Guerra de nacionalismos no Mar da China
Após um enfrentamento de dois meses entre navios filipinos e chineses, é cada vez mais do lado japonês e das ilhas Senkaku/Diaoyu que surgem as rivalidades. Em outubro, a Marinha chinesa se aproximou das costas em disputa, enquanto um porta-aviões dos EUA fazia uma demonstração de força no Mar da China MeridionalStephanie Kleine-Ahlbrandt
Há vários meses, as disputas de soberania no Mar da China continuam a se agravar. Em abril de 2012, a guarda costeira das Filipinas ameaçou atirar em navios de pesca chineses nas águas disputadas do recife de Scarborough. Em junho, o Vietnã decidiu abrir vias navegáveis perto das ilhas Spratly e Paracel; a China retaliou anunciando futuras ações nesse arquipélago desértico. Em setembro, foi em torno das ilhas chamadas Senkaku no Japão e Diaoyu na China que se atiçaram as tensões. Tendo o governo japonês anunciado a nacionalização de um punhado de ilhotas vulcânicas desabitadas, Pequim replicou com sanções econômicas, manifestações antinipônicas em várias grandes cidades do país e o envio da guarda costeira à zona de conflito.1
Essa escalada reflete a nova política chinesa de “afirmação reativa”, que aproveita a ocasião do menor incidente nas fronteiras para fazer uma demonstração de força e tentar mudar a seu favor o status quo territorial. Ela marca uma ruptura com a política de normalização lançada pelo ex-presidente da República Deng Xiaoping no final dos anos 1970, que visava aplainar conflitos de soberania e tecer relações amistosas com os países vizinhos. Algo que ele resumia assim: “Afirmar nossa soberania, deixar de lado os conflitos, buscar um desenvolvimento comum”. Em 2000, o ministro das Relações Exteriores Tang Jiaxuan consolidava essa estratégia: “Quando as condições não estão maduras para se encontrar uma solução duradoura para um conflito territorial, as discussões sobre as questões de soberania podem ser remetidas a uma data posterior, a fim de aplainar o conflito. [Isso] não implica uma renúncia à soberania. Trata-se simplesmente de afastar o conflito para um período determinado”.2 Atualmente o presidente chinês Hu Jintao defende o fim das disputas e a busca pelo desenvolvimento comum, mas suas declarações são contraditas pelos fatos.
Rico tanto em jazidas de hidrocarbonetos como em recursos de pesca, repleto de vias navegáveis que estão entre as mais congestionadas do mundo, o Mar da China Meridional é uma encruzilhada onde se enfrentam os interesses da China, dos Estados Unidos e dos países do Sudeste Asiático: Vietnã, Filipinas, Malásia, Brunei.
Do lado chinês, uma multidão de agentes políticos e econômicos têm explorado as tensões territoriais no interesse de seus próprios negócios, o que contribuiu em boa medida para o endurecimento do governo. As numerosas agências chinesas que florescem na costa sul são frequentemente vistas em países vizinhos como os “nove dragões que saqueiam o mar”.3 Entre elas figuram tanto governos locais, como a Marinha, o Ministério do Meio Ambiente, empresas estatais, as forças da ordem, as alfândegas e o Ministério das Relações Exteriores.
Os governos das regiões costeiras de Hainan, Guangxi e Guangdong estão procurando novos escoadouros para a produção de suas empresas – cujo sucesso garante o deles no seio do aparelho de Estado. Quanto mais tempo permanecem leais ao Partido Comunista, mais têm ampla liberdade na gestão de seus assuntos regionais. Os apetites foram aguçados por uma combinação de política de crescimento e uma maior autonomia concedida às autoridades provinciais. É por isso que estas últimas têm incentivado seus pescadores a avançar mais nas zonas de conflito, sobretudo forçando-os a modernizar seus navios e a equipá-los com sistemas de navegação por satélite.4 A concessão prioritária das licenças de pesca às traineiras maiores constitui outro convite nesse sentido.
O governo de Hainan também tem feito várias tentativas para desenvolver o turismo nas ilhas Paracel, apesar dos protestos veementes do Vietnã.5 “Agir primeiro, pensar depois”, esse parece ser o lema das autoridades locais em seu relacionamento com Pequim. Elas avançam seus peões tão longe quanto podem no campo de batalha econômico e só batem em retirada quando o governo central franze o rosto.
