Golpes democráticos
Nunca na história do voto universal na França uma eleição legislativa mobilizou tão pouca gente (mais de 56% de abstenção, contra 16% em 1978…). Esse placar pífio, no estilo norte-americano, concluiu uma campanha nacional quase ausente, com ritmo ditado por “casos” com frequência secundários.
Com a aura proveniente de uma eleição vencida com 3 milhões de votos a menos que sua adversária, o presidente Donald Trump escolheu a Arábia Saudita para denunciar a ausência de democracia… no Irã. Depois, em Miami, diante dos sobreviventes de uma operação militar fracassada montada em abril de 1961 pela CIA contra o governo de Fidel Castro, ele usou como pretexto a “liberdade do povo cubano” para endurecer as sanções norte-americanas contra a população da ilha.
Em matéria de celebração equivocada da democracia, o ciclo eleitoral francês que acaba de se encerrar não é tão burlesco quanto esses dois exemplos. No entanto, está bem próximo disso. De início, as primárias indicaram os candidatos dos dois partidos dominantes. Mas tanto um como o outro foram eliminados no primeiro turno por Emmanuel Macron, que soube alinhar palavras vazias, imagens bonitas e apoio dos meios de comunicação. Pelo fato de os eleitores lhe terem dado por rival no segundo turno uma candidata de extrema direita detestada por dois terços dos franceses, seu triunfo final estava assegurado. Faltava apenas acrescentar ao novo presidente, a fim de “lhe permitir governar”, uma maioria de deputados em grande parte desconhecidos, mas oriundos das classes superiores (nenhum trabalhador, 46 líderes empresariais) e que iriam dever tudo a ele. Por um milagre das formas de votação, a política neoliberal que este defende só tinha conseguido o aval de 44,02% dos votos dados no primeiro turno da eleição presidencial.1 Na Assembleia, ela poderá contar com quase 90% dos deputados.2
Nunca na história do voto universal na França uma eleição legislativa mobilizou tão pouca gente (mais de 56% de abstenção, contra 16% em 1978…). Esse placar pífio, no estilo norte-americano, concluiu uma campanha nacional quase ausente, com ritmo ditado por “casos” com frequência secundários. Watergates de pequeno calibre que os meios de comunicação retransmitiram até cansar como para se livrar da pecha de ter servido de trampolim ao novo presidente. Quando as questões políticas colocadas se resumem a um inventário comparado das transgressões pessoais dos eleitos, como se espantar com o fato de haver entre os deputados eleitos tantos novatos, a rigor dispostos a tirar a poeira das aparências menos reluzentes do sistema, mas pouco inclinados a contestar as escolhas econômicas estratégicas?3 Aquelas que eles abandonam aos cuidados do Executivo e da Comissão Europeia.
O tumulto seguido de um ligeiro mal-estar do qual foi vítima uma candidata monopolizou as ondas durante três dias, competindo com o reacender de um caso criminal datado de mais de trinta anos. Política europeia, crise da dívida grega, estado de emergência, envolvimento militar francês na África e no Oriente Médio: disso, em contrapartida, quase nada se falou. O que Pierre Bourdieu chamava de “política de despolitização e desmobilização” vem assim conquistar uma bela vitória, mas a batalha está apenas começando…
*Serge Halimi é diretor do Le Monde Diplomatique.