Grécia, a grande liquidação!
Com uma arma na cabeça, em 2015 Atenas capitulou diante das exigências de seus “parceiros” europeus. Cada vez mais, suas decisões orçamentárias e fiscais são orientadas pelo acordo assinado. E o programa de privatizações imposto à Grécia orquestra a maior transferência de propriedade jamais realizada na União EuropeiaNiels Kadritzke
Um estudo do Transnational Institute (TNI) sobre a “indústria da privatização na Europa”, publicado em fevereiro de 2016, chegou à conclusão de que “não existe nenhuma prova de que as empresas privatizadas fornecem serviços mais eficazes”. Por outro lado, a onda de privatizações derrubou os salários, degradou as condições de trabalho e acentuou as desigualdades de renda.1
Nesse sentido, a Grécia é um caso emblemático. Na crise provocada pela dívida, o país se viu obrigado por seus credores a vender a preço de banana o maior número possível de empresas públicas e mistas, com o único objetivo de honrar o pagamento desse passivo. A prática de leiloar bens públicos, que são da coletividade, é um dos aspectos mais absurdos dos “planos de ajuda” impostos desde 2010 pela Troika,2 que induziram a economia grega a uma recessão interminável. Exigir de um Estado em crise que ele privatize suas empresas acarreta necessariamente a liquidação delas, observam os autores do estudo. A privatização reúne todos os critérios de um abuso de confiança.
Essa constatação se impõe independentemente da ideia que se faz das vantagens ou inconveniências de um setor público forte. Na Grécia, este último sofreu com episódios de mau funcionamento incontestáveis, dos quais os adeptos da privatização seguem tirando argumentos. Algumas empresas estatais de fato não forneciam nenhum bem ou serviço indispensável à população (como eletricidade ou transporte), mas tinham por vocação essencial prover aos partidários desse ou daquele governo cargos bem remunerados, estáveis e pouco exigentes – à custa do cliente e do contribuinte. Isso explica por que a passagem dessas empresas para o mercado não gerou descontentamento.
Para avaliar, do ponto de vista liberal, a eficácia de uma privatização, os dirigentes devem responder a três questões: os preços são proporcionais à renda da qual o Estado abre mão ao vender seu bem? Que garantias o Estado tem quanto aos investimentos que a operação supostamente vai gerar? Qual é a margem de intervenção do Estado sobre as empresas privatizadas em âmbitos estrategicamente vitais para os interesses do país?
O cliente é o rei
Essas questões se colocam de forma particularmente aguda no caso dos dois maiores projetos de privatização do país: a venda de 67% das ações da empresa do Porto de Pireu (OLP) ao grupo chinês Chinese Ocean Shipping Company (Cosco)3 e a concessão de catorze aeroportos a um consórcio privado dominado pelo grupo alemão Fraport.
A aquisição do Pireu pelo Cosco, empresa estatal chinesa, se desenrolou em virtude de um procedimento que caracteriza quase todos os leilões das empresas gregas: as ofertas foram dadas por apenas um candidato. O negócio se concluiu em benefício de uma potência monopolística que poderia ditar ao vendedor não só o preço da transação, mas também uma série de condições. Essa operação conferiu aos chineses um controle absoluto sobre o maior porto grego, pois uma filial do Cosco já gerenciava, desde 2008, dois dos três terminais de contêineres do Pireu graças a uma confortável concessão de 35 anos.
Para adquirir os dois terços das ações do OLP, o Cosco desembolsou 368,5 milhões de euros, tarifa negociada com total opacidade. O Taiped (fundo que supervisiona as privatizações gregas) julgou insuficiente a primeira oferta do grupo chinês, mas o montante do suplemento concedido foi mantido em segredo, e o “preço justo” a ser pago pela empresa foi definido por consultorias especializadas. O Taiped se limitou a estimar o valor total da transação em 1,5 bilhão de euros, número obtido por um cálculo altamente acrobático que consiste em adicionar ao preço de venda as receitas fiscais que a empresa um dia poderia gerar, assim como os investimentos de 350 milhões de euros prometidos pelo comprador.