Ao mesmo tempo, a rivalidade entre os dois serviços de polícia marítima mais poderosos do país – a Marinha de Monitoramento, que depende do Ministério da Terra e dos Recursos, e a Autoridade de Defesa das Leis sobre Pesca, sob a tutela do Ministério da Agricultura – traduziu-se em um aumento de suas frotas e numa corrida desenfreada nas águas em litígio. Disputando os subsídios e favores de seus respectivos ministérios, as duas agências se esforçam para empurrar as fronteiras de suas jurisdições a fim de obter melhores orçamentos. Tanto para uma como para a outra, apoiar-se nos direitos territoriais e marítimos reivindicados faz parte de uma estratégia de gratificação interna. De sua parte, o governo chinês só vê vantagens em usar administrações civis, uma vez que isso o poupa dos riscos de um confronto militar direto.
Mas, se uma patrulha da polícia provoca menos danos do que um navio de guerra, sua utilização extensiva como uma ferramenta de soberania nacional só pode contribuir para uma multiplicação dos incidentes. Os barcos de pesca assumem também, cada vez mais frequentemente, a função de porta-bandeira marítimo de seu país, tornando ainda mais perigosos os atritos com as embarcações das nações vizinhas.
Apesar de uma presença maior no Mar da China Meridional, a Marinha chinesa tem desempenhado até hoje um papel secundário. Em caso de incidente, suas fragatas ficam atrás ou chegam atrasadas, deixando para as autoridades civis a tarefa de gerir a situação. Desnecessário dizer que seu fortalecimento e modernização, na mais completa opacidade, constituem fontes adicionais de tensão, porque isso impulsiona outros países a aumentar suas próprias forças militares marítimas.
Em princípio, presume-se que o Ministério das Relações Exteriores deve assumir um papel de destaque. Na realidade, ele carece completamente de autoridade. O ministro em exercício, Yang Jiechi, “exerce menos poder do que o assistente do conselheiro de Estado Dai Bingguo”, ironiza um observador dos bastidores de Pequim. O problema se agravou ainda mais tendo em vista que os verdadeiros detentores do poder público – os ministérios do Comércio, das Finanças e da Segurança do Estado, mas também a Comissão Nacional do Desenvolvimento e da Reforma – tomaram nas mãos as principais alavancas da política externa. Para o Ministério, esse papel de figurante se mostra ainda mais desconfortável quando numerosas vozes se elevam para exortar a diplomacia chinesa a assumir suas responsabilidades, de acordo com a influência econômica e regional exercida pelo país.
Se o governo sempre tendeu a tirar vantagem do sentimento nacionalista da população, esse jogo pode se voltar contra ele. No início de 2012, quando o Ministério das Relações Exteriores quis acalmar as coisas explicando que seu país não reivindicava de forma alguma a integridade do Mar da China Meridional, sua iniciativa provocou forte descontentamento na opinião pública, para a qual se tinha martelado o contrário havia décadas.6 Um grande número de internautas apela para expurgos no seio da direção do Partido Comunista, acusado de abrigar os “traidores” e “corruptos”, que “exploram o sangue e o suor do povo” e “aviltam os interesses nacionais da China”.7 Os dirigentes temem que tais ressentimentos se propaguem e conduzam a distúrbios passíveis de prejudicar a estabilidade do país.
Quanto ao poder, ele não hesita em cometer represálias. Os incidentes de abril de 2012 em Scarborough são reveladores dessa postura exacerbada. Num primeiro momento, as Filipinas reagiam à intrusão de pescadores chineses com o envio de um navio militar. A China aproveitou a ocasião para reafirmar seu direito de propriedade do recife com a introdução de uma frota de manutenção da ordem na área e a proibição de que os pescadores filipinos ali entrassem. As importações de frutas tropicais das Filipinas estão em quarentena, o turismo está suspenso. Ao assumir o controle do recife de Scarborough e impedir os filipinos de pescar ali, a China estabeleceu um novo estado em seu benefício.
Tóquio acusado de trabalhar pelos EUA
Pequim também carregou a mão em junho, quando o Vietnã adotou uma lei marítima que abria novas vias navegáveis nas águas das ilhas Spratly e Paracel. Bastante incomodado, o governo anunciou imediatamente a criação de uma prefeitura, Sansha City, bem como o estabelecimento de uma guarnição militar. Para completar, a China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) começou a emitir licenças para exploração de petróleo em nove locais situados dentro da zona econômica exclusiva vietnamita, que no entanto já é operada pela empresa PetroVietnam.
