Golpe de toga
A demolição do edifício político abriu espaço para tentações fascistas. Entre o velho que se dissolveu e o novo que ainda não se impôs emergiram formas mórbidas, como diria Gramsci. Pela primeira vez na história brasileira uma candidatura fascista apresentou altos índices de intenção de voto em 2017
Golpe militar, de Estado ou de mão. Para quem achava que havia visto de tudo, eis que o Brasil nos lembrou de mais um.
Desde a tentativa de derrubar Hugo Chávez na Venezuela em 2002 e do alegado sequestro do presidente do Haiti, Jean Aristide, por militares norte-americanos dois anos depois, a América Latina parecia ingressar pela primeira vez numa longa jornada democrática.
A técnica do golpe de Estado teorizada por Curzio Malaparte nos anos 1930 foi deixada de lado por um tempo. Afinal, o lockout e as ocupações de prédios públicos lideradas por prefeitos da região da Media Luna boliviana em 2008 não surtiram o efeito desejado. O mesmo se pode dizer do ataque com granadas contra a comitiva do presidente do Equador em 2010 ou do recente ataque de helicóptero ao Supremo Tribunal da Venezuela. Não significa que um golpe de força não possa se efetivar novamente, é claro…
Os golpes de farda vestiram a toga, colocaram em segundo plano o jargão anticomunista e adotaram o combate à corrupção… dos outros. E na ausência de presidentes corrompidos bastava uma iniciativa do Ministério Público, como em Honduras em 2009, ou do Parlamento, como em 2012 no Paraguai ou em 2016 no Brasil. Por que a mudança para o golpe soft, especificamente num país que jamais teve um Poder Judiciário sobressalente como o Brasil?
A história
O professor da USP Oliveiros Ferreira escreveu há mais de quinze anos sobre a diferença entre um partido fardado, que periodicamente se arvorava em intérprete da Constituição e pressionava a cúpula para destituir o governo, e o estabelecimento militar, que engloba a organização permanente das Forças Armadas, sua hierarquia, disciplina e valores fundamentais.1
Aquele “partido” nunca foi uma organização permanente, pois sua existência foi intermitente e se evidenciou em momentos de “desencontro com o governo”. Quando isso acontecia, o estabelecimento militar se via compelido a assumir parte do programa da parcela politizada dos oficiais.
O problema de uma análise assim é passar rápido demais pela história, afinal por longo tempo o Exército nacional foi uma tropa mal equipada, concorrente da Guarda Nacional e de forças militares estaduais mais modernas.
Além disso, o “exército político” (como lembrava o historiador Edgard Carone) podia se dividir entre oficiais superiores e inferiores. Seus traços permaneceram até a ditadura militar e puderam ser encontrados no tenentismo, a mais violenta contestação dos fundamentos da ordem e que ameaçou cindir o Exército. Depois da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, custou muito para o general Góis Monteiro reincorporar os tenentes e reduzi-los ao seu papel meramente funcional.
O exército político não foi um poder moderador, pois não era inviolável e “irresponsável” como o imperador. O real poder moderador na política brasileira foi o das frações da classe dominante com maior peso econômico, capacidade de elaboração ideológica e meios de comunicação para difundir numa crescente classe média os seus valores.
A razão de os militares se atribuírem um papel especial derivou de sua convivência num meio social interno norteado por valores próprios que se identificavam com a nação. Além do esprit de corps cultivado em anos de convivência segregada, seu prestígio dependia não do poder econômico ou político, mas da honra, uma noção oposta à dinâmica do mercado.
Oliveiros Ferreira argumenta que Castelo Branco aluiu as bases do partido fardado quando impôs o limite de permanência de dois anos num posto para os generais. Góis Monteiro ficara catorze anos no seu posto, mas doravante os generais só puderam atuar em cada degrau do generalato por dois anos (Brigada, Divisão e Exército), totalizando apenas seis. Isso impediu que qualquer general exercesse o papel de líder político dos oficiais.2
Novo ordenamento jurídico
A Constituição de 1988 manteve a tutela militar, mas doravante o Exército não mais se imiscuiu na vida política, salvo para pressionar contra a revisão da Lei de Anistia.
Isso se deu por várias razões, sendo uma delas a de que, desde o governo Jimmy Carter (1977-1981), os Estados Unidos aderiram ao consenso ocidental em torno da necessidade de governos democráticos, pois isso reforçava seus argumentos contra a União Soviética.
O poder moderador não desapareceu. Ele se reforçou diante do desequilíbrio que a democracia de massas desde 1945 podia criar. Em 1930, votaram 5% da população e, em 1960, eram 18%, segundo José Murilo de Carvalho.3 O incremento do eleitorado dava mais poder à maioria da população. As agremiações de corte liberal passaram a ter de convencer os pobres a votar contra si mesmos, o que, convenhamos, era uma tarefa inglória. Só podiam recorrer aos quartéis.
