Guerra contra as mulheres, guerra contra o pobre, lucro dos fascistas
A PEC das drogas e o PL do estupro estão intimamente conectados: controlar a população a fim de garantir o fluxo de corpos necessários à continuidade do sistema
Foucault, com todos seus erros e limitações, foi preciso quando forjou o termo de biopolítica, ao qual sucederam outros autores, sejam trabalhando-o seja propondo continuidades e rupturas, como necropolítica ou psicopolítica. O que parece, a olhar de soslaio, uma multiplicação de temas contraditórios é, na verdade, parte de um esforço para descrever as muitas facetas das relações de poder nas sociedades contemporâneas, relações estas complexas, posto que ao passo que cada vez mais setores são abrangidos pela política e controlados por governos e empresas no capitalismo dos algoritmos, mais intrincado se torna a manutenção de uma sociedade cujas tensões só aumentam. Assim, que se veja menos entre as distintas abordagens críticas, desde os diferentes marxismos até a crítica pós-estruturalista, passando pelo anarquismo e os matizes cada vez mais integrados ao sistema da social-democracia, antagonistas, mas, antes, luzes de mentes distintas a fim de compreender o detalhe de algo muito complexo e que a simples sociologia, com um arcabouço por vezes limitado, não daria conta de apreender sem o concurso de um sem-número de disciplinas.
Assim, por exemplo, análises que falam em necropolítica, longe de escantear, somente realçam o poder explicativo da biopolítica foucaultiana, de modo que vivemos em um mundo onde matar, morrer e viver estão entrelaçados até o fundo. Enquanto na Palestina ocupada se mata aos borbotões, especialmente crianças (o futuro do país, da nação enquanto povo), no Brasil quer-se aprovar justamente um projeto de lei cuja justificativa é, dizem seus defensores, proteger a vida das crianças ainda fetos, mesmo que a custo da saúde das mães. A necropolítica israelense e a biopolítica dos setores fascistizados do Congresso não se opõem, ao contrário, se complementam e estão ambas ligadas com a guerra que se prepara.

Foto: Agência Brasil/Marcello Casal Jr./Arquivo
Ora, um soldado é, antes de mais nada, humano. Ele nasceu, cresceu, foi educado, tem mãe. O soldado caído do céu estrelado, apátrida, sem ideais, família e valores, seria o pesadelo do general, uma vez que ele não teria elementos suficientes para o mobilizar para a luta, o moral da tropa assim constituída seria baixo. O cinema, especialmente, viabilizou uma visão do vilão como alguém sem sentimentos, psicopata, afeito somente a mais poder, que luta por lutar. No mundo fora das telas, isto nos parece raro: o vilão tem laços familiares e sentimentos, tem propósitos, tem objetivos. Aquilo que é visto como a função do soldado – matar – se faz porque ele está motivado para tanto. Não à toa, os exércitos napoleônicos varreram a Europa quando se descobriu que, em nome da pátria e de tudo que a ideia traz consigo, se poderia mobilizar as multidões.
A Demografia, como notou Foucault, assim como a Estatística, essenciais em qualquer arranjo biopolítico, nascem nesse período. Estudar as populações, tornadas não somente exército, como força de trabalho necessárias para a criação, manutenção e extensão de uma indústria nascente, e os modos como elas se comportam são tarefas congênitas ao nacionalismo nascente e às sociedades que se preparavam para a série de conflitos de massa, para a guerra total que sacudiu o mundo no século XX e periga retornar à cena.
A pergunta que toda criança deve fazer aos seus pais, de onde surgem os bebês?, é óbvia aos adultos: surgem da relação sexual entre um homem e uma mulher. E, em sociedades patriarcais como as nossas, pelo próprio fato de a mulher incubar o bebê, será sobre suas costas que cairá o grosso do cuidado parental. E sem esse cuidado maternal, sem as mulheres produzindo filhos, os nutrindo, educando e aleitando, ainda não são possíveis nem guerras, nem economia, consequentemente, não é possível o lucro dos saques aos países do terceiro mundo, nem o lucro dos grandes monopólios privados.
A mulher é peça chave na manutenção do capitalismo. Claro, não só do capitalismo, mas da própria lógica de uma civilização, a ocidental, que se expandiu e ainda reina sobre o globo, e mostra laivos de se expandir para o restante do cosmos. Quando a mulher se levanta, a sociedade treme. Não à toa, a Revolução Francesa começa com mulheres iradas contra o Absolutismo. O Maio de 68 começa quando os estudantes se opõem a um estrito controle que recaia sobremaneira sobre o corpo feminino.
