Hip-Hop como transfluência contracultural da modernidade afro-americana
Na década de 80, através dos bailes black, que o hip-hop toma conta do cenário brasileiro incorporando um novo estilo musical vindo da América do Norte
“Sombras do passado, cantos, vozes ancestrais
Movimentam rios profundos…”
El Efecto: Café
Ao buscar compreender possibilidades de diálogos e construção de pontes entre recortes territoriais distantes é preciso encontrar objetivos convergentes em bases históricas compartilhadas, estimulando um exercício intelectual pela imaginação sociológica, conseguindo assim ultrapassar limites geopolíticos. De modo geral, muitas manifestações e valorizações culturais e identitárias em países que foram colônias em algum momento, se apresentam como oposições — ou pelo menos mantém elementos opositores ainda que transformados contemporaneamente — ao modelo que justamente instituiu a colonização, já considerando seu sentido e seus desdobramentos posteriores.
Assim, como estigma na história global, a modernidade ocidental se apresenta como fator definidor de muitas categorias, identidades e histórias, porém não obliterou todas as outras culturas — por mais que tivesse tentado em várias situações —, então culturas resistentes e emergentes podem compartilhar de objetivos contracoloniais e emancipadores por mais distantes — geográfica e nacionalmente — que pareçam, como elementos da cultura Hip-hop e a cultura quilombola em países racializados historicamente.
Advoga-se que o hip-hop se enquadra como prática política contracolonial transfluente. Para isso, mobilizam-se, majoritariamente, três teorias de aspecto decolonial: (i) a triangulação pelo Atlântico negro, (ii) a historicidade social da colonialidade do poder, e (iii) o pensamento quilombola contracolonial de Antônio Bispo dos Santos. De forma indissociável, busca-se apresentar que a cultura hip-hop possui bases históricas politizadas contra o regime colonial e os sentidos de suas extensões contemporâneas, como o domínio hegemônico de uma cultura branca euro-estadunidense. Logo, mesmo que produzido originalmente nos Estados Unidos e exportado para outros países, não se caracteriza como produto colonial e imperialista,[1] pois foi primeiramente produzido como forma de resistência e subversão local para então ser globalizado e reinterpretado sob outras lógicas e identidades locais.

Crédito: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
Se por um lado a modernidade ocidental hegemônica se inicia com transformações políticas, intelectuais, morais e econômicas, passando a definir categorias políticas, epistêmicas, sociais e éticas, possui também sua contraparte que a sustenta: a colonialidade. Assim, não existe Europa moderna — e, contemporaneamente, Norte-Global — sem as colônias e ex-colônias: sem África e América. Dessa forma, a colonialidade do poder alcança, não sem resistência, a mente dos colonizados, propagando ideais hegemônicos como verdadeiros e legitimados e, consequentemente, ensinando a ver o mundo de maneira errada (Mills, 2023). Como bem demonstrou Frantz Fanon: o “colonizado aceitava o fundamento dessas ideias, e era possível descobrir, numa dobra de seu cérebro, uma sentinela vigilante encarregada de defender o alicerce greco-latino” (FANON, 1979, p. 35). De todo modo, a colonialidade se faz presente como uma marca d’água em todo o processo que participa na tentativa de se lastrar.
De forma contestatória, a noção de Atlântico negro aqui trabalhada se caracteriza como uma contracultura da modernidade, implicando numa triangulação sócio-histórica e geográfica que se contrapõe à modernidade ocidental dominante, primeiramente narrada pela Europa, em seguida narrada pela ótica euro-estadunidense, por fim, narrada pela cultura afro-americana após um “giro descolonial” — nos termos de Quijano —, subvertendo protagonismos. Questionando as bases estabelecidas pela modernidade ocidental, o autor busca recuperar o percurso de personalidades negras e as formas de incorporação e/ou rejeição de suas culturas e produções culturais como reflexos das condições de reprodução da sociedade. Se as estruturas sociais foram mobilizações de agências dominantes com acesso a regras, recursos e violência sedimentadas ao longo do tempo, a recuperação do Atlântico negro e a extensão contemporânea ao Hip-hop se mostram como contracoloniais ao mobilizar novas formas de ação nos cotidianos pós-industriais dos Estados Unidos e também na realidade brasileira. Assim, traçam-se ralações entre a colonização, os movimentos negros, Antônio Bispo, Azagaia, Racionais MC’s e o Sugar Hill Gang, por exemplo.
Um dos domínios tipicamente modernos se apresenta sob a forma da burocracia e da escrita, impondo linearidade e verticalidade nas relações sociais, instaurando hierarquizações coloniais que passam a ser estruturadas e reproduzidas ao longo da história. Em oposição, muitas das culturas colonizadas e traficadas pelo atlântico possuem outras cosmovisões e formas de produção cultural de vida. Assim, a visão quilombola — tal qual traduzida por Antônio Bispo — abrange mais relações e agenciamentos, tornando a realidade mais complexa que o sentido colonial e suas adaptações propõem, compondo sua própria totalidade. A circularidade epistêmica rompe com os limites de compreensão da racionalidade capitalista, pois “não existe fim, sempre damos um jeito de recomeçar” (Santos, 2023, p. 11).
