Garantia do direito à educação permanece desigual mesmo com leis avançadas
Campanha lançou, com apoio da FES Brasil, três estudos: diagnóstico do Plano Nacional de Educação por estados, raça/etnia e gênero; Índex do Direito à Educação 2021; e a sistematização dos compromissos internacionais do Brasil com a educação
O direito à educação no Brasil tem leis avançadas, reconhecidas nacional e internacionalmente, mas essa estrutura legal não se traduz como deveria na implementação de políticas públicas. As desigualdades educacionais geradas por essa ausência do Estado na vida de estudantes e trabalhadores da educação afetam especialmente mulheres, pessoas pretas e pardas e as populações do Norte e Nordeste do país.
Isso é o que mostram três estudos lançados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação com seu Comitê Diretivo, com apoio da Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES) Brasil, nesta quarta (05/10), como parte do Seminário Nacional “Compromissos e Indicadores da Educação no Brasil”.
Os estudos são os seguintes (clique em cada link para acessá-los na íntegra):
Diagnóstico do Plano Nacional de Educação (PNE) por estados, raça/etnia e gênero
Índex do Direito à Educação 2021 (RTEI 2021)
Compromissos internacionais do Brasil com a educação
Nos últimos anos, como mostra o estudo do PNE produzido pelo cientista de dados da Campanha, Fernando Rufino, os retrocessos persistem e há avanços lentos na maioria dos indicadores das metas, corroborando análises de anos anteriores de que, quase que totalmente, a Lei do PNE está sendo descumprida e suas principais metas não devem ser alcançadas até o término de sua vigência, em 2024.
A Campanha já tinha mostrado que 15 das 20 metas não estão cumpridas. Entre as 5 metas parcialmente cumpridas estão aquelas que já estavam avançadas no momento da aprovação da Lei em 2014, não indicando propriamente progresso do sistema educacional.
Os cortes dos governos Temer e Bolsonaro em diversas áreas da educação e os problemas de continuidade de políticas dos estados são apontados como motivos para a inviabilização do PNE.
“A trajetória de cumprimento do PNE foi liquidada pela EC 95/2016 (Teto de Gastos). O PNE é impossível de ser implementado no neoliberalismo, pois o direito à educação é antissistêmico. São as políticas públicas e as demandas públicas que fazem com que existam metas que avancem”, afirma Daniel Cara, professor da FE/USP e dirigente da Campanha. O estudo utilizou as pesquisas mais recentes para cada indicador de cada meta. No entanto, devido ao apagão de dados que o país vive, especialmente no caso das infâncias e adolescências, o próprio levantamento indica em suas metas essa inviabilidade de análise.
Populações preta e parda são mais afetadas
Ao analisar os dados desagregados por região, estado, raça e gênero, revela-se a dimensão das desigualdades na educação.
“Há uma desigualdade gritante de raça/etnia que a gente vê praticamente em todas as metas”, afirma Andressa Pellanda.
Pellanda traz o exemplo do acesso ao ensino superior. “Há queda na desigualdade de acesso à educação superior por parte de pretos e pardos no período de 2014 a 2021. Mas, mesmo com o sucesso inegável da Lei de Cotas, continua uma disparidade grande entre a população negra e a branca.”
A Meta 2 (percentual de estudantes entre 6 e 14 anos que frequenta ou concluiu o Ensino Fundamental) tem um impacto desproporcional sobre a população preta, que viu sua taxa de atendimento cair 3,3 p.p. em relação ao que era no início do Plano.
Com relação à Meta 4 (percentual de estudantes de 4 a 17 anos com deficiência que frequentam a escola), a população branca do Sudeste tem mais acesso a classes comuns e ficam claras “desigualdades consideráveis de acordo com a raça-cor autodeclarada do alunado, com o atendimento dos indígenas 13 p.p. abaixo da média, e também com a região, onde é no Norte que se observa o menor nível, a 78%”, diz o estudo.
Na Meta 3, destaca-se o forte crescimento na taxa líquida de escolarização da população preta, que, junto com a população parda, ainda assim precisam de esforços na direção de reduzir sua desigualdade em relação aos brancos.
“Média não mede desigualdades”, diz Jaqueline Santos, diretora de projetos para ações programáticas em justiça racial e justiça de gênero da FES Brasil. “Quando desagregamos os dados por região, estado, raça e gênero, as desigualdades começam a aparecer. As metas do novo PNE precisam estar dentro de uma perspectiva de equidade.”
Jaqueline Santos ainda aponta que, mesmo quando metas de acesso são cumpridas em algumas etapas de ensino, há que se verificar a qualidade da educação nos casos das populações historicamente vulnerabilizadas.
Disparidades regionais
Pellanda ressaltou como os dados de analfabetismo (funcional e absoluto) expõem como persistem as disparidades regionais e de raça/etnia.
“Não é nada de novo, mas quando vemos os dados atualizados ainda choca. Há regiões, como o Nordeste, que tem quase metade (42%) de sua população em situação de analfabetismo funcional. No Brasil, são 9 milhões de pessoas. Isso é a população inteira de alguns países e um terço da população brasileira nesta situação”, evidencia.
De 2015 a 2018, a taxa de analfabetos funcionais entre a população preta (35%) foi de 12 p.p. a mais que a branca (23%).
Na Meta 1, sobre a universalização da pré-escola e a ampliação da oferta de creches, Norte e Centro-Oeste estão muito aquém do Sul e Sudeste – que tem avançado em um ritmo mais acelerado rumo ao objetivo descrito no Plano.
A Meta 6, que trata da jornada em tempo integral, também representa como há grandes diferenças de avanço entre regiões.