No caso do Brasil, país pintado pela historiografia oficial como pacífico, o inimigo não é externo, ou não o é por ora externo, mas interno. A doutrina de combater o traidor, as classes perigosas, os bandidos, os pobres se assenta na noção daquilo que os militares chamam de óbices. Ora, um óbice nada mais é senão um obstáculo. Os militares trabalham com categorias próprias e uma delas é a do Poder Nacional; por isto se entende a capacidade de uma unidade política (nacional, dotada de forças armadas) em realizar seus objetivos. Assim, é pressuposto que essa unidade política seja uma unidade. Tudo aquilo que atenta contra a unidade do Poder Nacional pode ser considerado um óbice. Por isso a repulsa em assumir o racismo estrutural ou a luta de classes ou a LGBTfobia ou o machismo como elementos constitutivos de nossa sociedade: elas enfraquecem a unidade da nação, logo seu Poder Nacional, portanto, a capacidade do país em incidir no mundo e lograr conquistar seus objetivos.
Assim, o inimigo interno são todos aqueles que atentam contra a unidade da nação. A divisão da cidade é perigo que ronda a filosofia política há muito tempo: o medo da stásis, ou seja, da guerra civil. Heráclito já admitia que reis e escravos são formados a partir da guerra. Platão ergueu todo o edifício de seu pensamento político visando afastar a dissensão na sociedade, ao mesmo tempo que reconhecia que toda cidade é dupla, dividida que queda entre ricos e pobres. Aristóteles, na Política, fornece instruções de como evitar que a sociedade passe por revoluções. No caso do Brasil contemporâneo, o inimigo interno são todos aqueles que oferecem riscos à ordem social tal qual estabelecida pela Constituição social liberal de 1988; mas não qualquer perigo, veja-se bem: o verdadeiro perigo, a verdadeira chave daquela Constituição, ordenamento máximo do Estado, é ela colocar como cláusula pétrea a propriedade privada. Quem atenta contra a propriedade privada, com todo o séquito de consequências que disso advém, são os perigosos a serem vencidos. Não se estranhe, apesar disso, que os manifestoches do 8 de Janeiro tenham sido presos; não havia, entre as elites, uma opinião majoritária favorável a um golpe de Estado, o que certamente abriria um período de convulsões sociais no país. As elites foram bilontras, enfim.
Através da produção do inimigo o Estado brasileiro mantém o controle da sociedade, afinal, são pessoas que são mortas pelas polícias, geralmente negros, pobres e com baixa escolaridade. São os crimes dos pobres que são punidos, as prisões estão cheias de analfabetos funcionais etc. É contra a parte frágil (já que desorganizada) da sociedade brasileira que a força bruta de uma polícia racista incide. Também os espartanos, admirados pela direita redpill, dominavam todo um outro povo e faziam a kriptia, expedições militares regulares onde matavam à vontade a fim de manter esses escravos em estado estupefaciente.
O PL do estrupo visa garantir vários dos elementos abordados, como mão de obra barata, acessível e desesperada por emprego; inimigos para o Estado brasileiro manter sua política de morte contra os pobres e negros; soldados para servir nessa guerra civil não declarada. Além disso, evidentemente, é um reforço do poder do macho sobre a fêmea, um controle estrito sobre o corpo feminino, uma política de morte sobre a mulher.
Ora, nesse sentido, a PEC das drogas e o PL do estupro estão intimamente conectados: controlar a população a fim de garantir o fluxo de corpos necessários à continuidade do sistema no país. O capitalismo não é somente um sistema econômico, mas um tipo de sociedade, uma tal em que a vida é transformada em mercadoria, em objeto, como tal, manipulável. Já Marx e Engels apontavam como a burguesia rasgou o véu do sentimentalismo em benefício do puro lucro. É em nome do ganho, seja ele econômico, político ou social que se faz a guerra às mulheres, não de uma vida em abstrato, visto que os setores fascistas que defendem o PL não veem o menor problema em matar, ver matar e aplaudir a morte dos pobres, esses que nascerão em ainda maior número, desamparados e de pais estupradores, caso esse PL avance.
A oração do fundamentalismo cristão é bem outra: em nome do lucro, do estupro e do poder santo, armem.
Felipe Luiz é doutorando em filosofia UFSCar, foi membro do DCE da Unesp por três anos. Expulso da Unesp por sua militância, estuda filosofia de guerra. Possui um livro publicado (Profecias, Urutau, 2021). É autor, ademais, de dezenas de artigos e mantém um blog (filosofiabrasileirapolítica.blogspot.com).