É nessa chave interpretativa que Bispo desenvolve os conceitos de confluência e transfluência. A confluência veio da observação das águas dos rios pela terra, fazendo convergir aspectos, categorias e realidades distintas ainda que próximas. Já a transfluência veio da observação e da compreensão da correlação entre como um rio no Brasil está em relação a um rio na África, e tal fato decorre pelas chuvas e nuvens, formandos “rios do céu” (ibid., p. 13). Portanto, “se é possível que as águas doces que estão no Brasil cheguem à África pelo céu, também pelo céu a sabedoria do nosso povo pode chegar até nós no Brasil” (idem). Isto é, notamos — mais uma vez — a presença do Atlântico Negro na formação do conhecimento e como recuperação e ressignificação sócio-histórica necessária para a valorização da cultura afro-americana e a transformação social. Tal ideia nos mostra como a integração global é palatável e pode ser vivida e experienciada de diversas formas, revelando uma cosmopolítica não-ocidental urgente.
O hip-hop é um movimento social amplo — outra totalidade própria composto por várias particularidades — que possui origem em regiões pós-industriais em Nova York, nos Estados Unidos. É oriundo de bairros periféricos e majoritariamente negros, sendo expressão cultural urbana da diáspora africana e, assim, negocia a experiência estrutural da marginalização, evidenciando que há produção e reprodução de vida e cultura em localidades que perderam brutalmente oportunidades ao sofrer opressão sobre a cultura, a identidade e às comunidades afro-americanas e caribenhas (Rose, 1997).
Assim, as transformações globalizadas da modernização recente tiveram impacto em diversas pautas, por vezes reforçando estigmas já existentes, como a discriminação racial e de gênero. Ao longo dos anos 70 muitas cidades perderam verbas para serviços sociais, ao mesmo tempo em que as fábricas eram substituídas por corporações e, com isso, os bairros mais pobres e grupos menos favorecidos foram mais afetados com menores redes de segurança, aumentando o abismo social entre classes e raças. Consequentemente, negros e hispânicos foram deslocados para áreas superpovoadas e sem manutenção governamental, aprofundando desigualdades estruturais e aumentando a população sem teto, os desempregados e os subempregos da cidade.
É no bairro do Bronx, especificamente no chamado South Bronx, conhecido como o berço da cultura hip-hop, que emergiu um projeto motivado por fins políticos como “parte inesperada do efeito” de pós-industrialização. A estética e o cenário urbano da região — o espaço social — explorou a negatividade como retrato da barbárie social. De forma subversiva, transformaram tal recorte em narrativas de vida, energia e vitalidade. De um antigo bairro de pessoas com origem judaica, agora ocupados por negros norte-estadunidenses, jamaicanos, porto-riquenhos e de outras regiões do Caribe reformularam suas identidades, apesar dos condicionamentos e imposições estruturais. Dessa forma, a cultura hip-hop surge como formação de uma identidade alternativa num momento em que as antigas estruturas e instituições sociais foram destruídas, impactando linguagem, moda, grupos etc.
Saltando para o território brasileiro, é retomando o conceito de Atlântico negro de Paul Gilroy (América, Caribe, Europa e África) que compreendemos a internacionalização — ou o aspecto transnacional — das lutas e trocas de imagens, símbolos e conhecimentos, possibilitando a circulação de personalidades negras, livros, cultura, etc. Obviamente que estamos tratando da consolidação do hip-hop no Brasil, mas suas manifestações são anteriores. No mesmo período da década de 1970, a população negra brasileira buscava referências internacionais com experiências de sobrevivência contestatórias comuns de aspecto racializado, criando laços identitários transnacionais, fomentando uma consciência diaspórica e menos nacionalista.
Após a histórica segregação na capital paulista desde os tempos de colônia, o período de café e as gentrificações recentes, o hip-hop também emerge sob tais condicionamentos. Na região central é onde surge o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), posteriormente Movimento Negro Unificado (MNU). Nesse momento, jovens negros se reuniam no Viaduto do Chá para trocar discos. Durante a década de 1980, os precursores do hip-hop ocuparam o Largo São Bento, a Praça Roosevelt e o Shopping Center das grandes galerias (Santos, 2011, p. 78). No Brasil, assim como proposto por diversos intelectuais que trouxemos e o próprio MNU, o movimento social e cultural do hip-hop se propõe a questionar a realidade e propor formas de sobrevivência, se contrapondo a ideologia da democracia racial, ainda dominante nos discursos cotidianos e outras formas de opressão.
