Glasgow, COP26 e a encruzilhada civilizatória
Não serão equacionados os problemas decorrentes das mudanças climáticas sem que a humanidade venha a rever a escala nociva de suas atividades econômicas, assim como deverá buscar meios para socializar a geração de riqueza e renda, possibilitando um mundo mais justo, inclusivo e resiliente
As raízes do atual modelo de sociedade industrial, gerador das mudanças climáticas, remonta justamente a Glasgow, a cidade escocesa escolhida para sediar em novembro deste ano a Cúpula do Clima (COP26) das Nações Unidas. Glasgow é um bom exemplo da revolução industrial no início do século XIX e de todo processo que se seguiu e levou à dramática situação que vivemos hoje do ponto de vista ambiental. Por isso, a escolha da cidade para a COP26 é emblemática.
Se a revolução industrial agregou bem-estar e avanços tecnológicos ao cotidiano da humanidade, ao mesmo tempo resultou em poluição, insalubridade e descarte de materiais em escala global. A história atual e futura aponta, infelizmente, para a quase absoluta falta de equacionamento sobre as alterações climáticas, fruto de uma alienação do mercado global sobre seus efeitos, que continuam a pressionar os ecossistemas vitais.
Na COP26, uma discussão essencial será mostrar que a geração atual terá uma tarefa gigantesca a cumprir: buscar alternativas para reduzir os níveis as emissões dos gases efeito estufa a patamares aceitáveis nas próximas décadas e promover um modelo de desenvolvimento que leve em conta a inclusão social com sustentabilidade.
A sustentabilidade vai mal: o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) concedeu em agosto uma prévia de seu último relatório (AR6), que será divulgado formalmente em 2022. O cenário de aumento da temperatura global apontado demonstra um estado de emergência climática, no qual a humanidade está premida a agir de forma rápida e vigorosa, se quiser manter condições necessárias à vida e à qualidade de vida.
De outro lado, a concentração de riqueza exclui populações, em um cenário global onde apenas 2.153 bilionários detêm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas. Esta realidade quase que dobrou na última década, fortalecendo uma tendência que contrapõe extrema pobreza com extrema riqueza, o que tem uma relação direta com o aumento das vulnerabilidades trazidas pelas mudanças climáticas.
Para enfrentar a crise civilizatória será necessário entender desafios e buscar soluções. É preciso compreender que os limites do planeta e os modelos industrial e socioeconômico caminham em um cenário de intensas desigualdades, seja pelo fato de que o sistema de produção adotado pela humanidade ultrapassou os limites das alterações aceitáveis dos ecossistemas, seja pelo fato de que há um desproporcional aumento do desnível entre condições sociais, seja entre nações ou entre diferentes populações.
A destruição das florestas e o lançamento de gases nocivos à atmosfera desenham hoje diferentes cenários até 2100: um otimista, contando com reação proativa, que possa estabilizar a temperatura perto de uma elevação de 2 graus Celsius; e outro pessimista, de inação, com acréscimo de temperatura média em 8,5 graus.
É nessa expectativa e indefinição que avançamos no século XXI, já convivendo com efeitos nocivos, conforme demonstram as temperaturas extremas que assolaram o Estados Unidos e o Canadá neste verão, onde o desconforto humano é palpável. Mais e mais pessoas lidam com a condição crescente da “ansiedade climática”, de que empresas e governos não farão o suficiente para desacelerar o aquecimento global. Segundo a Associação Americana de Psiquiatria, grande parte da população dos Estados Unidos demonstra diferentes graus de ansiedade e isso já afeta sua saúde mental, o que não ocorria desde os piores momentos da Guerra Fria.
Não é para menos. Hoje, os efeitos de 1,09 grau Celsius de aquecimento médio global mensurado já são visíveis. Entre secas e tormentas, as plataformas continentais atingem, como no caso da América do Sul, um acréscimo médio de 1,7 grau, e o Nordeste brasileiro já atinge 2 graus Celsius. Todo o continente caminha para a média de 2º C em aproximadamente nove anos, com um já esperado acréscimo global de 0,36 grau por década, decorrente do atual lançamento de 162 milhões de toneladas de Gases Efeito Estufa (GEE) por dia.
Há responsáveis a cobrar. É fato conhecido que a atividade predatória é de responsabilidade diferenciada, seja entre nações ou entre diferentes camadas sociais. Nota-se de forma cristalina que a riqueza gerada pelo sistema econômico não traz um processo de socialização de seus efeitos benéficos, sendo concentradora e excludente, ao passo que também seus efeitos ambientais nocivos recairão sobre as populações mais vulneráveis especialmente de países menos desenvolvidos, com habitações mais precárias, em áreas sujeitas a deslizamentos e inundações, além de efeitos adversos gerados pelo desconforto térmico.
