Governança ambiental na era das mudanças climáticas
O Brasil está com febre ainda mais alta. Falta governança ambiental e a devastação corre solta. Manifesta-se uma economia canibal, retirando condições vitais para a sobrevivência da espécie humana
A mudança climática é mais do que a temperatura em crescimento. É também o termômetro da febre da civilização. Mostra a anormalidade e o adoecimento continuado das condições naturais provocados pela hiperação nociva da sociedade humana, onde o homo se apresenta mais como hapien do que sapiens, ou seja, uma espécie mais predadora do que sábia.
O Brasil está com febre ainda mais alta. Falta governança ambiental e a devastação corre solta. A floresta amazônica registra perda de 1.000 km² por mês. Apesar de todo o conhecimento científico e ampla divulgação pela grande mídia, essa prática exploratória ilegal persiste. Manifesta-se uma economia canibal, retirando condições vitais para a sobrevivência da espécie humana e afetando profundamente o ecossistema que transporta água para grande parte do continente sul-americano.
Ao mesmo tempo as pesquisas indicam que mais de 80% dos brasileiros defendem a proteção da Amazônia. Não há de se negar o aumento da consciência pública sobre a necessidade de proteção do meio ambiente. Mas isso não garante, por si só, um adequado processo de gestão.
É preciso refletir e agir frente ao nosso estágio ineficaz de governança ambiental – compreendendo o porquê de sua ineficácia e das inconsistências democráticas.
Há um desequilíbrio na tripartição dos poderes, no que deveria ser uma democracia avançada, um Estado de Direito moderno. Apesar de plenas salvaguardas constitucionais, nota-se o evidente desequilíbrio entre Executivo, Legislativo e Judiciário, a falta de ações eficientes da Procuradoria-Geral da República e da Advocacia-Geral da União.
O estado da devastação ambiental aponta fortes interferências na governança. Predominam forças econômicas nocivas e predatórias, com força nos bastidores para influenciar as decisões do governo de plantão, que por sua vez exerce seu poder por meios pouco republicanos, com a distribuição de benesses, de nomeações e com a negociação de recursos em troca de apoio político.
Ao defender democracias avançadas, o filósofo francês Jacques Atalli vaticina: “Nesses tempos vindouros, menos longínquos do que se crê, o mercado e a democracia, no sentido em que nós o entendemos hoje, se tornarão conceitos ultrapassados, lembranças vagas, tão difíceis de compreender como o são hoje o canibalismo ou os sacrifícios humanos”.
O Brasil necessita de democracia verdadeira, íntegra, com a essência da igualdade que impulsionou a Constituição Cidadã de 1988. Essa democracia minada pelo canibalismo econômico que vivemos hoje não retrata o interesse público, não retrata o desejo de mais de 80% da população que se manifesta pela proteção da Amazônia.
Certamente Atalli não questiona a alma dos valores democráticos, mas sim a sua práxis e os valores inerentes à boa governança, idealizando sua potencialização em um estado de hiperdemocracia: “O bem comum da humanidade não será a grandeza, a riqueza ou mesmo a felicidade, mas a proteção do conjunto dos elementos que tornam a vida possível e digna: clima, ar, água, liberdade, democracia, culturas, línguas, saberes…”.
A hiperdemocracia anunciada por Atalli mostra a possibilidade cultural de uma transição para uma democracia ambiental concreta, real, que não ocorrerá sem fortes mecanismos de observação e exigência social.
Não importa o perfil de governos que o Brasil venha a ter, pois as forças econômicas canibais que atuam nos bastidores ainda estarão lá. Governos negacionistas como o atual são terreno fértil para essas distorções.
Para além da governança e de um Estado de lei e de ordem, o lucro ambicioso que faz girar o modelo do business as usual, dos negócios como sempre foram, alimentará a dança dos predadores, a coreografia do ganho a qualquer custo, soprando canções sedutoras aos ouvidos do Executivo e do Legislativo. A economia canibal alimenta o agronegócio predador, a mineração ambiciosa, as derrubadas das matas e pretende a perenidade dos combustíveis fósseis.
Importante ressaltar que para este coro negacionista não há amanhã, não há o outro, não há generosidade geracional. Assemelham-se àqueles que se entregam ao porre do dia, onde a ressaca ou o apocalipse ambiental não encontram espaço.
É preciso construir caminhos para fazer valer os direitos do ambiente e da maioria da população brasileira. Precisamos construir pontes para o futuro, de forma a criar contrapoderes cidadãos sobre esSa falta de conectividade que assola nossa governança ambiental e retira qualquer expectativa de futuro seguro.
Observar a governança ambiental do Brasil é fundamental. Precisamos identificar as inconsistências e superá-las, a partir dos fatores de essência traduzidos em normativas e em regramento constitucional, que deram vida ao Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e consolidaram sua estruturação nos primórdios da governança ambiental do Brasil.
Este é o nosso espírito do tempo, nosso zeitgeist, como dizia Hegel. Nesta fase de reestruturação da governança ambiental do Brasil, no contexto da emergência climática do Antropoceno, será exigida a máxima eficácia do Sistema Nacional do Meio Ambiente e de um conjunto de fatores econômicos e sociais que possam estruturar meios para avanços sociais e de governança.
É preciso enfrentar os desafios do clima com estruturas para a sustentabilidade, estabelecendo pontes para um futuro seguro. Isso só será possível com exigência social que possibilite, de forma permanente, um modelo de governança ambiental democrático, transparente e eficiente.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).