Globalização e Forças Armadas
A força da globalização é notória e invade todos os setores da vida em sociedade. Uma área muito relevante que ela tem incidido é na política, especificamente a soberania nacional entendida como a autonomia dos governantes para tomarem decisões pertinentes à defesa dos interesses nacionais
É comum se deparar com o entendimento de que a globalização se refere ao incessante movimento do capital especulativo pelo mundo, sua crescente acumulação e a internacionalização da produção e do comércio. Inclui também a aproximação de países em blocos, o movimento migratório e os contatos entre cientistas e outros profissionais de diferentes nações, dentre outras particularidades. Sua ocorrência se deve à evolução dos meios de transporte, ao avanço dos recursos na área da comunicação e ao dinamismo do setor de processamento de dados.
Levando em conta a história, verifica-se que a globalização é um acontecimento bem antigo. Talvez o marco inicial se encontre entre os séculos quinze e dezessete apontado como o período das grandes navegações dedicadas à comercialização de muitos produtos e cujo acúmulo financeiro contribuiu decisivamente para o surgimento da primeira revolução industrial. Posteriormente emergiu a segunda revolução industrial e com ela ocorreu uma grande dinamização do comércio e o processo de urbanização. A partir da segunda metade do século anterior apareceu a terceira revolução industrial provocada pelo desenvolvimento tecnológico, com destaque para os setores da informática e da robótica e o irrompimento das alcunhadas empresas transnacionais. No século atual, surgiram a quarta e a quinta revolução industrial. A quarta mostra o aparecimento e o avanço da automação das fábricas, enquanto a quinta revela a inserção do ser humano junto às tecnologias automatizadas, a progressiva substituição da mão de obra humana no trabalho e a liberação dos profissionais para o exercício da atividade criativa.
Além dessas particularidades, a globalização, no momento atual, exibe outras características. O capital financeiro especulativo transita rapidamente pelo mundo, a concorrência entre os mercados aumenta de modo exponencial, as empresas transnacionais se disseminam, os blocos econômicos se mantêm apesar dos óbices estorvantes, a multipolaridade segue dominante e reina um compartilhamento cultural assimétrico.
A força da globalização é notória e invade todos os setores da vida em sociedade. Na área da educação, por exemplo, as escolas estão tendo que levar em conta o multiculturalismo resultante da presença de alunos oriundos de várias nações. Ele exige respeito ao modo de pensar e de se comportar de cada uma das etnias, bem como impõe a necessidade do aprendizado de línguas estrangeiras para aqueles que almejam completar seus estudos em outros países. No setor produtivo impera a divisão internacional do trabalho, ou seja, a fabricação de artefatos de forma partilhada. Assim sendo, e para ilustrar, no processo de manufatura de um carro o motor é fabricado em um país, o chassi é confeccionado em outro e a montagem é realizada num terceiro.
Uma área muito relevante que ela tem incidido é na política, especificamente a soberania nacional entendida como a autonomia dos governantes para tomarem decisões pertinentes à defesa dos interesses nacionais. Essa compreensão se mostra muito difícil de vigorar porquanto quase todos os países do planeta estão bastante atrelados entre si por força da assinatura de documentos internacionais, ou seja, são signatários de muitas dezenas de acordos, tratados, convenções e protocolos bilaterais e multilaterais que condicionam ostensivamente sua conduta tanto no âmbito interno quanto no externo. Assim sendo, o papel de agentes do desenvolvimento econômico e a função de garantir a coesão e a integração social e nacional se encontram em processo de fragilização.
Não é incomum encontrar nos meios de comunicação e em artigos acadêmicos a ideia de que vem ocorrendo o fenômeno da desglobalização, ou seja, a retração da permuta internacional provocada recentemente pela pandemia do coronavírus e pela guerra na Ucrânia. As seguintes ocorrências anteriores são mencionadas para justificá-la: Brexit no Reino Unido, movimentos separatistas europeus, presença de partidos nacionalistas, crise financeira de 2008, encolhimento das relações econômicas entre Mercosul e União Europeia, dificuldades de negociações na Área de Livre Comércio das Américas, saída dos Estados Unidos do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica e proliferação do sentimento de abalo na identidade cultural de cada país.
