Helião tinha razão
O Brasil de 2021 se reencontra com aquele país do fim do século passado – cantado com angústia pelo rap nacional
Sobre um sample entristecido, o sorriso de um velho irrompe no meio da canção para sentenciar: “Hélio, Hélio, nem tudo tá perdido. Vamos acreditar nessa rapaziada que tá chegando…”. A mensagem soa como um respiro que antes parece impossível à música, e o próprio arranjo trata de separar bem as coisas: sai a voz amargurada do rapper deslizando pela rima como soluços de choro e entra a do homem com um humor inequívoco dos sambas de boteco (ao ouvi-lo, se pode vê-lo com um copo de cerveja nas mãos). Estão ali a juventude de Helião – membro do RZO e uma lenda do nosso rap – e Badu, o senhor sorridente que, apesar da idade, é justamente quem faz o papel de olhar para o futuro com otimismo. Mas ele não é tão convincente, já que “O mensageiro“, do álbum “Evolução é uma coisa” (2003), do RZO acaba mesmo com um refrão angustiado com o mundo (“Coragem faz de mim/ O mensageiro da favela/ A nossa vida é assim/ Muito desgosto, enfim/ Não vamos desistir…”).
Esse estado de espírito também dá o tom de “Pirituba Parte II“, do mesmo álbum (sample, aliás, de “Desta vez não vou chorar“, de José Roberto), em que um Helião mais combativo diz se lembrar do “tempo da fartura”, embora só tenha sobrado dele uma “saudade que perturba” em meio a uma “vida dura e insegura”. Mas, ao contrário da canção anterior, nela há uma tentativa de apontar culpados: o poder, o dinheiro, o desemprego, o governo (“Sistema sabe onde investe/ Confere, confere…”) e seu aparelho mais conhecido nas favelas, o repressor. O refrão é um atestado do pessimismo, reclamando que a violência policial, longe de acabar, “está cada vez pior”, usando, então, um jogo fonético com a forma como a última palavra termina – semelhante a um tiro de revólver (“tó-tó”). Ao contrário de “O mensageiro”, aqui não aparecem velhos sorridentes para entregar alguma expectativa temporal, e tudo se acaba com o mesmo Helião profetizando um futuro em que a corrupção aumentaria e, em paralelo, o massacre de corpos pobres nas margens das cidades brasileiras continuaria. E se o parceiro Sabotage cantava, dois anos antes, que “um bom lugar se constrói com humildade”, o RZO reagia com mais angústia: “Como esperar um bom lugar? Assim não dá!”.
O próprio Sabotage parece resignado ao longo do seu aclamado “Rap é compromisso” (2001). De certa forma, as músicas do álbum funcionam menos como denúncias – uma tendência daquele rap no fim dos anos 1990 e começo dos 2000 – e mais como uma sequência furiosa de relatos sobre a realidade das populações urbanas empobrecidas, geralmente em meio aos dilemas do crime e da “vida honesta”. Isso se vê, sobretudo, pela quantidade de expressões comuns das periferias e mesmo da criminalidade que operam como barreiras rígidas de interpretação dependendo do ouvinte. Mas também fica evidente em como o músico tenta, o tempo todo, dizer que tudo aquilo é uma lei paralela, não escrita em papel e muito menos erguida para todos – ao contrário, ela tem suas próprias vítimas, justificativas, códigos e, principalmente, suas morais.
Para fazer tudo isso, Sabotage entremeia técnicas geniais com metáforas tristemente belas. Em “Zona Sul”, depois de calcular como o valor das propinas pagas à Polícia Militar galopa em ritmo muito mais acelerado do que o salário mínimo, ele lembra que “Nostradamus tava certo e não errou”. Com isso, retruca o frescor do suposto “fracasso” da profecia feita pelo químico francês do século XVI – de que uma grande guerra eclodiria em 1999 – apontando como ela estava acontecendo intermitentemente pelas ruas de São Paulo. Não à toa, a letra passa a enumerar, em meio a frases meio de “autoajuda”, acontecimentos distantes que chamavam mais a atenção da imprensa brasileira do que a realidade miserável de quem estava no meio desses conflitos: a queda do muro de Berlim, as enchentes no Japão, o fenômeno El Niño na Itália e os vários cometas não identificados. Sabotage acaba ainda mais perto da amargura do RZO em “País da fome”, esses três minutos e quarenta e dois segundos em que ele canta pessoas mortas ou presas e que terminam com uma tentativa dolorosa de superá-las: “Não posso nem parar/ Não posso me estressar/ Tenho que continuar/ A responsa vai mostrar e provar”.
Todas essas canções emanavam de uma música – o rap – que até ali ocupava a hegemonia do discurso das e sobre as periferias brasileiras, principalmente a partir das favelas de São Paulo. Ao contrário dos sambas dos morros cariocas, eram denúncias cruas sobre a violência policial, críticas ácidas às elites e aos governos, relatos de miséria, quando não eu líricos que expressavam, como só a arte consegue, os dilemas de uma juventude pobre. Nada era à toa: a complexa autobiografia que um ladrão arrependido faz na cama de um hospital por meio da boca de Mano Brown em “Tô ouvindo alguém me chamar“, do clássico “Sobrevivendo no inferno” (1997), dos Racionais, ou a fenomenologia do periférico, com todos seus preconceitos e sujeições, que Helião e Sandrão constroem em “Real periferia”, do álbum “Todos são manos” (1999), ou ainda a explicação sobre a explosão da violência que Thaíde e DJ Hum se propõem a dar às classes urbanas privilegiadas em “Assim caminha a humanidade”, do ano 2000 (“Estava tudo bem enquanto seus filhos faziam rock na garagem/ Eles cantavam dentro de uma época […]/ Hoje faço parte de novos tempos…), tudo isso era mais do que o que a periferia queria dizer – era boa parte do que ela era, de fato. A amargura que pingava do rap brasileiro dessa época é, explicitamente, o sentimento daquelas pessoas às quais as letras faziam referência. Música e experiência estavam coladas.