As tentativas do Vietnã e das Filipinas de incluir uma declaração sobre essas questões na 45ª Cúpula Ministerial da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean, na sigla em inglês), em julho de 2012, falharam devido à oposição do Camboja, o país organizador da reunião – para grande satisfação de Pequim. Difícil não ver nisso uma ilustração da estratégia chinesa que consiste em “tratar cada questão diferentemente e ganhar cada uma delas separadamente”.8
Enquanto as tensões no Mar da China Meridional pareciam ter atingido um ponto culminante no meio de 2012, outra crise surgia em setembro, dessa vez no Mar da China Oriental, com o anúncio pelo governo japonês da aquisição das ilhas Senkaku-Diaoyu, que até então pertenciam a um riquíssimo empresário japonês.9 As autoridades japonesas justificaram essa nacionalização pelo desejo de puxar o tapete do governador nacionalista de Tóquio e de realizar essa operação antes da nomeação do novo presidente chinês Xi Jinping, para “evitar dar-lhe uma bofetada” antes mesmo que estreasse sua cadeira. Pequim reagiu fortemente.
Mais ainda que no Mar da China Meridional, o nacionalismo torna explosivos os desentendimentos de fronteira nessa parte da Ásia.10 Por causa das atrocidades cometidas durante a invasão japonesa, o conflito sobre o estatuto das ilhas Senkaku-Diaoyu suscita na China uma vingança infinitamente superior a qualquer outra disputa territorial. As reações são também muito fortes do lado da Coreia do Sul com o litígio em torno da ilha Takeshima – para os japoneses – e Dokdo – para os sul-coreanos. Muitos japoneses se sentem ameaçados pelo aumento de poder do “dragão” chinês, em relação ao qual temem um efeito de erosão em sua própria soberania.
Se na China o governo conseguia, no passado, manipular a fibra nacionalista de acordo com seus interesses, hoje seu controle sobre a população diminuiu. O surgimento das tecnologias da informação e da comunicação abriu um novo espaço para a expressão do ressentimento antijaponês, fazendo deste uma força capaz de minar a base do poder. A frustração nacionalista, alimentada pela percepção de que o governo não foi capaz de fazer frente a Tóquio, se agrega à exasperação crescente causada pela corrupção, pela falta de proteção social, pelos casos de insegurança alimentar e pelo aumento excessivo dos preços dos imóveis.
Além disso, a geração mais velha, que tinha combatido as tropas japonesas durante a Segunda Guerra Mundial e parecia legítima para promover uma linha de paz, desaparece gradualmente. Uma parte dos diplomatas hoje no comando acredita que a China já não tem mais que se preocupar em administrar as potências rivais, uma vez que ela eclipsou o Japão no plano econômico e pode fazer o mesmo rapidamente com os Estados Unidos. Sua atenção se concentra cada vez mais nas relações sino-americanas e cada vez menos nas sino-japonesas. Para muitos líderes, Tóquio não é mais que uma sucursal de Washington. A política externa japonesa, dizem, está subordinada à estratégia asiática dos Estados Unidos, a qual consiste em refrear o novo poder chinês.11
A reação de Pequim ao direito de preferência japonês sobre as ilhas Senkaku-Diaoyu cresceu, portanto, em audácia com o anúncio das represálias econômicas e de grandes manobras militares envolvendo a Marinha, a aviação e uma unidade de lançamento de mísseis estratégicos. Além disso, as autoridades elaboraram um documento jurídico que traça uma linha de demarcação intransponível e colocam de fato as ilhas sob a administração da China. Sem chegar a uma anexação formal, a China se permite enviar navios de polícia em uma zona controlada até agora pela guarda costeira japonesa – o que aumenta a probabilidade de novos incidentes.
A ascensão dos nacionalismos, o avanço dos orçamentos militares, a falta de liderança regional e o caráter precário das transições políticas agravam o risco de uma espiral belicosa no Mar da China; um risco ainda maior quando se tem em mente que as instituições, os mecanismos e os processos que podem deter essa escalada foram consideravelmente enfraquecidos ao longo dos últimos anos.
Stephanie Kleine-Ahlbrandt é Chefe do departamento de China e nordeste da Ásia do International Crisis Group, em Pequim.