Hóspedes do vento
Ergueu-se, abriu os braços, não sabendo como saudá-los senão assim, camisa aberta, arreganhado, ele Neno, ele total, a mangueira repletaChico Lopes
Neno trazia em si coisas que lutava por fixar, por explicar: a casa, a lua cheia no céu pelo lado oriental, uma mangueira escura, pouso dos chupins que nela tinham farreado ao anoitecer. Queria que Mário sentisse, visse o que era um chupim, fechava as mãos em concha, alisava peninhas invisíveis: “Assim, assim, quase roxo, de tão preto. Bandos, a mangueira preteja, trinta, quarenta. Atrevidos, alegrinhos”.
Na memória de Mário, vácuo com esboços atormentados, havia uns vãos ansiosos que as conversas preenchiam. Acendia uma benga e pensava nas estradas que tinham pela frente, os muitos quilômetros de nadas que era preciso empurrar para diante, para o fundo do horizonte, o vento em suas costas.
O sonho de Neno – chegar a L. – passara a interessá-lo, como se fosse seu. Nem por isso queria se comover. Detestava que ele começasse a fungar, ao falar da irmã, quando se sentavam para descansar. “Não quero saber”, grunhia de lado, mordendo o cigarro. Neno, abraçando as pernas cruzadas, fechava os olhos e punha-se a descrevê-la: “Clarinha, olhos verdes, Luísa, Luiía…” Recompunha-a com o que julgava ser fidelidade, mas, a cada vez, a irmã tinha outro nome e Mário sorria incrédulo, meio condoído; lembrava-se que ele já era assim, um tanto alheio, dado a ter desmaios e dizer desvarios, quando o conhecera num chão de obra onde dormiam seis, sete; depois, dava de ombros, jogava uma pedra num dos caminhões que passavam. Não tivera nada que se parecesse a uma família. Neno tinha Luísa ou como a irmã se chamasse, tinha a tia Carmela, a casa de quintal enorme em L. Que nada disso existisse, pouco importava – nutria-o, impelia-o. Quanto a ele, nem delírio.
— A gente era feliz, lá…- dizia Neno, quando os dois se levantavam e retomavam a caminhada. Mário, não querendo ouvir, aproveitava sua energia maior, suas pernas mais longas, para adiantar-se. Deixava-o para trás, para bem mais longe, e ria quando ele tentava alcançá-lo, arfando. Por vezes algum lobo-guará cruzava a estrada, saído de um breu lateral, aturdido pelos carros. Mário saía correndo atrás do animal, gemendo, fazendo uma caricatura do temor e do desespero do outro traduzida em gritinhos afetados e braços se abrindo, espalhafatosos, no ar.
Uma promessa de chupins, mangueira, lua cheia, casa e irmãs, os atraía na linha engolida sucessivamente lá na frente. Escárnio de cetim, um céu azul-negro os cobria. O vento os hospedava. Por vezes, era tão forte que as duas figuras mais voltavam que iam. Era uma caminhada de ímpetos contrariados já no nascedouro.
*
Pernas estropiadas, arriscaram-se a parar perto de um posto, fugindo à claridade e à limpeza, inimigas naturais de suas presenças. Mário supunha que um barracão ali perto estivesse desocupado e pudesse servir para dormir, pneus e caixotes que os escondessem. Famílias entravam e saíam das zonas de luz, iam entupir-se de comida boa naqueles lívidos salões do supermercado-restaurante, pais e filhos olhando feio para ele. Era sempre assim, olhares e narinas registrando-o: o cheiro o delatava. Horrendo, e ele não queria livrar-se dele. Por vezes, se roubava umas moedas, pegava algum ônibus de cidade só para isso – estragar o ar dos passageiros. O que exalava era um protesto silencioso a todos e malograva os trajetos daqueles rostos metidos a superiores: a náusea mal disfarçada o deixava feliz. Não sabiam quanto um corpo de homem podia feder? Pois, ali estava ele, a informação viva.
Conduziu Neno ao barracão: vazio, uns sacos de estopa providenciais. Mais tarde, num sono entrecortado por clarões de carros, sonhou que os dois eram perturbados, examinados numa devassa insondável por lanternas de policiais. Acordou em sobressalto, não havia nada, e Neno acordou também, mas para contar, com os olhos brilhando, uma coisa que ele já ouvira: “Eu e a Luísa pedíamos e a Tia Carmela cantava assim: “En el camino verde/camino verde que va a la hermita/desde que te fuiste/lloran de pena las margaritas”…” “Camino verde”, sucesso de Gregório Barrios nalgum remoto tempo de rádio.
A lembrança animava Neno, ele queria pegar estrada. Precisavam mesmo cair fora – a incerteza do sonho das lanternas inquietava Mário. Constatou que era possível sair do barracão sem serem vistos. Afastaram-se meio correndo, contornando caminhões. Houve tempo para, examinando uns caixotes entreabertos numa carroceria, Mário descobrir que ali havia caixas de leite. Roubou duas, que abriu nos dentes.