Então, esse rap tinha sentido em ser hegemônico: o Brasil entrou nos anos 2000 com 28% da sua população vivendo na linha da pobreza. Naquele ano, 44 milhões de brasileiros estavam no mapa da fome – e, de fato, quase 8 mil deles morreram por desnutrição no primeiro ano do século. A taxa de crianças entre 10 e 14 anos que precisavam trabalhar para complementar a renda doméstica era de 17%, assim como o analfabetismo, que era de cerca de 15% em 1999. Em dez anos, 717 novas favelas tinham surgido pelo país, aumentando seus habitantes para 6,5 milhões. E, se em 1960, a renda dos 10% mais ricos era 34 vezes maior do que a dos 10% mais pobres, em 2001 essa potência já tinhas chegado a 60. Tudo isso em meio à violência: em 2000, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes do estado de São Paulo era maior do que a da maioria dos países do mundo. Dados para os quais só se recorria (e se recorre) quem não ouviu os rappers daquele momento do país. Ou, pior ainda, de quem os escutou, mas não entendeu nada.
É sintomático que, após chegar ao auge em meio àquele contexto, o rap tenha perdido sua hegemonia discursiva já nos anos seguintes para os vários tipos de funks. Sintomático talvez seja a melhor definição, já que foi um ajuste cultural para dar conta de uma nova realidade do país, marcada pela valorização dos salários e por uma maior democratização do ensino – que, não há como negar, é produto dos anos Lula (o “Milagrinho”, com chama a economista Laura Carvalho). Os mais otimistas diziam que aquela vocação denunciativa do rap havia cumprido sua missão de alguma forma – e o próprio Mano Brown deixou essa percepção no ar quando lançou, uma década e meia depois, um disco de músicas dançantes. Mas havia os críticos de dentro, muitos deles contaminados pela lógica burguesa, que tentavam explicar como a indústria cultural havia tido sucesso em tirar aquela angústia dos ouvidos da juventude para colocar, no lugar, uma música bem menos combativa. Seja como for, enquanto Helião e Sandrão passavam um longo intervalo em hiato, Thaíde se transformava em apresentador de televisão, Sabotage era exaltado em acústicos da MTV e a pergunta mais comum sobre Ndee Naldinho no buscador do Google era se ele havia morrido, os e as jovens MC’s de funk iam se tornando rapidamente as vozes hegemônicas dos subalternos. Só que, dali em diante, elas não eram mais lamúrias ou descrições cruas da vida pobre, que não se encaixavam mais nas métricas das rimas. Ao contrário, cantavam ora o orgulho de certo ethos periférico (que, olhe só, não se pode comprar, só se experimentar), ora os luxos burgueses renegados aos seus pais, ora o sexo em si mesmo, ora o reconhecimento de estarem, pela primeira vez, produzindo os hits dos verões. À banalidade dos ouvidos fora da órbita desigual do Brasil, porém, pouca coisa havia mudado: se o rap era “música de bandido”, o funk era “depravação”.
E se o rap dizia muito sobre seu tempo, o funk também o fazia: quando Mc Guimé fundou o funk ostentação com “Tá patrão”, em 2011, por exemplo (“Quando dá uma hora da manhã/ É que o bonde se prepara pra vibe/ Abotoa a polo listrada/ Da um nó no cardaço, no tênis da Nike”), a taxa de pobreza do Brasil tinha caído para 12%. Mais do que isso: em dez anos, a renda média das famílias brasileiras aumentou em 30%, enquanto, no mesmo intervalo, o coeficiente de Gini – a medida mais respeitável de desigualdade social de um país – havia caído 10%. O volume de analfabetos acabara de bater o mínimo histórico (8,6%), assim como o número de homicídios em São Paulo, que despencara de 34,1 casos a cada 100 mil habitantes em 2000 para 10,08 em 2011. Tudo isso, vale dizer, sem que as favelas deixassem de crescer: eram quase o dobro (11,4 milhões). O que havia mudado não era estar nela, mas o que ela significava. O mesmo Mano Brown fez esse diagnóstico, aliás, ao Le Monde Diplomatique Brasil em 2018. O “cotidiano difícil” dos periféricos não tinha acabado de repente, mas as coisas tinham mudado – e a música que eles produziam era uma expressão disso. Música e experiência seguiam coladas.
Mas, como sempre acontece no Brasil – que, como disse um jornalista, de 15 em 15 anos se esquece do que aconteceu nos últimos 15 anos –, os funks agora parecem não dar mais conta dessa realidade. Nem o ostentação, nem o romântico, nem o proibido. O lugar hegemônico parece voltar sutilmente para o rap e, mais do que isso, para aquele que estava com o microfone nas mãos duas décadas atrás. Com isso, a dialética que parecíamos estar vendo, em que o orgulho da experiência periférica vinda do funk era insumo para a genialidade de um Emicida discutindo o racismo estrutural no Brasil ou de um Criolo etnografando hipocrisias, é hoje sofisticação para um país muito mais perto daqueles anos 2000 do que do começo do século XXI. Ouvir Sabotage, Thaíde, Xis, Racionais e RZO não são apenas memórias saudosas de quem foi jovem naquela época expressa em comentários nos vídeos do Youtube. Muito menos é voltar no tempo com o privilégio do presente, mas é infelizmente revivê-lo, nem como tragédia nem como farsa, mas como ambos. Na verdade, era isso que Helião estava dizendo – e que Badu tentava repreender.