Vale ressaltar que o prefixo `des´ caso empregado de maneira literal como negação, reversão e cessação não se mostra adequado para caracterizá-la, porquanto, tal como já foi dito anteriormente sua disseminação é por demais notória e persistente, embora seja admissível um direcionamento mais regionalizado cujos exemplos próximos são a tentativa de reativação do Mercosul e o desenvolto retorno do Brasil na Comissão Econômica Para a América Latina e Caribe. O que estes acontecimentos revelam é a grande dificuldade enfrentada por ela atualmente para garantir o dinamismo de seu percurso tal como vinha ocorrendo no passado. Junte-se a este conjunto o visível esmorecimento de seu traço básico neoliberal, haja vista que auspiciosamente o neoliberalismo se encontra em processo de acelerada decadência e uma nova superestrutura ideológica do capitalismo está entrando em seu lugar. Ela estabelece a reorganização da economia, a imputação do papel de agente orientador da sociedade para o Estado, a transposição da retórica do livre mercado e o resgate do público sobre do privado.
Na área militar a globalização também possui uma história que é assentada no movimento dos exércitos em vários recantos do mundo. Na pré-modernidade aconteceu a subjugação do Chipre à Assíria, a invasão da Grécia pela Pérsia, o avanço chinês sobre os países da Ásia Central e a inclusão da Eurásia no reino mongol. Na modernidade ocorreu a conquista do império inca pelos espanhóis, a anexação das Filipinas pelos Estados Unidos, as duas guerras mundiais e a manifestação do colonialismo com os britânicos na Índia e a França na África, sustentado por grandes exércitos comandados por oficiais ingleses e franceses. No suposto e alcunhado período pós-moderno, a partir do fim da guerra fria, exércitos das grandes potências têm perambulado por vários países onde ocorrem combates e os das potências subalternas se encontram em missões de conciliação comandadas pela ONU em locais dominados pelo conflito.
Tal histórico é consoante ao significado da globalização nas Forças Armadas o qual diz respeito ao processo que envolve uma progressiva extensão e uma gradual intensidade do intercâmbio militar entre as unidades políticas do planeta. A expressão essencial desse significado aponta para a centralização do poder estratégico decorrente da concretização de alianças. Como exemplos podem ser citados o Pacto de Varsóvia criado em 1955 e composto pelas repúblicas socialistas da Europa Central e Oriental e a Organização do Tratado do Atlântico Norte que emergiu em 1949 integrado pelos Estados Unidos e algumas dezenas de países europeus a qual se empoderou bastante por causa da guerra na Ucrânia. Com relevância menor cabe incluir o Diálogo de Segurança Quadrilateral composto por Estados Unidos, Japão, Austrália e Índia. Também é ilustrativo as denominadas operações conjuntas e combinadas de Forças Multinacionais como a realizada pela França e Mali em 2021 a qual foi suspensa devido a aplicação de um golpe de Estado, a concretizada pela Índia, China e Rússia atualmente.
Outrossim, tem surgido diversas implicações para as Forças Armadas estatais. Uma das mais sérias relaciona-se à corrosão da sua importância, pois como é sabido existe uma significativa quantidade de grupos privados de segurança que oferecem os mesmos serviços que elas prestam. Apenas para ilustrar, citem-se o Dyn Corp norte americano que concedeu suporte aéreo e treinamento às forças iraquianas, o sul africano Executive Outcomes que atuou a serviço do Movimento Popular de Libertação de Angola e o russo Wagner que combateu terroristas em Burkina Fasso e se encontra em ação na Ucrânia. Vale destacar que muitos governantes favoráveis ao neoliberalismo, caracterizador da globalização atual, preferem contratar tais grupos porque eles são menos numerosos, mais ágeis, menos dispendiosas e mais eficientes que as Forças Armadas convencionais.
Esta assolação da relevância se mostra também naqueles Estados independentes que preferiram abrir mão de instituições bélicas próprias. Tais são os casos de Mônaco, Ilhas Marshall e Nauru dentre outros, que por acordos firmados recebem proteção militar de outros países, respectivamente da França, Estados Unidos e Austrália. Há, também aqueles que preferem possuir apenas um aparato policial ou estabelecimentos castrenses bastante reduzidos cujos exemplos são a Islândia que é amparada pela Noruega e Dinamarca e Andorra que é dependente da Espanha.
