Genocídio, pandemia e o horror de 500 mil vidas interrompidas
Por todos os lados, em todas as cenas – nos lares, nas ruas, na espera de leitos em unidades de saúde exauridas de gente tentando respirar: pacientes, profissionais de saúde, equipes de apoio, famílias, afetos de muitos, de alguém. Vidas interrompidas pelo esvaziamento governamental do seu sentido. O luto nos alcançou como fenômeno coletivo e, com ele, o pesar, a revolta, a insegurança, o esgotamento, a descoberta compartilhada da morte solitária, do horror.
Alguns meses antes de ter início a pandemia de Covid-19, Eliane Brum publicava o artigo “Doentes de Brasil” apontando a perversidade de um presidente insistentemente sem limite, que dominado pela autoverdade não se preocupa com o fato de submeter pessoas ao risco de morte. Seria esse fenômeno, “que converte a verdade numa escolha pessoal, e, portanto, destrói a possibilidade da verdade”, que estaria adoecendo brasileiras/os. A monocultura existencial própria do autoritarismo, inabilitado à possibilidade de coexistência.
A pandemia, anunciada com alguma antecedência além-mar, encontrou no Brasil um país em pleno desmonte de suas principais políticas públicas e de proteção social, internacionalmente reconhecidas. Em particular, o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil já vinha enfrentando o subfinanciamento, a escassez e a inadequação de recursos, potencializados pela emenda constitucional 95 de 2016, com medidas de austeridade econômica e congelamento do teto de investimentos públicos em saúde e educação por vinte anos, a contar de 2018. O encontro desse sucateamento programado da coisa pública com a primeira onda da pandemia, ainda em abril de 2020, exacerbou a fabricação de mortes evitáveis – ou seja, mortes preveníveis, total ou parcialmente, por ações efetivas dos serviços de saúde[1], mortes sensíveis às intervenções e políticas públicas. O Brasil, que já despontava como país das Américas com altas taxas de mortes evitáveis – sobretudo relacionadas aos homicídios, mortes no trânsito e suicídios –, se viu produzindo uma espécie de inevitabilidade pandêmica. Ou seriam pandemias convergentes, já que o nosso flagelo nunca foi apenas o Covid-19.
Com ela, vivemos um acentuamento de nossas desigualdades estruturais e iniquidades prévias de acesso a direitos essenciais. No país em que se morria de doenças cardiovasculares, infecções respiratórias e doenças pulmonares crônicas, diabetes mellitus e doenças hepáticas, mas também por violência de trânsito, violência interpessoal e violência institucional – acometendo sobretudo jovens negros habitantes das periferias e mulheres negras assassinadas (Ipea, 2019) – passou a somar estas comorbidades prévias, históricas, o adoecimento e morte em decorrência da Covid-19.
Não é apenas emblemático que a primeira morte registrada no país tenha sido de uma trabalhadora doméstica, mulher, negra, de 63 anos – empregada doméstica desde os 13 anos – que se contaminou em serviço num bairro de elite do Rio de Janeiro. As taxas de mortalidade em decorrência da Covid-19 no Brasil desenham uma estrutura colonial e concentram-se entre pretos, pardos e indígenas, abarcando também atividades laborais informais, autônomas e mal remuneradas. Domésticas, pedreiros, motoristas de táxi e de aplicativos, caixas de supermercado, recepcionistas, vigilantes, frentistas, motoristas de ônibus e trabalhadores da construção civil são as profissões com maior “risco Covid” no Brasil, somadas aos profissionais de saúde, principalmente os auxiliares e técnicos de enfermagem, que estão na base dos serviços de saúde.
Observa-se que há no Brasil mais de 1,3 milhão de técnicos e quase 420 mil auxiliares de enfermagem que realizam cuidados essenciais em unidades de Saúde; “oito em cada dez destes profissionais são mulheres, que além de serem provedoras também assumem, na maioria das vezes, o papel de cuidadoras primárias de crianças, idosos e enfermos em suas famílias. Os baixos salários dificultam o acesso a alternativas mais seguras de transporte e cuidado para seus dependentes”[2]. Até setembro de 2020, 570 mil profissionais de saúde já haviam sido infectados e 2,5 mil haviam morrido em decorrência da Covid-19 nas Américas (OPAS, 2020). No Brasil, até março de 2021, registrou-se 1,3 morte de profissionais de saúde por dia, ou uma morte a cada 19 horas em decorrência da Covid-19.