É através dos bailes black que o hip-hop toma conta do cenário brasileiro em meados dos anos 1980, incorporando um novo estilo musical oriundo da América do Norte. A primeira música de Rap a ganhar sucesso internacional foi Rapper’s Delight, do grupo Sugar Hill Gang, chegando ao Brasil como “melô de tagarela” e fazendo com que o rap ficasse conhecido como Tagarela, pelo seu aspecto falado. Junto dos bailes e dos encontros e reuniões, MCs, dançarinos e intelectuais de rua buscavam conhecimento sobre os elementos do hip-hop, muito difundido pela recepção e produção de revistas sobre o tema. Assim, o primeiro disco de Rap lançado no Brasil foi Kaskatas – a ousadia do Rap made in Brazil, no ano de 1988, seguido da coletânea HIP-HOP, Cultura de rua. O som das ruas, em 1989 (ibid., p. 90). Por fim, a cultura hip-hop não ficou restrita à capital paulista, mas foi ganhando território nas cidades do interior através dos Clubes Negros.
Nem toda produção cultural globalizada pode ser compreendida como categoria transfluente, mas apenas se compartilham de condicionamentos estruturais semelhantes e, acompanhando a própria dinâmica dos encontros e das relações sociais antropológicas simétricas, reinterpretam a produção globalizada sob lógicas locais, mantendo elementos politizados, como ocorre com a capacidade contracolonial contemporânea. Se a Antropologia contemporânea — enquanto campo que reconhece o passado e assume a urgência de transformações profundas quanto aos seus métodos — propõe e busca a construção de diálogos simétricos ainda que permaneçam fatos sociais pragmáticos para a construção de consensos nas diferenças, é preciso reconhecer a base sócio-histórica comum de um passado colonial e as emancipações possibilitadas pelo Atlântico Negro, este que possui elementos transfluentes entre a cultura Hip-Hop e quilombola brasileira.
Acompanhando a noção de “cultura” (com aspas) e os debates geopolíticos, e embora exista uma cultura construída e estruturada moderna e nacionalmente sob valorações e legitimidades arbitrárias, passa-se a existir dentro da nação outra cultura, agora uma cultura hip-hop que se caracteriza como contracultura. Nessa prática cultural contracolonial, a produção ampla — seja no rap, no break, no grafite, etc. — debate as próprias condições de produção e reprodução da vida social e da própria ação e estruturação da produção do hip-hop, configurando uma “cultura” prática que se caracteriza como recurso para afirmar identidade, dignidade e poder. Ao extrapolar os limites nacionais e ser interpretado sob lógicas locais de outras nações não perde seu aspecto político de origem, porém incorpora novos elementos constituintes de outros países.
Em suma, a produção cultural do hip-hop é em si a capacidade de síntese produzida no encontro entre pessoas, estilos, modos de ver e fazer a vida, sempre permeados por valorização histórica, memorial e social em lutas e resistências. Não é possível dissociar seu percurso da diáspora africana e das formas de atualização e incorporação de novas práticas. Nenhuma cultura desaparece por completo, mas são transformadas e interpretam acontecimentos “externos” segundo as lógicas locais, segundo suas próprias cosmovisões, epistemologias e ontologias. O Hip-Hop, por toda sua complexidade de origem e continuidade, pode incorporar a visão circular de uma totalidade mais crítica e inclusiva, tal qual a proposta quilombola feita por Nego Bispo. Logo, ambas as culturas mencionadas compõem partes de uma totalidade contracolonial. As relações sociais estabelecidas convergem para objetivos comuns: se num mesmo território atuam como confluências, porém, se manipulados para além dos limites marítimos e continentais, atuam como transfluências ao acompanhar o percurso e a emancipação do Atlântico negro, uma contramodernidade afro-americana ao redor de um objetivo compartilhado e uma mesma verdade pragmática.
Maurício Brugnaro Júnior é graduado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp) nas ênfases de Sociologia, Ciência Política, Licenciatura e agora concluinte em Antropologia. É membro do Laboratório do Pensamento Político (PEPOL/Unicamp) e pesquisador associado do Núcleo Práxis de pesquisa, educação popular e pesquisa (USP).
Referências bibliográficas
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira S.A., 2ª edição, 1979.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes; Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
MILLS, Charles Wade. O contrato racial: edição comemorativa de 25 anos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
ROSE, Tricia. Um estilo que ninguém segura: política, estilo e a cidade pós-industrial no hip-hop. In: HERSCHMANN, Micael (org.). Abalando os anos 90: funk e hip-hop: globalização, violência e estilo cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
SANTOS, Jaqueline Lima. Negro, jovem e hip hopper: história, narrativa e identidade em Sorocaba. Marília, dissertação de mestrado em Ciências Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), Faculdade de Filosofia e Ciências de Marília, 2011.
SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI/UnB/INCT/CNPq/MCTI, 2015.
[1] Obviamente há setores e grandes empresas que buscam despolitizar, desterritorializar, despersonalizar e mercadorizar a cultura Hip-Hop, porém o fato é que em sua origem e suas interpretações, produções e reproduções posteriores majoritariamente tiveram aspecto contra-sistêmico popular racializado.