Guedes, o ilusionista
Aparentemente, o programa de enfrentamento à crise é robusto, alcançando cerca de 10,3% do PIB, mas na verdade ele é bem menor. Veja no mais recente artigo do Observatório da Economia Contemporânea
A julgar pela atitude do ministro Paulo Guedes que na última quinta-feira, dia 26 de março, no meio da manhã, caminhava no calçadão da praia de Ipanema, a crise sanitária e econômica pela qual passa o Brasil não merece atenção particular. Essa interpretação pode parecer descomedida, mas o exame detalhado das medidas econômicas tomadas para enfrentar a pandemia e seus desdobramentos parece comprová-la. A lógica que comanda a ação do Guedes é clara: a austeridade fiscal e o ajuste permanente expressos nas regras fiscais estruturais vigentes no Brasil devem ser relaxados, porque é inevitável, o mínimo possível. Aliás, é em torno dessa última postura que o ministro mistifica o esforço fiscal do governo, inclusive confundindo-o propositalmente com medidas de outra natureza, com intuito de criar uma ilusão sobre o tamanho e relevância do programa.
Aparentemente, o programa de enfrentamento à crise é robusto, alcançando cerca de 10,3% do PIB, mas na verdade ele é bem menor. Ademais uma das suas principais características é a lentidão. Várias das medidas anunciadas, sobretudo as que dependem de recursos fiscais, ainda sequer foram enviadas ao Congresso e as que foram lá aprovadas estão aguardando sanção do Executivo. Além do atraso, o critério central para julgar as medidas e seu impacto na economia é o efeito que produzem diretamente na manutenção ou ampliação da renda e do emprego. Assim, por exemplo, para tomar dois casos extremos, programas fiscais que ponham renda nas mãos das famílias transformam-se imediatamente em gastos; já linhas de liquidez para os bancos dificilmente produzem o mesmo efeito. É, portanto, à luz desse critério, ou seja, a capacidade de se transformar em gasto, que as várias medidas devem ser avaliadas. Vejamos em detalhe.
No quadro acima, os denominados recursos novos constituem aportes adicionais do Tesouro para bancar o apoio a famílias e trabalhadores via ampliação e aumento do benefício do Bolsa Família, criação de auxílios temporários para os trabalhadores informais e preservação dos empregos. Inclui ainda transferências a estados e municípios para gastos emergenciais com a pandemia. Como a atividade econômica está se contraindo esses dinheiros devem servir para evitar a perda de renda de grande parte da classe trabalhadora. O ponto aqui é que os valores deveriam ser maiores. A título de exemplo, um programa para assegurar renda mínima de um salário mínimo, para os muito pobres, informais e assalariados de baixa remuneração, cerca de 100 milhões de pessoas, custaria cerca de R$ 104 bilhões por mês ou R$ 312 bilhões em três meses, aproximadamente 4,3% do PIB, valor bem superior aos R$ 103,1 bilhões ou 1,5% do PIB propostos pelo governo.
É verdade que governo também propôs antecipações do 13º salário, do INSS e do abono salarial, o que embora não seja um gasto novo e portanto sem impacto fiscal anual, agrega de imediato, renda às famílias, num valor de R$ 58 bilhões ou 0,8% do PIB. Ademais, no campo do remanejamento, o mais rápido será a realocação de recurso para a saúde, via incorporação do DPVAT e crédito fiscal, somando cerca de R$ 10 bilhões, ou 0,2% do PIB. Assim, as medidas de efeito imediato e indiscutível, montam a R$ 171,1 bilhões ou 2,5% do PIB. Mesmo que agreguemos a esse valor a antecipação de transferências para estados e municípios, via fundos de participação, chegaríamos a um montante de 3,8% do PIB. Continua insuficiente, sobretudo se olhado à luz do tamanho da crise e do que vem sendo feito mundo afora. Pode-se considerar que os recursos do PIS-Pasep que serão transferidos ao FGTS, podendo ser sacados pelos cotistas, agregarão renda à população, mas a identificação, atribuição e transferência de contas é um processo lento. Por sua vez, o diferimento do pagamento de impostos e contribuições sociais melhora a situação das empresas, mas não agrega renda à economia.
As medidas relativas à ampliação do crédito via bancos públicos a despeito de positivas são claramente insuficientes e têm funding e custos incompatível. Usar recursos de origem fiscal e parafiscal numa crise dessa magnitude para refinanciar dívidas de empresas é inadequado. Muito mais eficaz e rápido seria viabilizar a recompra das carteiras dos agentes financeiros – públicos e privados, inclusive fintechs – por parte do Banco Central, com funding monetário e taxa próxima a Selic e cobrindo todo o capital de giro das empresas. Isto permitiria às empresas se refinanciarem a baixo custo e prazos compatíveis, assegurando um nível de produção compatível com a demanda corrente, ou mesmo mantendo alguma ociosidade, mas sem dispensa maciça de empregados.
Por último cabe considerar as medidas de liquidez, como aquelas relativas à liberação do compulsório bancário, no valor de R$ 200 bilhões. Seu efeito será muito provavelmente inócuo. O aumento das reservas livres dos bancos deverá promover um empoçamento da liquidez e ampliação das aplicações em títulos públicos, aumentando a sua rentabilidade, mas com efeitos marginais na concessão de novos financiamentos. Dado o tamanho crise, o aumento da inadimplência e a conhecida aversão ao risco dos bancos brasileiros, não será outro o impacto das modificações da regulação bancária mudando as regras de provisão ou o relaxamento dos requerimentos de capital.
Em resumo, para enfrentar a crise, o governo brasileiro decidiu lançar um conjunto de programas e medidas das quais, uma parcela expressiva, cerca de dois terços, não terá impacto imediato sobre a renda, o emprego e a produção. Dada a crise que se avizinha, medidas muito mais amplas do que gastos fiscais de 3,8% do PIB e medidas financeiras mais decisivas que permitam o avanço do Banco Central sobre o sistema de crédito serão necessárias. O resto é prestidigitação.
Ricardo Carneiro é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
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