Homossexuais e subversivos
Há 40 anos nascia na França a Frente Homossexual de Ação Revolucionária, que juntava revolução de costumes e transformação social. Se os vínculos com os partidos tradicionais custaram para se estabelecer, essa criação liberou o discurso, testemunhando a irrupção das minorias no interior da extrema-esquerda
(Membros da comunidade gay farncesa em 1979 durante convenção sobre Direitos dos Homossexuais, em Paris)
Na noite de 27 de junho de 1969, policiais invadiram o Stonewall Inn, um bar gay de Nova York frequentado por travestis afro-americanos e porto-riquenhos. Correria, tumulto, prisões: perde-se o controle. Àquela sucederam três noites de rebelião que radicalizaram o movimento homossexual e chegaram à criação da Frente de Liberação Gay (GLF, na sigla em inglês).
Em seu Manifesto gay, obra de referência do radicalismo homossexual norte-americano publicada em 1970, Carl Wittman traça o caminho a seguir: unir a luta dos oprimidos, reunir engajamento revolucionário e emancipação homossexual. “Os heterossexuais (mas também os brancos, anglófonos, homens, capitalistas) percebem as coisas em termos de ordem e comparação”, escreve. “A vem antes de B, B vem depois de A; um é inferior a dois, que é inferior a três; não há o menor lugar para a igualdade. Essa ideia se estende à oposição homem/mulher, superior/inferior, casado/solteiro, heterossexual/homossexual, patrão/assalariado, branco/negro, rico/pobre. Nossas instituições sociais produzem e refletem essa hierarquia.”[1]
A análise seduz o Black Panther Party (BPP, o Partido dos Panteras Negras), tecendo laços. O slogan da GLF “Gay is good” (“Gay é bom”) responde ao lema do BPP “Black is beautiful” (“Negro é bonito”). Em 1970, militantes homossexuais participam da Revolutionary People’s Constitutional Convention (Convenção Constitucional dos Revolucionários), organizada pelo BPP na Filadélfia. “Devemos tentar nos unir (mulheres e homossexuais) numa perspectiva revolucionária. […] Ninguém reconhece o direito de ser livre dos homossexuais. Talvez eles sejam a camada mais oprimida da sociedade”,[2]declarou Huey Newton, um dos fundadores do Panteras, em seu discurso inaugural.
Na esteira da GLF outros grupos radicais fazem tentativas pelo mundo: na Bélgica, o Movimento Homossexual de Ação Revolucionária; na Itália, o Fuori;3]em Quebec, o Grupo Homossexual de Ação Política (GHAP). Após o encontro de Arhus (Dinamarca) em 1972, dezesseis grupos representando dez países juntaram-se para formar uma Internacional Homossexual Revolucionária (IHR).
Na França, o movimento tornou-se conhecido durante a sabotagem de uma emissão da rádio RTL. No dia 10 de março de 1971, Ménie Grégoire, apresentadora renomada da estação, organizou um “debate” ao vivo, na sala Pleyel em Paris, consagrado à “homossexualidade, esse doloroso problema”. Doloroso foi, sobretudo, para os especialistas convidados a discuti-lo (um padre, um psicanalista, os Frères Jacques…), quando militantes lésbicas ligadas ao Movimento de Liberação das Mulheres (MLF) irromperam na sala e obrigaram a estatal a interromper a emissão. Alguns dias depois, nasceu a Frente Homossexual de Ação Revolucionária (FHAR) com uma ambição: propor aos homossexuais e aos trabalhadores uma revolução sexual.