Com quase 15 milhões de desempregados, o Brasil neste 2021 apresenta a maior taxa da série histórica; a renda de trabalhos informais e descontínuos caiu significativamente durante a pandemia. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil apontou que a insegurança alimentar atinge 55% dos domicílios brasileiros dos quais 9% vivem a fome. Ou seja, 116,8 milhões de brasileiros convivem com algum grau de insegurança alimentar, dos quais 43,4 milhões não têm alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros enfrentavam a fome.
É neste contexto que morrem 40% mais pessoas negras do que brancas por coronavírus no Brasil. Embora as taxas de internação entre pessoas negras e brancas seja semelhante, em torno de 49%, quase 55% dos pretos e pardos faleceram enquanto, entre os brancos, esse valor foi 38%. Quanto maior a escolaridade menor a letalidade. O Índice de Desenvolvimento Humanitário (IDH) também impacta no total de óbitos: registra-se mais mortes em municípios com menor IDH no Brasil. Segundo o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde, formado por pesquisadores da PUC-Rio e instituições parceiras, estas desigualdades no acesso ao tratamento confirmam que as chances de morte de um paciente analfabeto preto/pardo são 3,8 vezes maiores que a de um paciente branco com nível superior.
Entre os povos indígenas, a taxa de mortalidade pelo coronavírus (o número de óbitos por 100 mil habitantes) é 150% mais alta do que a média brasileira e a taxa de letalidade (quantas pessoas infectadas pela doença morreram) é de 6,8%, enquanto a média para o Brasil é de 5%. Registra-se que há ainda significativa subnotificação de casos entre a população indígena e questiona-se a eficácia do planejamento feito para a vacinação deste grupo prioritário. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil denunciou uma “Emergência Indígena” lançando uma mobilização internacional para salvar vidas.
Oito em cada dez mortes de gestantes que vieram a falecer em decorrência da Covid-19 ocorreram no Brasil. As gestantes e puérperas foram compreendidas como grupo de risco para a Covid ainda no primeiro semestre de 2020. No entanto, seu afastamento do trabalho, aprovado pela Lei 14.151 de 12 de maio de 2021, e a sua inserção nos grupos prioritários para vacinação caminha desigualmente nos estados federativos.
A falta de celeridade, o descompasso entre evidências científicas e as práticas que visam preservar a saúde da população nos coloca nos piores índices de combate à pandemia. Existe “justiça viral” em meio a uma pandemia? (BENJAMIN, 2020). O cenário seria ainda mais devastador se o Brasil não contasse com um sistema público e de acesso universal à saúde – a despeito das quatro trocas de ministros da saúde em 15 meses. Diante da barbárie que vivenciamos hoje no Brasil, é urgente uma defesa do SUS. Esse engajamento deve acontecer de maneira combinada com uma vigorante defesa da democracia, dos direitos universais e, acima de tudo, da defesa da vida, pois, a despeito da sobrevivência do SUS, temos o esvaziamento da democracia, o extravio de direitos, a obstrução coordenada de justiça social no Brasil dos últimos anos. Sentimos o impacto sobre nossas vidas e subjetividades ao presenciarmos essas violências não serem impedidas pelas instituições. Um tempo de “brutalismo”, disse Achile Mbembe, marcado por uma razão econômica/instrumental (a lógica neoliberal), uma razão eletrônica/digital (a intoxicação geral, o bunker do isolamento, uma nova forma de guerra) e uma razão neurológica/biológica (promotora de um processo de extinção da política do vivo).