Esse cálculo é duplamente equivocado. Antes da operação de venda, a filial do Cosco que reina nos dois terminais de contêineres pagava ao OLP um direito de concessão de 35 milhões de euros por ano. Ora, dois terços desse valor serão atualmente pagos pelo proprietário majoritário da OLP. Em outras palavras, o capital passa do bolso esquerdo para o bolso direito do Cosco. O Estado grego está se privando, assim, dos aluguéis a receber no período de concessão dos terminais, ou seja, ao menos 700 milhões de euros, os quais deveriam ser subtraídos do valor total da privatização do Pireu.
A soma do Taiped explicita também outro erro, ainda mais grosseiro: ela leva em conta os 115 milhões de euros de subsídios acordados pela União Europeia a um projeto de expansão do terminal de navios, pacote que não está condicionado à privatização do porto. Além disso, nada garante que o Cosco realizará os investimentos prometidos, já que o ato de venda contém uma cláusula que proíbe, durante cinco anos, qualquer multa ou sanção em caso de desrespeito aos compromissos firmados.4
Outra operação de privatização levanta numerosas questões. Em associação com o oligarca grego Dimitris Copelouzosi,5 a empresa alemã Fraport acaba de adquirir, por quarenta anos – com opção de estender para cinquenta –, os direitos de exploração e ampliação de catorze aeroportos. Ao 1,23 bilhão de euros depositados na assinatura do contrato se somarão anualmente direitos de concessão e impostos avaliados em um total de 8 bilhões de euros em quarenta anos.
Os detratores dessa venda propõem outro cálculo. Os catorze aeroportos geram, hoje, um benefício anual de 150 milhões de euros, ou 6 bilhões durante a duração da concessão. Mas essa renda tende a aumentar consideravelmente de acordo com a própria Fraport, que enxerga o potencial crescimento dos voos comerciais para ilhas turísticas como Rodes, Kos, Mykonos, Santorini e Corfu (o tráfego aéreo que liga o continente a esses destinos vem crescendo 20% ao ano nos dois últimos anos). O diretor financeiro da Fraport, Matthias Zieschang, estima em 100 milhões de euros anuais os lucros suplementares que seu grupo poderá absorver a partir de 2017, “unicamente graças aos aeroportos gregos”.6
No início, três candidatos postularam propostas – diversidade excepcional para uma privatização grega. É possível, dessa forma, acreditar no dono da Fraport, Stefan Schulte, quando ele afirma que seu grupo “ganhou de uma grande concorrência graças à qualidade de seus projetos”?
O procedimento desperta ao menos duas curiosidades que chamam atenção. Em primeiro lugar, essa decisão surpreendente de ceder uma rede aeroportuária que gera dinheiro. Até o início de 2013, o Estado parecia proceder de outra forma: os 37 aeroportos do país eram repartidos em dois lotes, que reagrupavam as instalações beneficiárias e as deficitárias. Tratava-se de pressionar o comprador a não se contentar com os benefícios dos destinos em voga e reinvestir uma parte do lucro no desenvolvimento dos aeroportos piores, localizados nas ilhas mais afastadas. Esse esquema equilibrado foi categoricamente recusado pela Troika, que insistiu em um “pacote” privatizável apenas com as peças mais rentáveis.
A tentação é grande de supor que a potência mais influente da Troika, a Alemanha, não estava alheia a essa decisão. E a suspeita se reforça quando outra bizarrice se revela por meio do dossiê apresentado pela Fraport no projeto: no procedimento de propostas, o Taiped escolheu como “conselheiro técnico” a Lufthansa Consulting, filial da empresa aérea alemã com grande interesse na Fraport – de quem é coacionista em 8,45%. Em resumo, aí estão todos os ingredientes de um conflito de interesses flagrante, que viola todas as regras europeias em processos de apresentação de propostas – sem falar na infração da decência mais elementar.
