Fundos sociais da mineração e sociodeterminação do território
A construção sociopolítica de uma visão alternativa ao produtivismo mineral em favor de uma abordagem de justiça socioambiental vem se afirmando na agenda pública, promovida, insistentemente, por ONGs, redes e movimentos sociais de atingidosCarlos Bittencourt|Rodrigo Santos
Um novo marco regulatório da indústria extrativa mineral (IEM) deve ser interpretado como uma reconfiguração das relações entre o Estado brasileiro e o capital mineral − relações concebidas, da perspectiva estatal, como um jogo de soma positiva. Por sua vez, a ampliação da captura (Henderson et al., 2011)de rendas minerais, um de seus elementos centrais, vem merecendo tratamento privilegiado, com a elaboração de um projeto de lei para a alteração dos royalties do setor.1
Em 2009, a IEM respondeu por cerca de 20% das exportações (US$ 30,83 bilhões) e por mais de três quintos do saldo da balança comercial (US$ 25,29 bilhões). No entanto, a despeito de sua relevância econômica, o aprofundamento do debate público sobre o tema vem encontrando importantes restrições na coalizão autoritária e produtivista estabelecida entre a tecnocracia estatal, representada pelo Ministério de Minas e Energia (MME) e pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), e o capital mineral, representado pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram).
Entretanto, a construção sociopolítica de uma visão alternativa ao produtivismo mineral em favor de uma abordagem de justiça socioambiental vem se afirmando na agenda pública, promovida, insistentemente, por ONGs, tais como o Ibase, a Fase e o Inesc, e redes e movimentos sociais de atingidos, como a Justiça nos Trilhos (JnT), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Assim, uma das propostas defendidas pelo Ibase, o Inesc e a JnT aponta para a incorporação de um mecanismo adicional voltado para a captura de rendas minerais, trazendo à tona os grupos sociais afetados – sejam eles comunidades urbanas ou rurais, populações indígenas ou tradicionais etc. – pelas redes de produção da IEM. A aposta é, sobretudo, em sua constituição como agentes sociopolíticos fundamentais nesse campo.
O documento “Fundamentos para a criação de um fundo social e comunitário da mineração no Brasil” (Santos, 2012b) representou um primeiro passo dessa orientação, mas sua direção vem sendo definida a partir de um diálogo autocrítico com os referidos grupos e seus representantes, em estreita relação à luta pelos direitos de consentimento e veto à IEM.
Dessa forma, fundos sociais e comunitários minerais constituem mecanismos de captura (Henderson et al., 2011) e redistribuição (Santos, 2012a) de parcela das rendas associadas a recursos naturais localizados. Em sentido estrito, a captura diz respeito a uma transferência de parte dos direitos sobre tais recursos para os grupos sociais afetados, legitimada pelo reconhecimento de sua essência comum e, portanto, do ressarcimento por seu acesso e uso de forma privada.
Por sua vez, o Estado brasileiro vem atuando, na prática, como instituição reguladora da conversão privada dos recursos naturais, a partir das instâncias organizacionais do MME e do DNPM. No entanto, sua ineficiência não se expressa somente no nível da responsabilidade pela captura de rendas minerais,2 mas, principalmente, no que diz respeito à dimensão redistributiva destas.
O mecanismo dos fundos objetiva, nesse sentido, instituir formas de redistribuição direta das rendas minerais, fundadas, por sua vez, em duas dimensões. A primeira diz respeito à reapropriação do território e dos recursos naturais (Altvater, 2010). Em realidade, a produção de efeitos socioeconômicos negativos – migração, sobrecarga de serviços públicos, baixos padrões de uso e remuneração da força de trabalho etc. – intrínseca à IEM impõe uma perspectiva intrageracional e de solidariedade espacial dos agentes sociais impactados.
No nível das economias locais e regionais, a dependência das redes de produção da IEM amplia a vulnerabilidade do território, subordinando a vida a ciclos de desinvestimento, desemprego, decomposição de estruturas produtivas camponesas e extrativistas etc., assim como aos limites físico-ambientais da extração. A proposta até aqui acumulada se orienta em sentido contrário. Ela busca fazer que a renda capturada seja utilizada para romper a dependência local da rede de produção mineral.
Assim, a segunda dimensão do eixo redistributivo da proposta é definida pela perspectiva intergeracional ou de solidariedade no tempo (Altvater, 2010), dizendo respeito ao imperativo da reconstituição de estruturas territoriais diversificadas como esteio da segurança socioeconômica dos grupos sociais. Dessa forma, a criação de fundos sociais tem por objetivo contribuir também para a emergência de uma socioeconomia pós-extrativista.
O enfrentamento de ambas as formas de desequilíbrio socioeconômico, à margem de canais institucionais estatais, tem o potencial de instituir, ainda, práticas de democracia direta no território. A noção de comunidade se encontra, portanto, no centro do debate. O reconhecimento institucional dos agentes sociais impactados como os principais interlocutores nas decisões públicas é, possivelmente, o efeito potencial mais relevante da proposta.
A emergência de formas de controle social do comportamento empresarial para refrear a incorporação do espaço e do tempo por meio da aceleração “produtivista” da acumulação de capital na IEM3 é indissociável da crítica ao desenraizamento social da economia.
Nesse sentido, a proposta adensa o debate acerca da sociodeterminação dos territórios, questionando a subordinação completa ao capital mineral e o risco ampliado que este impõe à reprodução dos grupos sociais que ali vivem. Fundos sociais e comunitários constituiriam, assim, um passo inicial, embora decisivo, na construção da legitimidade dos agentes sociais impactados e de sua capacidade de reapropriar-se do território.
Carlos Bittencourt é Pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) – [email protected]
Rodrigo Santos é Professor adjunto da UFJF – Mail: [email protected]