Grupo de trabalho para instalar renda básica começa a se reunir no fim do mês
Eduardo Suplicy, deputado estadual de São Paulo pelo PT, escreveu há mais de vinte anos a lei que institui a renda básica de cidadania, e agora organiza grupo de trabalho para vê-la se tornar realidade; a primeira reunião ocorrerá ainda em março
No dia 8 de janeiro de 2004, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em seu primeiro mandato como presidente, sancionou a lei nº 10.835, um projeto do então senador Eduardo Suplicy, também do Partido dos Trabalhadores. Há mais de vinte anos, o Brasil passava a ter uma legislação de vanguarda, institucionalizando a renda básica universal para a população. Duas décadas se passaram, e a legislação ainda não foi devidamente colocada em prática. Como tantas outras aqui no Brasil, a lei que instituía a renda básica de cidadania “não pegou”.
Mesmo assim, Suplicy continua com esperança de que a lei vai deixar de ser só palavras no papel. Em seu livro PT, uma história (Cia. das Letras, 2022), o sociólogo Celso Rocha de Barros escreve que “muito pouca gente na história do mundo se apaixonaria tanto por uma ideia quanto Suplicy pela renda mínima”. Durante muito tempo, o deputado estadual por São Paulo parecia estar sozinho em sua paixão. Hoje, até o papa fala de renda básica.
No Brasil, o único município de acordo com a lei da renda básica de cidadania é Maricá, município na Grande Niterói, no Rio de Janeiro, onde pessoas em famílias com renda de até três salários mínimos recebem o equivalente a R$ 200 por mês em uma moeda social digital que pode ser utilizada em supermercados e farmácias da cidade. O benefício está disponível para qualquer um que more em Maricá há pelo menos três anos, e causa um impacto positivo de 25% no PIB do município.
A principal vantagem da renda básica de cidadania sobre outros projetos de combate à pobreza, na visão de Suplicy, é sua contribuição para a dignidade e a liberdade do ser humano. Citando o prêmio Nobel de Economia Amartya Sen, o ex-senador afirma que “desenvolvimento, se for para valer, deve significar um maior grau de liberdade para todos”. Liberdade não só para fazer o que quiser com seu dinheiro, mas para não precisar trabalhar em condições exploratórias e insalubres por salários menos-que-mínimos, para poder ter mais autonomia na vida que se quer viver.
No início do primeiro mandato de Lula, o presidente uniu quatro iniciativas de renda mínima (Bolsa Escola, Auxílio Gás, Bolsa Alimentação e Cartão Alimentação) em um único programa assistencial, o Bolsa Família. Alcançando mais de 21 milhões de famílias hoje, o projeto que tirou mais de 3,4 milhões de pessoas da pobreza extrema até 2017 foi encerrado por Jair Bolsonaro em 2021. Com um eufemismo educado, Suplicy diz que, durante os governos Temer e Bolsonaro, “não houve uma atenção forte para a erradicação da pobreza”. Muito além de uma falta de atenção, a extinção de políticas de distribuição de renda e mitigação de pobreza junto do caos pandêmico levaram a 10 milhões de pessoas a entrar na miséria durante o governo Bolsonaro.
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Em 2021, o STF decidiu que o governo deveria adotar o programa de renda básica de cidadania no Brasil a partir de 2022. Para obedecer à decisão do Supremo, a lei 14.601/2023 reinstituiu o Bolsa Família, que constituiria uma “etapa do processo gradual e progressivo de implementação da universalização da renda básica de cidadania”. No entanto, essa é a mesma etapa de vinte anos atrás. Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, não acha que essa lei seja suficiente. Em entrevista à Folha de S.Paulo, ele afirmou que “o Bolsa Família olha para a família. A lei da renda básica olha para o indivíduo”. Ferreira cogita entrar com uma reclamação de descumprimento da decisão se não houver mais ação da parte do governo para colocar em prática a lei em 2024.
Talvez isso não seja necessário. Suplicy sugeriu a Lula, em outubro de 2023, um grupo de trabalho para estudar e pensar como será a transição do Bolsa Família para uma política de renda básica universal que realmente respeite e faça valer a lei de 2004.
São 104 especialistas sugeridos por Suplicy para o grupo de trabalho sobre a renda básica de cidadania, incluindo ele mesmo. Os convidados incluem figuras da base do governo, como Bernard Appy, do Ministério da Fazenda, as deputadas federais Tabata Amaral (PSB) e Luiza Erundina (PSOL) e o senador Randolfe Rodrigues, até nomes ligados à filosofia e à defesa dos direitos humanos, como o Frei Betto, o padre Júlio Lancelotti e a professora da USP Marilena Chauí.
Entre os nomes sugeridos estão o professor Philippe van Parijs, talvez o pensador e defensor da renda mínima mais importante no cenário mundial, o economista Edmar Lisboa Bacha e o filósofo Roberto Mangabeira Unger, pioneiros ao propor a renda mínima no Brasil em 1978.
Ciro Gomes, que foi ministro de Lula à época da sanção da lei e a assinou, mas hoje se afastou do grupo do governo, também foi convidado para integrar o grupo de trabalho. De acordo com Suplicy, Ciro disse que poderia colaborar com o grupo em um encontro entre os dois em outubro de 2023.
O primeiro encontro do grupo de trabalho vai acontecer no dia 21 de março, na Assembleia Legislativa de São Paulo, com a presença dos ministros Alexandre Padilha, das relações institucionais, e Wellington Dias, do desenvolvimento e assistência social, e do secretário executivo do Conselhão, Paulo Pereira. Os integrantes do grupo de trabalho poderão participar presencialmente ou de forma virtual.
Na cerimônia de sanção da lei da renda básica de cidadania, o economista Celso Furtado escreveu que a legislação colocava o Brasil “na vanguarda daqueles que lutam pela construção de uma sociedade mais solidária”, afirmando que fomos um dos últimos países a abolir o trabalho escravo, mas que estaríamos entre os primeiros a instituir um sistema de solidariedade mais abrangente. Com vinte anos de atraso, o Brasil parece dar mais um passo nessa direção.
Eduardo Lima faz parte da equipe do Le Monde Diplomatique Brasil.