Ideologias e cidadania na Rússia
As ideologias de um modo ou outro estiveram e continuam presentes e atuantes no cotidiano do povo moscovita, de maneira isolada ou na compleição de um amálgama, e tendem a contribuir significativamente para o desenvolvimento do cidadão russo
Encontra-se registrado na história que o império russo, no final do século 19, era gigantesco, haja vista que possuía mais de 22 milhões de quilômetros quadrados. Agregava imensas áreas da Europa oriental, do Norte e centro da Ásia. Possuía ainda uma região na América, o Alasca, que neste mesmo século foi vendida para os Estados Unidos. Nos primórdios do século 20 tinha 81 províncias e 20 regiões. Politicamente se apresentava como uma monarquia hereditária dirigida por um imperador autocrático alcunhado de czar pertencente à dinastia Romanov. Nesta mesma época foi derrubado por um movimento revolucionário e substituído pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas que, por sua vez, caminhou rumo ao desaparecimento com o término da Guerra Fria.
A característica marcante desta longeva monarquia hereditária diz respeito à presença do autoritarismo, uma ideologia que acentua a autoridade do governo e centraliza o poder político nas mãos de uma só pessoa ou determinado órgão constituído por um pequeno grupo de indivíduos, e coloca em posição subalterna as instituições representativas. Observe-se que o autoritarismo visa, prioritariamente, instaurar a obediência, a submissão e o conformismo dos governados.
De fato, no decorrer de sua existência a insatisfação entre os estratos sociais moscovitas era elevada, inexistia autonomia política, o povo forçosamente permanecia em estado de grande pobreza, a censura perambulava em todos os setores, não havia tolerância religiosa, nenhum representante popular se encontrava no governo e frequentemente o exército era utilizado para dispersar manifestações contestatórias, inclusive com o uso de tiros de advertência e direto na própria multidão.
As rebeliões ocorridas entre 1905 e 1907 levaram o czar Nicolau II a se comprometer com a garantia das liberdades civis e com a efetivação de um programa de reforma agrária. Ao lado dessas promessas transformou seu governo em monarquia constitucional dividindo seus poderes com a Duma, uma assembleia composta por representantes populares destinada a elaborar uma Constituição para o país. Porém, através do estabelecimento do voto censitário somente os integrantes da elite que o rodeavam adentraram no novo poder legislativo.
Vale ressaltar que neste momento da história emergiu um grupo seguidor da ideologia anarquista. Como se sabe, a mesma defende uma concepção contrária a qualquer forma de organização baseada na hierarquia e a qualquer tipo de dominação, seja ela política, econômica, cultural ou religiosa. Faz a defesa de uma sociedade totalmente livre, sem Estado, incentivadora da cooperação, da ajuda mútua e da autogestão.
É necessário recordar que o anarquismo já havia marcado presença na educação dos camponeses na segunda metade do século 19 por iniciativa de Léon Tolstói. Com efeito, através de seu empenho foram criadas inúmeras escolas na área rural baseada em preceitos dessa ideologia. Seu trabalho inicial voltou-se para o ensino da leitura e da escrita porquanto a quase totalidade dos camponeses era analfabeta. Em suas escolas havia liberdade total para frequentar ou não as aulas e inexistiam castigos. Os professores utilizavam o princípio da flexibilidade para adequar o programa curricular às necessidades dos alunos.
Este conjunto de anarquistas apareceu no cenário político por causa de uma divergência com os adeptos do socialismo e da social democracia. O socialismo é difusor da crença de que o processo histórico pode ser direcionado e que é possível usar determinadas formas de atuação política capazes de colaborar para sua delimitação e aceleração. Divulga também as ideias de liberdade, eliminação das classes sociai, e ausência da propriedade privada. Por sua vez, a doutrina social-democrata defende a conservação da economia de mercado, a implementação dos ideais de igualdade e justiça sociais e a preservação e ampliação das liberdades democráticas.