Os autores do estudo do Transnational Institute chegaram à mesma conclusão. E ressaltam outro detalhe insólito: a Fraport pertence majoritariamente ao Land de Hesse e à cidade de Frankfurt, que juntos detêm 51,3% de suas ações. A maior parte dos lucros acumulados graças à liquidação de bens públicos da Grécia alimentará, portanto, as receitas coletivas locais na Alemanha, país que coincidentemente é o principal credor de Atenas. Se há ou não caracterização de pilhagem, o resultado é o mesmo: o Estado grego se encontra privado de uma fonte de recursos a longo prazo que seria muito mais útil à estabilização de suas finanças que o produto imediato de uma privatização com desconto, rapidamente absorvida pela dívida.
De seu lado, a Fraport está decidida a maximizar os ganhos de sua aposta mediterrânea. Ela parte não apenas de um crescimento contínuo do número de passageiros, mas também de uma “extensão e otimização consequentes de suas interfaces comerciais”, a fim de “gerar rapidamente benefícios suplementares”, como aposta Zieschang.
Para rodar a máquina de dinheiro, a concessionária cuidou de garantir condições ótimas. A Fraport se isenta não apenas do pagamento de impostos imobiliários e locais, mas também de qualquer outro tipo de obrigação financeira básica. Ela pode, por exemplo, com uma canetada, anular arrendamentos e contratos assinados pelos ex-administradores dos catorze aeroportos e redistribuir as licenças de exploração aos parceiros de sua escolha sem gastar um centavo de indenização aos restaurantes, comerciantes e fornecedores. Isso ficaria a cargo do Estado grego.
E não é tudo. O poder público grego terá a obrigação de indenizar também os funcionários demitidos pela Fraport, responder pelas vítimas de acidentes de trabalho, mesmo que não haja dúvida sobre a responsabilidade da empresa, e financiar as prerrogativas ambientais necessárias para os trabalhos de ampliação dos aeroportos. Está previsto ainda que deverá arcar com os custos em caso de descobertas arqueológicas nos canteiros de obras.7
Esse uso ilimitado de fundos públicos para cobrir qualquer gasto da concessionária não representa apenas um cinismo dos mais escancarados: expressa uma contravenção em relação aos princípios de privatização definidos pela própria União Europeia. “A privatização de empresas públicas contribui para a redução de subvenções, transferências de fundos e garantias do Estado concedidas às empresas públicas”, declarou, em outubro de 2012, a Comissão Europeia para as ONGs que protestavam contra a privatização de estações de tratamento de água.
O caso da Fraport é um pouco diferente: a concessionária dos catorze aeroportos possui uma reserva quase ilimitada de subsídios, transferências de fundos e garantias por parte de um Estado grego enforcado, que não tem nenhuma palavra nas decisões que afetam um dos setores-chave da economia nacional – por exemplo, em relação aos impostos locais, necessários para muitas ilhas se desenvolverem.
Os advogados da operação Fraport fazem valer que a reforma de aeroportos velhos e pouco acolhedores – como os de Corfu e Santorini – exige investimentos que Atenas não pode se permitir. Mas outras soluções teriam sido possíveis. Os créditos do Banco Europeu de Investimento (BEI) poderiam ser usados para modernizar suas infraestruturas – em um investimento útil no tempo, pois asseguraria ao Estado a entrada regular de recursos e progresso constante.
No que se refere à estabilização sustentável das finanças públicas gregas, a operação Fraport representa com todas as evidências a pior das opções. Seria possível dizer o mesmo da maior parte das dezenove privatizações (gás, eletricidade, porto de Tessalônica…) previstas para esse país ainda em crise. A exceção parece ser o setor imobiliário do Estado, onde os investidores privados aparentam querer utilizar suas aquisições para fins um pouco menos práticos.
É equivocado deduzir que a conservação do setor público, como vinha funcionando antes, teria sido a solução ideal. Mas, entre as liquidações para predadores internacionais e a economia do clientelismo, certamente há uma terceira via.
Niels Kadritzke é jornalista.