Em busca da extrema-esquerda
Os militantes da FHAR se organizaram em grupos temáticos de trabalho e em comitês de bairro, distribuíram panfletos em frente às boates, conduziram reuniões na Escola de Belas Artes para planejar ações. Alguns de seus membros defenderam uma maior politização da Frente. Numa época em que a Igreja católica ainda desempenhava papel central, mesmo que em declínio, uma aliança com a direita era impensável. Ela rejeita a homossexualidade no campo do vício e da perversão. Para o Partido Socialista era conveniente ter prudência: segundo ele, as preferências sexuais pertencem à vida privada e não merecem tomada de posição política. O Partido Socialista Unificado (PSU), mais à esquerda, mostra-se mais aberto aos homossexuais, mas não compartilha do projeto revolucionário da FHAR. Os olhares se voltaram, então, naturalmente para a extrema-esquerda.
“Façamos uma série de textos para contar o que temos vivenciado”, sugeriu o escritor Guy Hocquenghem, engajado também na organização maoísta Viva a Revolução (VLR). “Eu trabalho num jornal de esquerda que se chama Tout!, são pessoas muito abertas, eu os conheço bem, penso que aceitariam publicá-los”.[4]Em abril de 1971, Tout!, então dirigido por Jean-Paul Sartre, dedica seu 12º número para “la libre disposition de notre corps” (“a liberdade de controlar nossos corpos”). Membros da FHAR redigiram as quatro páginas centrais. Aos trabalhadores, eles explicavam que “a revolução total não é somente ter êxito com uma greve espontânea, sequestrar um patrão que atormenta vocês; é também aceitar a revolução dos costumes sem restrições. Quanto mais difícil parecer, menos vocês compreenderão, mais vocês poderão dizer que estão no bom caminho”. Aos homossexuais, eles recomendavam sair do “gueto mercantil” no qual a sociedade burguesa os encurralou: “Uma boate, o reinado da grana, ali se dança entre homens, ali uns apreciam os outros como mercadoria: a sociedade hetero-policial nos tem de volta”. Ao lado dos textos políticos, outros artigos especulam sobre a provocação e confirmam, sobre o modelo da GLF norte-americana, o orgulho gay (pride gay). “Somos mais de 343 putos, fomos fodidos pelos árabes. Temos orgulho disso e recomeçaremos”,[5]proclama um deles.
No dia 1º de maio de 1971, a FHAR continuou sua tentativa de aliança com o movimento operário. Homossexuais radicais acompanhados de membros do MLF desfilaram ao lado dos sindicatos com uma vasta faixa convocando “Abaixo a ditadura dos normais!”. Vestidos como travestis e com maquiagem exagerada, alguns deles alteraram o código das mobilizações políticas e perturbaram as forças da ordem.
Mas não é todo mundo que compartilha desse gosto pela provocação. Uma investigação judiciária foi aberta contra o Tout! por atentado aos bons costumes; um membro da FHAR que vendia o jornal foi preso em Grenoble. No final de maio, a polícia confiscou 10 mil exemplares disponíveis nas bancas.
Mas os ataques contra a FHAR vêm também da esquerda revolucionária. Na VLR, a ala operária se recusa a distribuir o número do Tout! na frente das fábricas; também não há a menor possibilidade da livraria esquerdista Norman-Bethune exibir a publicação em sua vitrine. Numa carta endereçada ao Tout!, um leitor explica sua apreensão: “O problema não se coloca em termos de normais e anormais, mas em termos de ricos e pobres, e sua luta não é como pederastas, mas como explorados”, analisa. “Consequentemente, dedicar a metade de um jornal à publicação de problemas que não são deles e que somente podem ser resolvidos por uma sociedade socialista bem concebida, tem a ver com traição, enquanto a necessidade de apoiar os operários da Renault (sejam ou não homossexuais) deveria passar para primeiro plano”.[6]
Não é a análise política – a questão homossexual é contingente ou inerente à luta de classes? – e sim os métodos de ação da FHAR que inquietam a Liga Comunista Revolucionária (LCR). “Não temos nenhuma hostilidade por princípio contra a luta que os homossexuais dirigem contra o ostracismo de que os cerca a sociedade burguesa, achamos simplesmente lamentáveis as grotescas exibições da FHAR em suas últimas manifestações. […] Ao se comportar como ‘grandes loucas’, os homossexuais da FHAR revelam até que ponto são vítimas da opressão sexual burguesa”, explica a organização trotskista em seu periódico Rouge, em maio de 1972.
