Quem é o assassino? O projeto de lei 1904/2024 e a criminalização do aborto
Votar contra o projeto de lei 1904/2004 é um ato pela vida de todas as mulheres que têm seu direito assassinado
Ao som de brados ferozes entoando as palavras “assassino”, uma menina de 10 anos e sua boneca de pano aguardam o início do procedimento de aborto na cidade de Recife. O fruto que crescia em seu pequeno ventre não era um presente divino: estuprada pelo tio desde os 6 anos, a criança gerada era testemunha do assassinato da sua possibilidade de ser criança. O ano era 2020, a então ministra da Secretaria da Mulher lamenta publicamente a decisão judicial – os gritos penetram mais uma vez o corpo da criança e engrossam o coro, “assassino”.
Não, não se trata de uma confusão semântica, a alegação de assassinato é um projeto. Um projeto de controle do corpo feminino que, nessa semana, se traduziu em projeto de lei. O projeto de lei 1904/2024 pretende equiparar a pena da realização de aborto após a 22ª semana ao crime de homicídio. No Brasil, o aborto é crime não punido em casos de estupro e risco de vida para a mulher ou quando o bebê sofre de anencefalia. O parâmetro para punição desloca-se do contexto da gravidez propriamente dita e passa a se basear na idade fetal. O crime passaria a ser equiparado ao homicídio – mesmo em caso de estupro ou fetos anencéfalos, o procedimento de interrupção da gravidez após 22 semanas passa, com o projeto de lei 1904/2024, a ser considerado um assassinato.

Voltemos um pouco no tempo, em 2004 na mesma cidade de Recife. Severina esperava o procedimento de aborto de um feto natimorto de uma gravidez desejada – para lembrar seu conterrâneo poeta, uma vida Severina. Nesta mesma data, foi derrubada uma liminar que permitia a interrupção da gravidez em casos de fetos anencéfalos. Severina é despejada do hospital, com o ventre cheio de vazio, e começa uma peregrinação pelo Brasil em busca de justiça. Inflada de morte, demora três meses para conseguir uma autorização judicial do aborto e mais dias intermináveis até que um hospital concordasse em realizar o procedimento – quem é o assassino?
Vinte anos depois, o projeto de lei 1904/2024 visa acrescentar nos artigos do Código Penal que tratam sobre o aborto que “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”. Uma criança fruto do estupro não obedece às semanas transcorridas no calendário. Assassino é aquele que nos obriga a contar as horas prenhas de violência dentro de nós – queremos a vida. Votar contra o projeto de lei 1904/2004 é um ato pela vida de todas as mulheres que têm seu direito assassinado. É também nas palavras do poeta conterrâneo de Severina, nas mesmas terras em que os brados ferozes acusavam um assassinato no procedimento de interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos, que nos lembramos da luta pela vida: “é difícil defender/só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é/esta que se vê, severina;/ mas se responder não pude/ à pergunta que fazia,/ ela, a vida, a respondeu/ com sua presença viva.” (João Cabral de Mello Neto)
Thais Klein é psicanalista, professora da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).