São extremamente preocupantes as perspectivas associadas à disponibilidade hídrica e os processos de desertificação, que segundo o IPCC poderão atingir, em curto espaço de tempo, a região central do Brasil, a região do Mediterrâneo e as áreas centrais do Estados Unidos.
Além disso, a acidificação dos oceanos aumentou apontando para riscos na produção pesqueira, enquanto sua elevação triplicou nos últimos seis anos. A intrusão das marés em regiões estuarinas e foz de rios poderá ameaçar drasticamente sistemas produtores de água doce, assim como as alterações na regularidade da pluviometria ameaçam, continentes adentro, os sistemas de recarga dos aquíferos. Desnecessário apontar os riscos decorrentes para todos os sistemas de serviços essenciais à sociedade, da energia ao abastecimento, assim como para a agricultura.
É preciso ainda abordar, de forma honesta, a capacidade de sobrevivência da biodiversidade neste cenário, especialmente em um país equatorial e tropical como o Brasil, detentor de 20% das espécies vivas no planeta.
As soluções estão claramente delineadas no Acordo de Paris, abandonado pelos Estados Unidos na gestão de Donald Trump e pelo Brasil na gestão de Jair Bolsonaro. O Brasil chegou a recusar a sediar a Cúpula do Clima em 2019. Um verdadeiro fiasco, que enterrou a imagem brasileira diante da comunidade internacional, fato acrescido pelo descaso na contenção do desmatamento e agravado por discursos irresponsáveis de Bolsonaro sobre a Amazônia.
Como maior emissor de GEE, os Estados Unidos estão patinando de novo, agora na gestão de Joe Biden. O discurso progressista não deverá apresentar metas tão ambiciosas na COP26. O governo americano está intensamente envolvido na tarefa limitada e imediatista para a manutenção de empregos e investimentos em infraestrutura, esquecendo-se de uma questão estrutural e vital para sua própria sobrevivência. Felizmente propostas mais progressistas deverão surgir dentro da União Europeia.
A China emite sinais mais progressistas. Para Arthur Budaghyan, da experiente BCA Research, as quedas de valor de commodities na China, como petróleo e carvão, que tem afetado as bolsas mundiais, são mais do que uma mera desaceleração pós-Covid; retratam quais setores deixarão de crescer daqui para a frente, em função dos compromissos de zerar emissões em 2060, em uma transição da “velha” para uma “nova economia”.
Mas as iniciativas são insípidas frente à emergência climática. Na Somália os “rob raac”, ou seguidores de chuvas, continuam a deslocar seus rebanhos de cabras, camelos e ovelhas para novas regiões, enfrentando conflitos com outros pastores pelo uso de pastagens que ainda contam com água. Em crescente processo de desertização, muitos acabam dependendo, para sobreviver, unicamente de ajuda humanitária.
As condições não são muito diferentes nas secas que se sucedem na caatinga nordestina. O relatório do IPCC aponta a possibilidade de ampliação das secas episódicas, de uma para 39 a cada 50 anos. Na atualidade, de forma anualmente reiterada, dezenas e dezenas de municípios do Nordeste atravessam períodos de emergência declarada. É inadmissível que deixemos o ônus do aquecimento global para os mais vulneráveis, sejam estes países inteiros, insulares, semiáridos — ou para os excluídos, os menos favorecidos.
John Stuart Mill, filósofo e economista britânico, filho de escoceses, em “Ensaios sobre Economia e Sociedade”, afirmava nos primórdios da revolução industrial que sobre si mesmo o indivíduo é soberano, mas, que como ninguém vive isolado, se houver danos os outros serão, também, prejudicados. Em 1992, a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento expressa, em seu Princípio 2: “Os Estados, em conformidade com a Carta das Nações Unidas e os princípios da lei internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas ambientais e de desenvolvimento, e a responsabilidade de velar para que as atividades realizadas sob sua jurisdição ou sob seu controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou de zonas que estejam fora dos limites da jurisdição nacional”.
Nesta encruzilhada civilizatória, como causa e efeito, a história se entrelaça em Glasgow. Não serão equacionados os problemas decorrentes das mudanças climáticas sem que a humanidade venha a rever a escala nociva de suas atividades econômicas, com olhar atento para que não haja prejuízo para as sociedades, os indivíduos e as espécies mais vulneráveis, assim como deverá buscar meios para socializar a geração de riqueza e renda, possibilitando um mundo mais justo, inclusivo e resiliente.
Carlos Bocuhy, presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)