No que se refere ao Partido Comunista Francês (PCF), a recepção é mais hostil. Entrevistado, em maio de 1972, pela revista Le Nouvel Observateur, Pierre Juquin resume a posição oficial: “A cobertura da homossexualidade ou da droga não tem nada a ver com o movimento operário. Ambas representam até mesmo o contrário do movimento operário”.[7]Durante um encontro na Mutualité, Jacques Duclos mostra-se ainda mais virulento quando um militante da FHAR lhe pergunta se o PCF “reviu sua posição sobre as pretensas perversões sexuais”. Agarrando o microfone, o ex-candidato comunista à eleição presidencial se exalta: “Como vocês, pederastas, têm a audácia de nos questionar? Vá se curar. As mulheres francesas são saudáveis; o PCF é saudável; os homens são feitos para amar as mulheres”.[8]Enfim, para o Lutte ouvrière, os textos da FHAR se colocam “à altura dos grafites de banheiros públicos” e refletem o “individualismo pequeno-burguês”.[9]
A fragmentação
Rejeitada pela extrema-esquerda, a FHAR se divide. As Gouines rouges, que criticam a dominação do grupo pelos membros masculinos, fazem o racha. Com risco de serem cortadas do movimento operário, as Gazolines vestidas e maquiadas como “loucas” e travestis acentuam a estratégia da provocação. Seus slogans – “Proletários de todo o país, acariciem-se!”, “Nacionalizemos as fábricas de lantejoulas!” – reivindicam o orgulho homossexual. Hocquenghem, que preconiza uma militância política mais tradicional, se desvia dos “pederastas incompreensíveis” em julho de 1972: “Fomos aprisionados no jogo da vergonha, que transformamos no jogo do orgulho. Isso significa simplesmente dourar as barras de nossa gaiola”,[10]escreve na revista Partisans.
O Grupo 5 da FHAR se refere a ele como internacional situacionista; em maio de 1972, criou o jornal Le Fléau social, e acabou abandonando o campo da luta política. O Grupo 11, que publica L'Antinorm, faz o caminho inverso e persiste na via da aliança com os partidos de extrema-esquerda.
Vítima de rachas internos, a FHAR desapareceu em fevereiro de 1974. Sua existência efêmera abriu uma brecha: três anos depois, o PCF criou uma comissão da homossexualidade no Comitê de Estudos e Pesquisas Marxistas (CERM, na sigla francesa), e a LCR instituiu uma Comissão Nacional da Homossexualidade (CNH). Mas essas iniciativas, sobretudo simbólicas, não apagam a rigidez sobre a questão dos costumes.
O caso Marc Croissant põe novamente o PCF no centro das críticas do movimento homossexual. Em janeiro de 1979, esse membro da comissão da homossexualidade do CERM e funcionário da prefeitura comunista de Ivry reclamou a Roland Leroy do tratamento dado por L'Humanité a uma notícia envolvendo um homossexual menor de idade. O diretor do jornal lhe respondeu cruelmente; Croissant foi expulso de seu grupo e demitido de seu trabalho.
No mesmo ano, três membros da CNH saíram da LCR argumentando que o partido negligencia os problemas dos homossexuais: nenhum texto que fala da opressão e do trabalho dos homossexuais foi discutido durante seu 3º Congresso. “Não se trata de um problema conjuntural relacionado às condições do Congresso”, escreveram eles no Rouge. “Jamais o movimento operário, com exceção da social-democracia de Karl Liebknecht, aceitou lutar ao lado dos homossexuais. No próprio movimento trotskista, nossa situação não é notícia”.[11]A integração política dos militantes homossexuais esbarra nas tradições da extrema-esquerda, que valoriza uma identidade operária ao mesmo tempo masculina, produtivista e heterossexual.