Com exceção do Sudeste, há uma forte queda em todas as regiões na cobertura de atendimento em tempo integral nas escolas. Nordeste e Norte apresentam quedas acima da média, chegando a níveis inferiores ao nacional após estas – no caso do Norte, já se partiu de um ponto inferior, o que é especialmente grave. E, mesmo no Sudeste, Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro caíram nesse indicador.
Nacionalmente, se em 2014 haviam 42.665 escolas e 6,5 milhões de matrículas com jornada em tempo integral, em 2021 os números haviam caído para 30.454 escolas, significando uma perda de cerca pouco mais de 10 mil escolas ofertantes desse formato.
Para a Meta 3, que referencia avanços em matrículas, frequência e conclusão do da Educação Básica, é visível o padrão de aproximação entre as unidades federativas, porém, ao focalizar na região Norte, vemos que Acre, Rondônia, Roraima e Pará são os casos em que há maior distanciamento negativo em relação à média nacional.
O caso de Roraima é um dos mais trágicos, com retrocessos e/ou estagnações em diversas metas de acesso e conclusão na Educação Básica, incluindo a Meta 12 de matrículas, frequência e conclusão do Ensino Superior.
Um exemplo positivo surpreendente é do Rio Grande do Norte, que nos últimos anos aumentou salários e valorizou seus profissionais da educação. De acordo com a desagregação da Meta 17, os professores com ensino superior completo recebem, em média, o dobro do que outros profissionais com a mesma escolaridade.
Conheça os dados e comentários dos principais indicadores das 20 metas do PNE no acervo do site da Campanha.
RTEI 2021
Mesmo com tamanha desigualdade educacional, o Brasil tem uma das melhores estruturas de governança (legislação, compromissos e mecanismos de monitoramento) para o direito à educação no ranking internacional Right to Education Index (RTEI) 2021, superando na categoria o Reino Unido e os Estados Unidos na lista de 15 países.
O RTEI monitora até que ponto os governos estão cumprindo suas obrigações em torno do direito à educação. O ranking usa metodologia quantitativa e qualitativa para coleta de dados por meio de questionário respondido pela sociedade civil e revisado por pesquisadores e por atores governamentais da área de educação.
De acordo com o RTEI 2021, a pontuação geral do Brasil foi 84. Esse total aferido considera uma combinação de elementos de estrutura (compromissos legais e políticos), processo (implementação desses compromissos) e resultado (gozo do direito à educação pelo cidadão). Nesses dois últimos, é que o desempenho do país é insatisfatório.
Em ‘acessibilidade’ – categoria que o ranking descreve como condição estrutural de instituições e insumos para a qualidade da educação –, o Brasil pontua apenas 41 em 100. Reflete, assim, a falta de padrões específicos para tamanho das salas de aula, saneamento, livros didáticos e número adequado de professores e enfatizando a importância de iniciativas que visem remediar essa situação, como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ).
“Ainda dentro da governança, entre 2018 e 2021, há retrocessos também, inclusive em termos estruturais da legislação, com relação a financiamento e disponibilidade de dados. Claramente refletem o período do Governo Bolsonaro, que realiza políticas frontalmente contrárias ao direito à educação”, diz Andressa Pellanda.
Compromissos internacionais
Sendo parte do Conselho de Direitos Humanos da ONU e, portanto, sob o Comitê sobre os Direitos das Crianças e sob a Revisão Periódica Universal da ONU, e Estado-membro da Organização dos Estados Americanos, sob a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil tem uma série de compromissos e tratados internacionais firmados que visam a garantia do direito à educação.
O mapeamento aponta que acordos em cada uma dessas instâncias de organismos internacionais fazem com que o Estado brasileiro se comprometa com vários aspectos do direito à educação.
Estão relacionados à qualidade educacional, acesso e permanência, inclusão, redução das desigualdades, financiamento público, compromisso com a antidiscriminação, contra a privatização e a austeridade, pela promoção das culturas afrobrasileiras e indígenas, entre outros.
Enquanto sociedade civil, a Campanha participa desses espaços de participação, definição e monitoramento das agendas internacionais com objetivo de incidir politicamente nas políticas públicas que vão impactar positivamente a educação brasileira.
Sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, a coordenadora geral da Campanha é clara em afirmar que “se o PNE for implementado, o ODS 4 (educação) é alcançado”. Por isso a importância de se debater amplamente um novo PNE que, também, preze a atender esse compromisso internacional.
“Apesar das limitações da Agenda 2030, quando o Brasil se compromete com o ODS 4, está se comprometendo com formação de professores, permanência na educação básica e superior, infraestrutura da educação, educação em direitos humanos, alfabetização de jovens e adultos, equidade de gênero, inclusão, educação técnica, educação infantil, acesso e qualidade”, destaca o mapeamento.
A Campanha coordena o capítulo de educação do Relatório Luz, documento do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), do qual a entidade também faz parte.
Recentemente, o Comitê sobre ONGs da ONU indicou status consultivo à Campanha ao ECOSOC (Conselho Econômico e Social) da ONU. Antes, havia assumido assento na coordenação da Consulta Coletiva de ONGs para a Educação junto à Unesco Global
A Campanha, na representação oficial de sua coordenadora geral, incide e pauta o direito à educação na Organização da Nações Unidas (Assembleia Geral, Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, Conselho de Direitos Humanos, Comitê sobre os Direitos da Criança, Revisão Periódica Universal e outros) e na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA). Por conta disso, integra, nacionalmente, o Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa, o Coletivo RPU Brasil e o GT Agenda 2030.
Saiba mais sobre a articulação internacional da Campanha.
Campanha Nacional pelo Direito à Educação é a articulação mais ampla e plural no campo da educação no Brasil, constituindo-se como uma rede de milhares de ativistas e centenas de grupos e entidades que acreditam na construção de um país justo, democrático e sustentável por meio da garantia de uma educação pública de qualidade.