Povos originários, crise global e Cúpula do Clima
A percepção do caminho equivocado, convoca à revisão radical da rota. A tarefa é urgente e amazônica. No trabalho dificílimo e complexo da inevitável reconstrução, deixemo-nos inspirar pelas lições dos rios doces e pela alegria das danças cósmicas trazidas na poesia radical de Krenak
Na semana em que o mundo volta os olhos para a Cúpula do Clima, a entrevista com Ailton Krenak no Programa Roda Vida, da TV Cultura, deveria ser vista (e revista) por todos nós como a aula que nos faltou em quase todas as séries dos nossos anos escolares.
O diálogo entre a liderança indígena e os entrevistadores – entre indígenas, professores, jornalistas e cientistas -, nos leva a uma reflexão profunda, mas também ampliada que vai além dos aspectos históricos e estruturais das relações colonizadoras, violentas, extrativistas que o sistema capitalista e a cultura ocidental branca impôs e impõe sobre os povos originários e povos tradicionais nos diversos territórios do país.
A noção de que somos um país diverso, não apenas do ponto de vista ecológico, mas também do ponto de vista cultural re-emerge explicita em exemplos práticos e em espécies de hipérboles filosóficas.
O diálogo traz conceitos e exemplos vivos e potentes sobre o lugar dos povos originários, as violências e violações absurdas que foram absurdamente se naturalizando ao longo da história – a Vale do Rio Doce que perdeu o “Rio” e o “Doce” ficou ainda mais fria, objetiva, corporativa e pragmática “Vale”, relembrada por Wisnik na memória viva (criminosa, ainda impune) e tão recente das catástrofes de Mariana e Brumadinho em Minas Gerais.
Sobressai a imagem do trem que esvazia as montanhas, levou e leva ouro, o diamante, o ferro, as riquezas do solo para longe, deixando rastros e poeira por onde passa, comunidades, cidades, rios, populações vitimadas por um sistema de partes visíveis e invisíveis, eternizado em poesias de Drummond em Itabira.
Krenak surpreende quase todo o tempo com sua lucidez didática e visão crítica acerca do sistema capitalista, do consumo fast food em gôndolas em supermercados, mas vai além, chamando a atenção para o clima insuportável que ronda a política no Brasil de cima e abaixo, da extrema direita, passando pelo centro e à esquerda: a política não deveria ter se tornado um espaço asfixiante e doentio.
Surpreende ao distinguir os povos indígenas das demais populações vulneráveis, quilombolas, caiçaras e periféricas urbanas pela sua Cosmovisão, concepção existencial que não se identifica nem flerta com a ideia do acumulo material, da propriedade individual, da exploração de uns pelos outros, da apropriação das terras de outrem, da imposição, de qualquer forma de oportunismo, inclusive aqueles camuflados na forma de “planejamento”.
Brilha sua crítica à ciência e à tecnologia e suas relações de corrida competitiva nos mercados repletos das armadilhas da cultura de curto-prazo em que estamos todos imersos, inclusive a corrida às vacinas como uma faceta aparentemente necessária e contraditória nas relações entre ciência e os pesados interesses da indústria farmacêutica.
O diálogo se estende, potente, poético, utópico e realista culminando com um convite à alegria de quem não poderia sentir-se triste ou cabisbaixo ante o convite para uma dança cósmica.
Neste tempo de profunda depressão e decadência social, política, sanitária e cultural, defender a civilização contra a barbárie mortal e bolsonarista, defender a ciência, a solidariedade e a dignidade parece ainda insuficiente – ou no mínimo uma enxurrada do “mais do mesmo” nas redes sociais. Krenak resgata elementos centrais da sabedoria milenar dos ameríndios, tristemente descartada e negligenciada por nossa sociedade.
Se os progressistas, constitucionalistas e defensores da civilidade não atentarem à mais esse grito de alerta “em meio à uma live e outra”, perderemos a oportunidade de aprofundar a urgência de priorizar outros paradigmas de desenvolvimento, paradigmas que possivelmente superem a própria ideia superada de desenvolvimento, inclusive aquele festejado, como supostamente sustentável.
Pedagogias e remédios dos povos indígenas para um mundo, um país e milhares de cidades doentes, decadentes e perdidas entre as múltiplas vítimas dos vírus mortais, os sistemas mundiais e locais des-funcionais, populações enganadas, governos oportunistas e cruéis.
Sim, o mundo deveria frear para acompanhar a Cúpula do Clima, e mais que isso, monitorar e exigir responsabilidade dos mandatários que, em tantos países, como no Brasil, tem se destacado pelo desmonte, sustentando o estímulo à destruição da vida, dos povos e das florestas.
Sob o horror do confinamento e da atual pandemia da Covid-19, urge atentar ao alerta de Maíra Neira, Diretora da OMS sobre como os vírus, ao longo da história recente, têm “saltado dos animais para os humanos” depois da destruição maciça de florestas tropicais. O surgimento de novas cepas em paralelo ao intenso desmatamento não parecem coincidência – fortalecendo impressão de que as vacinas, isoladamente, não nos salvarão nem no curto, nem no longo prazo.
As ideias estão na mesa e as experiências são vivas (e mortas) como nunca. Revisitar e decifrar a sabedoria dos povos originários e indagar como incorporá-las incondicionalmente na vida cultural, política e econômica das sociedades constitui-se numa das primeiras tarefas após a derrocada do horror em que estamos metidos.
A percepção do caminho equivocado, convoca à revisão radical da rota. A tarefa é urgente e amazônica. No trabalho dificílimo e complexo da inevitável reconstrução, deixemo-nos inspirar pelas lições dos rios doces e pela alegria das danças cósmicas trazidas na poesia radical de Krenak!
Francisco Comaru, engenheiro, doutor em saúde pública, professor de planejamento urbano e ambiental da UFABC e coordenador do Laboratório Justiça Territorial, LabJuta.