As crises se sucederam até 1964 sem que pudessem ter uma saída constitucional. A legitimidade do presidente depende do apoio popular direto, mas ele precisa também contar com o respaldo das classes dominantes e de cliques que disputam a direção intelectual e moral da sociedade. Elas têm um poder desestabilizador.
Em 2014 eram 71% os brasileiros que podiam votar, e a queda da presidenta Dilma Rousseff não podia ser feita sem alguma justificativa legal. Manipulações fiscais corriqueiras serviram ao propósito, enquanto os meios de comunicação alardeavam a perda de apoio no Congresso e na sociedade como suficiente para depô-la. Acontece que o país não é parlamentarista e a lei não prevê a revogação do mandato por perda da confiança do Congresso ou baixa popularidade. Não basta perder as condições de governabilidade para retirar um chefe do Executivo. É preciso que ela ou ele (e não assessores seus) tenham cometido um crime. Para fazer o contrário, paga-se o preço de uma grave crise institucional que afeta toda a cadeia de autoridade do país.
Partido da toga
O Supremo Tribunal Federal (STF) jamais teve uma disputa política relevante com o Poder Executivo (a exceção foi o governo Floriano Peixoto, que ameaçou prender os juízes). O Tribunal de Contas recusou a prestação de Getúlio Vargas, mas logo em seguida o presidente decretou o Estado Novo… Na Constituição de 1946, o procurador-geral da República era demissível ad nutum (por ato exclusivo da autoridade administrativa competente).
Depois de 1988, a Procuradoria adquiriu mais poderes. Consta que o jurista Sepúlveda Pertence declarou: “Não sou Golbery, mas também criei um monstro”. Referia-se à suposta frase daquele militar a respeito do Serviço Nacional de Informações, um dos órgãos responsáveis por torturas e desaparecimentos durante a ditadura militar.
Mesmo assim, o artigo 52 permite ao Senado, “por maioria absoluta e voto secreto, a exoneração, de ofício, do Procurador-Geral da República antes do término de seu mandato”. O impedimento de ministros do STF também é previsto. Portanto, não é a Constituição que alimenta o monstro, e sim algo que está além dos meros instrumentos técnicos do poder: a hegemonia.
O partido togado não se confunde com o Poder Judiciário, e é preferível não chamá-lo de “partido da justiça”, pois a justiça é a última coisa que ele representa: esta deveria ser cega, enquanto aquele manteve os olhos bem abertos.
O partido togado não tem a unidade que tinham as Forças Armadas. Estas, mesmo quando se dividiam, restauravam sua unidade mediante expurgos no “campo de batalha”. Era uma imposição da lógica da guerra. Além disso, os membros do Judiciário têm uma origem social e experiências comuns, mas nada parecido ao espírito de caserna dos oficiais.
“Partido” é, para Gramsci, a resultante do grau de homogeneidade e autoconsciência atingido por um grupo social. É a fase organizada das relações de força estabelecidas na sociedade. Um grupo estabelece alianças, dirige setores subalternos e reelabora os valores do seu meio social interno numa linguagem universalista. Explicando melhor: vestem com a capa da universalidade os seus interesses egoístas.
A força-tarefa de Curitiba que envolveu policiais federais, procuradores e juízes logrou conduzir os tribunais superiores e ser copiada por decisões de juízes de primeira instância por todo o país. No auge do golpe de 2016, assistia-se à tentativa de anulação de eleições municipais e à cassação e prisão de vereadores e prefeitos Brasil afora.
A construção dessa direção política não se deu a partir do nada. Foi uma disputa de liderança no interior da hegemonia que as classes dominantes jamais perderam. É como se mudasse o grupo que comanda um condomínio luxuoso. Esse comando se fez valer depois de uma lenta guerra de posições no aparelho de Estado para cercar o Poder Executivo e o próprio Parlamento. E também na sociedade civil, com a troca de favores com os empresários de comunicação. Finalmente passou à guerra de movimento com métodos policialescos espalhafatosos.
Ainda que as ideias de Gramsci não se prestem a uma aplicação, e sim a uma inspiração para que seus conceitos sejam reelaborados na história, é preciso lembrar com ele que “a política deve, novamente, ser superior à arte militar e só a política cria a possibilidade da manobra e do movimento”.4
Saídas da crise
As crises de regime no Brasil sempre levaram a uma posterior reacomodação que moderava a ruptura inicial. Os “paulistas” perderam a guerra de 1932, mas recalibraram a Revolução de 1930 segundo seus interesses. O que se iniciou em 2013 foi uma combinação de crises econômica, social, sucessória e (menos lembrada) cultural. Seus traços foram notados na vivência cotidiana e numa incerteza expressa no cinema, na religiosidade e na interdição agressiva da troca de ideias nas redes sociais. Seu desfecho passou a depender do quanto as forças progressistas conseguiriam resistir à ruptura que a nova direita pretendeu contrapor ao pacto constitucional de 1988.