O movimento revolucionário de 1917, norteado pelas bandeiras socialistas, acabou com a fictícia monarquia constitucional, de cunho autoritário. No período anterior a Stalin e sob a liderança de Lênin foi implantada a Nova Política Econômica visando reestruturar a economia, liquidar as desigualdades sociais e eliminar a fome e a miséria. Para tanto, permitiu a entrada de capital estrangeiro e a criação de empresas privadas no comércio varejista. O comércio atacadista ficou nas mãos do Estado através do estabelecimento de cooperativas. Terras foram entregues aos camponeses que fundaram cooperativas agrícolas.
Na área da educação se fez necessário superar o enorme atraso anterior e preparar a juventude para a nova sociedade emergente. Tal educação baseou-se no preceito da relação com as tarefas da luta de classes e da construção do Estado operário. Suas diretrizes apontavam para a universalização do acesso à escola, a socialização do conhecimento e sua ligação com a luta política. O princípio pedagógico adotado foi a politecnia, isto é, a familiarização com os principais ramos da produção, tanto teórica quanto prática, sua ligação com o trabalho social e a capacitação para os afazeres administrativos.
Entre 1927 a 1953 a liderança passou para as mãos de Stálin que realizou mudanças profundas no país sob a égide da ideologia totalitária. Vale lembrar que a concepção totalitarista é bem diferente porquanto expõe uma crítica radical da situação e apresenta uma proposta também radical de sua transformação. Ela se caracteriza pela ampla penetração na sociedade, pela mobilização de toda a coletividade e pelo término da distinção entre as esferas política e social. Agrega ainda o partido único, a figura do déspota e o recurso do terror.
Sob sua égide aconteceram inúmeras atrocidades. Na década de 1930 ocorreram expurgos, houve liquidação de grupos sociais, eliminação de quadros dirigentes do partido, deportações em massa, campos de concentração e trabalho forçado. Há quem afirme que o totalitarismo vigorou apenas nesta época, haja vista que no lapso pós-stalinista aconteceu um declínio substancial da prática terrorista tanto em termos quantitativos quanto qualitativos. Porém há quem assevere também que o papel do terror precisa ser extremamente abrandado para que seja possível estender seu emprego a todos os regimes comunistas bem como à própria fase ulterior a Stálin. Note-se que o terrorismo constitui o expediente fundamental para a consecução da anuência e do acatamento por parte das pessoas.
Durante os anos deste novo regime político um tipo de educação escolar consoante foi colocado em prática, e ele era bem diferente daquele vigente em período anterior. Stálin introduziu nas escolas, em termos obrigatórios, currículos e livros didáticos padronizados e estabeleceu regras de comportamento escolar cujo cumprimento ou violação era acompanhado pelo Comissariado do Povo Para a Educação, em parceria com o Comitê Central. Caso um aluno não se comportasse de acordo com elas, a responsabilidade recaía nos professores e nos pais que poderiam ser devidamente punidos.
Em fins dos anos 1980 o então presidente Mikhail Gorbachev tomou consciência de que a economia da União Soviética se encontrava muito abalada e que precisava ser reformada. Sua proposta de mudança previu a manutenção de liames entre o socialismo e o liberalismo. Cabe recordar que a ideologia liberal é uma concepção que coloca ênfase no indivíduo o qual é visto como um ser dotado de autonomia plena e que não pode sofrer coação alguma. A valorização dos direitos é um de seus motes, a democracia representativa é preferida em detrimento da participativa e a tripartição do poder constitui a forma da organização do Estado. A propriedade privada e a autonomia do mercado são imprescindíveis na economia.
No começo dos anos 1990 iniciou-se o processo reformista que contou com a aprovação de uma nova Constituição fundadora do multipartidarismo e do parlamento. Em decorrência apareceram o Partido Liberal e o Opção Democrática da Rússia. Na esfera econômica emergiram privatizações baseadas na emissão de certificados de privatização e a venda de empresas públicas a um reduzido grupo de apoiadores do governo. No final destes anos manifestou-se uma crise da dívida pública, vista internamente como resultado do processo reformista. Seguiu-se então uma atitude de descrença quanto à efetividade da ideologia liberal.
