão seguidas à risca, assim como os procedimentos do conclave papal a ser realizado.

Enquanto se espera a fumaça branca emergir da chaminé da Capela Sistina – outro rito que nutre o cristianismo -, parece aconselhável tomar um tempo para refletir sobre as inovadoras ações do falecido Santo Padre, que ousaram (no limite do possível) cogitar uma Igreja mais inclusiva e atual. Tem-se uma oportunidade única de renovar os votos do credo sagrado, para dar continuidade ao legado deste que foi o primeiro Pontífice latino-americano. Agora, mais do que nunca, o potencial da fé está manifesto e deve ser tratado com a responsabilidade de vida.
Nina Nobrega Martins Rodrigues é Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Advogada e Servidora Pública.