Só depois disso seria possível retomar algum avanço e recolocar na pauta aquilo que o PT foi incapaz de propor: a mudança das bases tributárias, que perpetuaram uma abissal desigualdade social e uma compreensão do que é o Estado capitalista (particularmente na periferia).
O republicanismo dos governos petistas nunca teve nada de republicano. Ao se dobrarem às corporações politizadas do Estado e não exercerem os direitos do Executivo previstos em lei, eles não cumpriram o mandato que a população lhes ofereceu. Igualmente, a crença no papel técnico do Estado como indutor de desenvolvimento associado a grupos empresariais ignora que nada ali é neutro. Esses erros aumentaram a capacidade de manobra do partido togado para destruir os partidos e políticos tradicionais.
A formação de um mercado interno de massas era apenas a primeira fase da Revolução Brasileira preconizada por Caio Prado Júnior. A ausência de transformações estruturais na economia não lhe conferiu permanência e, por fim, o partido nem sequer esboçou uma etapa superior: a construção de um Estado de bem-estar porque isso exigia a inversão da estrutura tributária do país.
Outros setores da esquerda não podiam alegar, no entanto, que o PT os proibiu de fazer o trabalho de base que esse partido abandonara. Muito menos que os governos petistas amenizaram a luta de classes. O segundo governo Lula foi acompanhado por um ascenso das greves.
Fascismo
A demolição do edifício político abriu espaço para tentações fascistas. Entre o velho que se dissolveu e o novo que ainda não se impôs emergiram formas mórbidas, como diria Gramsci. Pela primeira vez na história brasileira uma candidatura fascista apresentou altos índices de intenção de voto em 2017. Não se iludiram os mais conscientes – Jair Bolsonaro não foi moderado por nenhuma instituição conservadora: nem a Igreja Católica, que ele trocou pelo apoio evangélico, nem o Exército, de onde ele saiu sem galgar um posto na alta oficialidade. Seu discurso em defesa da tortura não podia ser oficialmente o da instituição que ele dizia representar.
A diferença crucial entre o Brasil e nações do Cone Sul com urbanização mais antiga, como Argentina e Uruguai, foi que o país dispôs de um estoque perene de gente “descartável”. Isso explica por que a ditadura naqueles países causou mais indignação depois de sua queda e levou à punição de alguns dos assassinos e torturadores.
No Brasil sempre houve uma população pronta para morrer nas batidas policiais em horas escuras ou não. O fim da ditadura teve outro significado para os brasileiros, acostumados a uma guerra civil permanente. A tortura não terminou, tampouco os desaparecimentos. Na longa duração do nosso sofrimento, a ditadura jamais acaba. Ela é a expressão do genocídio de ex-escravizados, que trouxeram a marca da perseguição na própria pele.
A correlação entre a escravidão e o “regime militar” não foi casual. Eventualmente, os fanáticos da polícia política eram lotados no andar de cima para usar sua expertise em tortura contra “prisioneiros políticos”, a mesma que treinaram cotidianamente contra negros e pobres. A esquerda não percebeu que precisava fazer do fascismo o seu principal inimigo, ainda que ele parecesse não possuir apoio eleitoral suficiente.
As brechas no partido togado
Poderia esse “partido”, porém, assumir o poder depois da queda do estamento político? Ele não conseguiria usar a técnica do golpe de Estado clássica. O desenlace desse tipo de golpe é sempre uma operação militar, e juízes ordenam operações policiais, mas não comandam tropas. Eles precisariam assumir o poder dentro de uma legalidade aparente. E, se assumissem o poder, o fariam como um simples partido ordinário, sem o encanto que produziu sua direção intelectual e moral na sociedade.
Além disso, o tipo de mudança que ele engendra corrói suas próprias bases “morais”. A constitucionalização dos interesses do capital levou à decomposição dos próprios aparatos de Estado ligados ao partido justiceiro. O limite de gastos públicos colocou em risco operações investigatórias e até a emissão de passaportes.
Uma mobilização contínua “contra a corrupção” também cansou a classe média. O moralismo era indissociável do seu ódio ao PT, e ela guardou as panelas. Em alguns meses de golpe, os aliados do partido togado na mídia e no próprio STF se dividiram acerca dos “excessos” dos procuradores, como se eles não ocorressem antes. Alusões a ganhos inexplicáveis com palestras em empresas colocaram sob suspeita a natureza impoluta de alguns.
No passado, as Forças Armadas colocaram em prática um projeto que julgavam nacional, mas era antipopular. Elas não visavam enfraquecer o Estado nem seu controle sobre o território.
O partido da toga não tem nenhum projeto nacional e muito menos uma agenda para o “povo”. Os militares retiraram o segundo termo do binômio nacional-popular e ficaram somente com o primeiro. Os novos interventores abandonaram ambos.
*Lincoln Secco é professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo e autor do livro História do PT (Ateliê Editorial, Cotia-SP, 2011).