No dia de hoje, reconhecemos as 500 mil vidas perdidas e nos unimos na busca por mudanças duráveis e não apenas gestos performáticos. O termo “mistanásia”, na Bioética, abarca a situação de pessoas que são acometidas por uma morte precoce, miserável e evitável como consequência da violação de seu direito à saúde. Mistanásia fala assim de mortes resultantes da omissão, da negligência e do descompromisso público que afetam sobremaneira determinadas populações; “Morre-se por ausências… De alimentos, de saneamento, de medicamentos, de leitos, de profissionais, de políticas públicas para suprir estas demandas”. Ausência, inclusive, do direito ao luto: estamos partindo subitamente, com mortes omitidas, burladas, escondidas pelas estatísticas oficiais. Mortes sem direito à despedida e diluídas em números que não cessam de crescer. Vimos mães yanomami que foram privadas dos próprios corpos de seus bebês, perdidos no caos e mar de mortes de Manaus. Mortes sem rituais, sem velório, algumas sequer sem enterros. A celeridade no sepultamento dos mortos contrasta-se à lentidão burocrática de cartórios.
É nesse sentido que cresce no Brasil a denúncia de que estamos vivendo um genocídio programado. Nos termos da Convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio da ONU, em seu artigo II:
Entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como:
assassinato de membros do grupo;
dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial.
É de se destacar as investigações em curso na CPI da Pandemia no Senado sobre a responsabilidade do governo, que teria não apenas obstruído políticas, mas fomentando insistentemente desinformação em saúde em meio a uma pandemia, promovendo também a crença em uma cura impossível e o uso irresponsável de medicamentos em caráter experimental sem testagem clínica, comprovação de eficácia e garantias sanitárias à população.
Hoje, à espreita de alcançarmos a triste marca 500 mil mortes em decorrência desse cenário, o Brasil é o 2º país em número de mortes e um dos países que por meses consecutivos mais registra óbitos por Covid-19 em relação à sua população. São 2.000 mortes para cada milhão de brasileiros, um índice superior aos outros 13 países com mais de 100 milhões de habitantes. O Brasil tem 2,7% da população mundial e concentra hoje 9,7% de todos os casos de Covid-19 e 12,6% de todas as mortes. Estamos morrendo de Brasil.
Em mais uma faceta de nossa história colonial que desenha nitidamente as vítimas preferenciais. Há um registro no site da Fiocruz do dia em que Mia Couto foi chamado para fazer a palestra de abertura do Seminário Internacional Determinantes Sociais da Saúde, Intersetorialidade e Equidade Social na América Latina, em 2015. Naquela ocasião ele lembrou que “somos feitos de histórias assim como somos feitos de células”. Histórias nas quais nos reconhecemos humanos, narrativas sobre nós que podem nos dar senso de importância e aconchego. Uma das histórias contadas ali foi sobre Niassa, uma província no norte de Moçambique onde se costuma perguntar “de quem” uma pessoa morreu. Pois as pessoas são feixes de relações entre os vivos, os mortos, os espíritos; relações que determinam seu estado de saúde ou adoecimento. “A doença é, ao mesmo tempo, um que e um quem. Eu realmente acredito que se pode morrer de alguém sim, e isso não é poesia”, observou Mia Couto. Em 2021, morremos de quem no Brasil?
Marianna Assunção Figueiredo Holanda (UnB), Débora Allebrandt (UFAL), integram a Comissão de Direitos Humanos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Luciana de Oliveira Dias (UFG), diretora da ABA e integrante do Comitê de Antropólogas/os Negras/os da ABA.
Referências
ABRASCO. Uma carta de esperança no futuro. Carta do 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, ocorrido entre 22 a 26 de março de 2021. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/eventos/congresso-brasileiro-de-politica-planejamento-e-gestao-em-saude/uma-carta-de-esperanca-no-futuro-4o-cbppgs/57421/
[1] RUTSTEIN D., BERENBERG W, CHALMERS T, CHILD C, FISHMAN A, PERRIN E. Measuring the quality of medical care: a clinical method. New England Journal of Medicine, 1976; 294(11): 582588.
[2] MINAYO, Mª C. e FREIRE, Neylson. Pandemia exacerba desigualdades na Saúde. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2020, vol.25, n.9, pp.3555-3556. Epub Aug 28, 2020.