Bem mais à frente, quando o posto e seu néon era só uma luzinha entre outras e iam em marcha tranqüila, um carro foi se aproximando, circundou-os, fazendo com que se juntassem instintivamente, trôpegos. Mário viu as figuras lá dentro, quatro ou cinco homens, e segurou o braço de Neno, deixando claro, pelos olhares e os sinais, que teriam que fugir como pudessem, cada um para seu lado. “Não vai embora…”, Neno ia sussurrando, trêmulo, mas já nada adiantava – as portas do carro se abriam para despejar os tipos e Mário saltava para um barranco, escalava-o a unhas, rasgava-se em cerca de arame farpado, abria um talho numa canela, mergulhava num descampado azulado pela lua. Lá atrás, tiros e gritos. Escondeu-se no que lhe pareceu uma moita de espinheiros, quase sem fôlego, capengando, e esperou que o tempo passasse e um silêncio confiável se instalasse. Mais tarde, voltou devagar para o ponto, desceu o barranco e encontrou o corpo. Poucos carros, ninguém. Descobriu, sob uMarco Pollim outdoor de cerveja, o que parecia ser um buraco. Com um tempo de escavação, usando uma daquelas estacas caídas da cerca, dava para aprofundá-lo, afofá-lo.
Escavou, escavou, alheio a buzinas e luzes rápidas, e depois depositou o corpo. Não tinham economizado bala, a camisa um vermelho só, não dava para aproveitá-la; restos fumegantes ao lado revelavam que tinham queimado documentos e quaisquer papéis que ele carregasse. Rasgou um pedaço da calça suja e amarrou na canela, contendo um gemido. O morto estava mais para sorridente. Imaginou que voltava para a casa e a mangueira.
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Ave migratória atraída por semelhante, quase insensivelmente, certo Nico se juntou a ele numa rodovia, à entrada de uma cidadezinha. Perguntando seu nome, ele respondeu: “Neno”. Imediatamente, apalpou-se um pouco, como se estivesse se esvaindo: achou sua voz parecida à do amigo, sentiu seu rosto no feitio do dele. Não falou com o outro por uns bons quilômetros, a cabeça sempre elevada, os cabelos desmanchados por aquela onda de afago e opressão, esse vento que era inútil tentar debelar com os gestos vigorosos da mão, a idéia fixa de divisar mangueiras no horizonte, detectar uma mancha urbana mínima que significasse L.
Nico tentou atrair a sua atenção e acabou por consegui-la com um cigarro, quando pararam na entrada de uma vicinal ladeada por eucaliptos. No saco, trazia muita coisa, orgulhava-se das bengas e latinhas de cerveja recolhidas, grudes indefiníveis, um amuleto de pelos, dois pés de frango, um batom como que mordido, um lápis de sobrancelha. Aceitou, cauteloso, ouvir suas histórias numa outra parada e, mais tarde, quando dormiam, acordou um pouco perturbado, afastou-se; Nico percebeu seus movimentos, abriu os olhos, sorriu, virando-se de bruços, inequívoco. Era “vasilhame”, ele podia servir-se.
Teve que suportar depois, por muitos quilômetros, uns olhares febris, adoradores, e adiantava-se, mas ele andava depressa também, alcançava-o, os lábios tremendo e, quando paravam, ficava odiosamente perto, sondava as oscilações de sua braguilha, o que odiava – buracos como aquele, só pra aliviar o desespero extremo. Livrou-se dele numa outra noite, quando, depois de muito oferecer-se inutilmente, sossegou, dormiu; furtivo, tirou do saco coisinhas que iam lhe ser úteis, pulou para um campo próximo, meteu-se entre laranjeiras trêmulas de vento, fugiu pelo que pareceu uma cercania de fazenda, medroso de grandes cães.
*
Não teria uma idéia de quais, quantos caminhos, a razão dos desvios, o que o guiava – Neno, a letra do bolero de tia Carmela, uma estrela, a pulsação de um chamado? Havia um imperativo, embora nada de seguro houvesse e ele não fosse dado a tomar informações, perguntar, parar nas cidades. Extenuado, sentia-se amaldiçoado por esses restos de energia renitente que, mais que ele mesmo, tinham um pacto com a vida. Por que essa coisa burra em pé e o devaneio com sujas entranhas receptivas, por que fome, por que sede, fezes, urina, renovação do suplício diário pelo acender do sol, por que andanças? Neno, um nome, lhe dava algum resíduo lógico, certo apetite para avançar; bloco escurecido de sensações, seguia. Os abismos do ar, a desmesura.
Ao derivar, numa tarde, por alguns atalhos semi-urbanos, uma pequena cidade lhe pareceu familiar, e, por algumas conversas, supôs que L. era a inicial. Entrou, perdeu-se, dormiu olhado por um gato, acordou numa rua, sobre um extenso banco de madeira, defronte a uma casa. Passou o dia ali, sem ver nada que se parecesse com uma irmã e uma tia. Mas, ao fundo, havia uma mangueira.
Ao entardecer, o barulho, chilreios, chamados, a agitação preta nas folhas, fez com que se erguesse. Tinham chegado, os chupins, dezenas, e outros iam se aproximando, se enfiando entre os verdes, ao fundo um céu entre rosa, cinza e alaranjado com uma sucessão revoante de pontinhos pretos. Ergueu-se, abriu os braços, não sabendo como saudá-los senão assim, camisa aberta, arreganhado, ele Neno, ele total, a mangueira repleta. Partiu rumo à casa, ao quintal, com as mãos em concha, capaz de adivinhá-los, formá-los, mas, no caminho, os joelhos s