Vladimir Putin assumiu o comando do país em 7 de maio de 2000. Desde esta data até os dias que correm, Putin tem exercido o poder como presidente e primeiro ministro. É um governante de direita que adota uma concepção reacionária negadora dos resultantes da modernidade constituintes do mundo ocidental. Sua popularidade tem permanecido alta junto ao povo em razão do progresso econômico provocado pela exportação de gás e petróleo. Como dirigente de uma grande potência mundial ele almeja conter a influência e os avanços dos Estados Unidos e de seus aliados europeus.
Em seu governo foram tomadas providências para garantir o apoio do Parlamento às suas iniciativas, diminuir a autonomia das regiões provinciais e centralizar o poder em sua pessoa. Ele perseguiu os oligarcas críticos de sua administração, fez campanhas pelo controle da imprensa, praticou constrangimentos a jornalistas, estatizou empresas televisivas, atacou organizações defensoras dos direitos civis e estabeleceu restrições aos protestos políticos.
Uma das suas ações que chama a atenção refere-se ao apoio concedido ao desenvolvimento do tradicional afeto patriótico que vem desde a época imperial. Como muitos sabem o patriotismo é uma expressão de amor pelo país de origem, juntamente com uma sensação de unidade entre aqueles que o compartilham. Ele agrega o sentimento de orgulho, devoção e apego a uma pátria, bem como exibe uma forte tendência fraterna a outros cidadãos principalmente se houver o envolvimento de fatores ligados à etnia, cultura, crenças religiosas ou história.
A legislação orientadora desse apoio aponta a finalidade de respeito à memória dos defensores da pátria e às conquistas dos heróis da pátria. Segundo um dos atuais relatórios do International Crisis Group, nos últimos anos o Kremlin seguiu uma política de mobilização patriótica, encorajando o orgulho nacional, comemorando vitórias militares passadas e promovendo uma visão da Rússia como uma potência global renascida, a qual tem conexão com a política externa recentemente assertiva do país. Um de seus objetivos é fortalecer o governo e angariar apoio interno a intervenções armadas no exterior, cujo exemplo atual é a guerra contra a Ucrânia.
De acordo com relatório citado acima, os esforços determinados do governo russo para promover o sentimento de patriotismo, juntamente com a escala e a ambição desses esforços, são dignos de nota. O Estado orientou escolas, grupos da sociedade civil e a Igreja Ortodoxa, entre outros, em seus esforços para inculcar valores nacionais. O financiamento federal está disponível para uma série de grupos, incluindo organizações de veteranos, para ajudar o Estado a avançar em seu projeto de orgulho nacional. Embora os sucessivos movimentos de mobilização patriótica nos últimos anos tenham compartilhado amplamente as mesmas aspirações, seu foco evoluiu, com ênfase crescente nas atividades militares e orgulho nas forças armadas da Rússia. Vale destacar a existência do Yunarmiya, ou Exército Jovem existente desde a época da União Soviética o qual, por iniciativa do Ministério da Defesa, realiza treinamentos sobre montagem de rifles, tiro ao alvo, salto de paraquedas e emprego de táticas militares para jovens com idade entre 14 e 18 anos.
Pelo exposto é viável dizer que as ideologias aqui apresentadas, as quais de um modo ou outro estiveram e continuam presentes e atuantes no cotidiano do povo moscovita, de maneira isolada ou na compleição de um amálgama, tendem a contribuir significativamente para o desenvolvimento do cidadão russo. Isto tem ocorrido por meio da educação formal ou escolar, através da educação informal ou extra escolar ou durante o processo de socialização secundária via atividades de internalização.
Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes).