Gestão ambiental segundo a Constituição ou conforme Candido Bracher?
Bracher parece refletir uma percepção de que o Estado brasileiro deveria se organizar à imagem e semelhança do mercado: bastaria um único CEO que enfrenta, solitariamente, mas com muito poder, “todas as questões ambientais no Brasil” para superar tantos e graves problemas
Candido Bracher, ex-presidente do Itaú Unibanco e membro do conselho de administração do mesmo banco, concedeu entrevista ao Estadão, publicada no dia 3 de setembro, sobre desafios da gestão ambiental no país. Empresário e dono de fazendas no Pantanal, Bracher é uma voz presente em debates públicos, inclusive como colunista. Sua esposa, Teresa, é uma especialista em meio ambiente, o que o aproxima ainda mais dessa agenda, conforme narrou.
A entrevista ganhou repercussão, especialmente pela chamada da matéria, na qual o jornal deu destaque a um juízo muito contundente atribuído ao entrevistado: “Governo Lula não tem competência para as questões ambientais, diz Candido Bracher”. No conteúdo da matéria, porém, a crítica não parece refletir a mesma severidade. À pergunta “O governo está parado?”, Bracher responde:
“Seria uma injustiça dizer que está parado. Vejo pessoas se esforçando muitíssimo. O que não vejo é capacidade de gestão. A capacidade de gestão tem de vir de cima. Nós poderíamos, por exemplo, ter uma pessoa que centralizasse todas as questões ambientais no Brasil, que essa pessoa tivesse uma autoridade sobre agricultura, meio ambiente… Não tem”.
Claro que chama a atenção a diferença entre o teor da afirmação destacada pelo jornal e aquilo que disse o entrevistado ‒ o que caberia ao próprio Bracher, talvez, esclarecer. Mas o que nos importa mesmo é debater o curto diagnóstico e a proposição acima transcritos, cujo conteúdo pode ser confirmado no vídeo veiculado pelo jornal em suas redes sociais.
Inicialmente, não fica claro se Candido Bracher está se referindo à falta de boa gestão ambiental em todos os assuntos a cargo do Ministério do Meio Ambiente ou apenas sobre o exercício da fiscalização ambiental. Não é incomum, especialmente na imprensa, que se considere a gestão ambiental apenas por sua dimensão repressiva ‒ não por acaso ‒, o que acaba dando menor visibilidade a elementos importantes da política pública, como o planejamento, o financiamento, a educação ambiental etc.
Seja como for, a visão de Bracher causa perplexidade. Ele parece deixar de lado, por completo, a repartição de competências constitucional ‒ e aqui um aspecto semântico: em direito constitucional, a palavra competência não tem o mesmo sentido usado pelo Estadão na chamada da entrevista, que é associada à ideia de boa gestão. A repartição de competências ‒ entendidas, coloquialmente, como divisão de responsabilidades ‒ atribui tarefas a todos os entes federativos em matéria ambiental. A atuação de cada um depende de alguns critérios, como a proximidade e a extensão da atividade causadora de impacto ambiental, quando se trata, por exemplo, da abordagem fiscalizatória ou de licenciamento.
Nesse sentido, a premissa de que a capacidade “tem de vir de cima”, como preconiza Bracher, não se compatibiliza bem com a Constituição e com o nosso Sistema Nacional de Meio Ambiente, o SISNAMA. Neste sistema, seria esperado, por exemplo, que governos estaduais e municipais, cumprindo as normas vigentes, detivessem efetiva capacidade de gestão ambiental. Em boa medida, ao contrário do que diz Bracher, a capacidade deveria vir “de baixo”, inclusive no exercício do poder de polícia administrativa, considerando a lógica que inspira o nosso federalismo cooperativo. Infelizmente, não estamos nem perto disso. Bracher não parece reconhecer a omissão de governadores e prefeitos, que é gravíssima. Ou, pelo menos, não parece considerá-la um problema central, pois não a nomeia em seu diagnóstico.
Igualmente problemática é a ideia de que uma única autoridade deveria centralizar “todas as questões ambientais no Brasil”. Não apenas por mais uma vez afrontar o sistema federativo, mas por deixar de lado a necessária transversalidade da gestão ambiental. A Lei nº 14.802/24, que institui o Plano Plurianual 2024/2027, estabelece, pela primeira vez, uma agenda ambiental transversal, reconhecendo as complexidades dos desafios derivados das mudanças climáticas, a exigir a mobilização de múltiplas autoridades e não apenas de um único órgão e das entidades a ele vinculadas. Vale lembrar que o município de São Paulo, entre os anos de 2005 e 2012, adotou a transversalidade como uma estratégia decisiva para a gestão ambiental da cidade, com resultados bastante satisfatórios.
A tomada de decisão em matéria ambiental conviverá sempre com a pluralidade de atores decisórios. Basta ver o exemplo mais recente: um ministro do STF, monocraticamente, determina a contratação emergencial de brigadistas de incêndio pelo governo federal. A necessidade de alinhamento entre poderes, de articulação federativa e de participação social não serão excluídos sob a Constituição Brasileira, nem mesmo em um cenário de emergência climática ‒ que foi finalmente reconhecida, ainda que por medida provisória, no dia 11 de setembro, pelo Presidente da República.
Resumidamente, Bracher parece refletir uma percepção ‒ que tem muitos adeptos, é verdade ‒ de que o Estado brasileiro deveria se organizar à imagem e semelhança do mercado: bastaria um único CEO (Chief Executive Officer) que enfrenta, solitariamente, mas com muito poder, “todas as questões ambientais no Brasil” para superar tantos e graves problemas. Façamos, assim, um singelo exercício mental: pensemos nesse mesmo CEO durante um Governo Bolsonaro.
Thiago Lopes Ferraz Donnini, advogado e professor de direito administrativo, foi pesquisador na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP) e na Escola Nacional de Administração Pública (ENAP).