Nos Estados Unidos, no início dos anos 80, outra forma de integração, dessa vez comercial, estava de olho no movimento gay. O jornalista Andrew Kopkind, um “radical” da causa, deplora o abandono do terreno político pelos homossexuais, em prol de um consumismo festivo, de um hedonismo encarnado na onda da música disco, e escreve em 1979: “Em Nova York, os gays podem viver em bairros majoritariamente gays, com uma infraestrutura social e econômica impregnada de aspectos da cultura gay. […] Os gays podem trabalhar no comércio gay para satisfazer uma clientela gay. [… Eles podem] comer em restaurantes gays, fazer seus passeios em avenidas gays, em butiques gays, dançar em bares gays […], ler revistas e romances gays, devorar pizzas e burgers gays. […] Em certo sentido, uma forma de opressão substitui a outra”.[12]
BOX
"Abaixo a Ditadura dos Normais!" Por Guy Hocquenghem
Essa manifestação do dia 1º de maio foi um início de festa para nós, as “pragas sociais”. Nesse cortejo clássico, tinha uma zona liberada: a do MLF e do FHAR.1E nela, ao invés de desfilar “dentro da ordem e da dignidade”, como esses boy-scouts para quem celebrar a Commune, que é a festa tradicional do proletariado revolucionário, deve ser tão solene quanto chato, dançamos, nos beijamos, nos acariciamos e cantamos “os gays estão nas ruas! Viva a revolução total!” e as músicas do MLF dirigidas àqueles que nos olhavam passar com simpatia ou com horror!
Nós nos dirigimos também aos esquerdistas: “os estudantes são umas graças! Somos todos maníacos sexuais! Viva o amor! Burocratas, enrabem-se,é um prazer de louco!” Nós gritamos nossa total recusa ao velho mundo: “abaixo a família!” E, passando na frente de um pelotão da guarda nacional, com as armas nos ombros e os rostos molhados de ódio, protegidos por uma corrente do serviço da ordem esquerdista, nós cantamos: “CRS, abram a bunda! E, esquerdistas, vocês também!” Nosso comportamento brincalhão desagradou gravemente, claro, os respeitáveis esquerdistas. Visivelmente, eles se sentiram atingidos pela nossa grande faixa de pano: “ABAIXO A DITADURA DOS ‘NORMAIS’!” e por nossa determinação muito clara aos seus olhos de não mais nos deixar sufocar, censurar, normalizar. Somente nossa presença nesse desfile e o fato de tomarmos abertamente a palavra pareciam questionar novamente o cenário dos diferentes esquerdismos: servir o povo e fechar a boca, sobretudo calar seu próprio sofrimento, seu próprio desejo. Acabou, para nós, a consciência pesada, a culpa e o masoquismo político… Agora, passamos ao ataque (…).
Para nós, a luta de classes passa também pelo corpo. O que significa que nossa recusa em suportar a ditadura da burguesia está libertando o corpo dessa prisão, que durante 2 mil anos de repressão sexual, de trabalho alienado e de opressão econômica foi sistematicamente fechado. Então, não existe nenhuma possibilidade de separar nossa luta sexual e nosso combate cotidiano pela realização de nossos desejos, de nossa luta anticapitalista, de nossa luta por uma sociedade sem classes, sem mestre, nem escravo. (…)
Cansados de levar vidas de robô (mesmo esquerdistas). Ousar lutar contra a opressão, de onde quer que ela venha. Ousar vencer o robô e o policial que o capitalismo quis fazer de cada um de nós. Reaprender a amar, a gozar, a estar junto, a criar nossa vida, a fazer a revolução por todos os meios.
1 Movimento da Liberação das Mulheres e Frente Homossexual de Ação Revolucionária.
“Relatório contra a normalidade”, Frente Homossexual de Ação Revolucionária, 1971.