As Forças de Manutenção de Paz das Nações Unidas, os alcunhados capacetes azuis, existentes desde há muito tempo, são aparatos militares multinacionais a serviço deste órgão mundial. Elas foram criadas para atuar em zonas internacionais de conflito sem o emprego de armas, principalmente na manutenção do cessar fogo e retirada de tropas. Aproximadamente cento e trinta países contribuem com milhares de voluntários e quase setenta operações ao redor do mundo já foram realizadas ou continuam em andamento. Apesar do relevante serviço por elas prestado e do prestígio que desfrutam em todas as nações do planeta, tais forças contribuem para o deperecimento do comando dos países participantes sobre uma significativa parcela de seus militares. Isto também se manifesta nos casos onde ocorre a centralização do poder estratégico anteriormente mencionada. Ademais seus integrantes são instados a praticar ações conciliatórias contrárias ao comportamento guerreiro desenvolvido em suas nações de origem.
Em relação aos equipamentos bélicos, sabe-se que desde fins do século dezenove a produção de material de combate era considerada um ativo nacional apoiado pelos governos nacionais. Entretanto, no período atual, a indústria de segurança sofreu sérias modificações. Os elevados custos associados ao processo produtivo consolidaram a presença de comunidades colaborativas de segurança internacional, inclusive para minimizar os riscos associados às ações de compra. Ocorreu então uma concentração em determinados países, tais como Estados Unidos, França, Alemanha e Rússia, da capacidade de forjar armamentos. Além disso, passou a vigorar o estabelecimento de parcerias nestas áreas. É o caso dos Estados Unidos e Índia que possuem um acordo para a fabricação de caças de combate. É o caso também da Aliança Aukus integrada pelos Estados Unidos, Austrália e Reino Unido voltada para os armamentos hipersônicos e tecnologia cibernética. É o caso ainda dos países europeus cuja Agência Europeia de Defesa, criada em 2004 tem se dedicado a ajudar os seus membros a desenvolver os respectivos recursos militares bem como os auxiliarem no desenvolvimento das capacidades conjuntas de defesa.
Para os países que não possuem fabricação nacional se instaurou uma situação de enorme dependência não só para a compra de material bélico, mas para a aquisição de peças de reposição, transferência de tecnologia e licenciamento da atividade de coprodução. Assim sendo acontece um evidente comprometimento da capacidade das Forças Armadas autóctones em relação às suas ações de defesa.
Talvez a área mais relevante das Forças Armadas impactada pela globalização seja a da cultura de seus integrantes. O afeto patriótico, isto é, o sentimento de orgulho, de amor e de devoção ao país, que é importantíssimo numa situação de combate, tem se mostrado bastante afetado principalmente por causa da presença de majoritários contingentes multirraciais em detrimento de cidadãos locais. Não é difícil perceber que é muito áspera a tarefa de cultivá-lo num agrupamento composto por pessoas originárias de inúmeras terras natais. Na França se encontra a Légion Étrangère composta por soldados oriundos de dezenas de países, em Israel há nas fileiras drusos, circassianos, beduínos e etíopes e na Nigéria se encontram os povos Hausa, Yoruba, Igbo, Fulani, Ijaw, Kanuri, Ibibio, Tiv e Edo.
O traço neoliberal, ainda marcante da globalização, contribuiu para a troca da conscrição pelo voluntariado atualmente adotado por inúmeros países. Através dela o recrutamento dos interessados passou a levar em conta as peculiaridades do mercado ocupacional civil para conseguir atrair o contingente necessário. Por sua vez, as pessoas passaram a encarar as Forças Armadas apenas como uma opção de trabalho entre as demais, e vista pelo ângulo do individualismo, da auto-realização, dos interesses e aspirações pessoais que são dissonantes do esprit de corps próprios das Forças Armadas. Assim sendo os princípios básicos e tradicionais das instituições castrenses, isto é, a hierarquia ou as relações estáveis de subordinação e ascendência e a disciplina ou a imediata obediência às ordens oriundas dos escalões superiores mais o acatamento irrestrito às leis, entraram em processo de esmorecimento possibilitando a emergência do uso de métodos participativos de gestão e de liderança da tropa. Tal síncope tem sido agravada pela forte presença da sociedade do conhecimento que permite às pessoas receberem múltiplas informações diárias advindas de vários recantos do mundo, as quais colaboram muito para o questionamento dos valores convencionais, inclusive nas organizações bélicas que insistem em mantê-los inalterados.
Antônio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)
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