Impasse pela força do voto
No plebiscito de 10 de agosto, o Movimento ao Socialismo registrou uma ampla vitória entre o eleitorado. Porém, os governadores de oposição também saíram fortalecidos e continuam trabalhando pelo fracasso do presidente. Os indígenas já deram o alerta: “Se retirarem Evo Morales haverá uma guerra”
Primeiro, o altiplano. Esse imenso planalto espremido contra o céu, a 4 mil metros de altitude. À noite, a temperatura chega a 10 graus negativos. É impossível permanecer aquecido nos barracos de lona. Não há lenha. Somente o vento, que sopra furioso. As aldeias são quinhões de terra cultivados.
Enfiados de forma desajeitada em grossos pulôveres, os índios percorrem longas distâncias a pé, vergando-se sob cargas enormes. Tristes, silenciosos e aniquilados, eles sofreram com a lei dos mais fortes. Mas, de vez em quando, formidáveis explosões sociais os levam de volta à memória dos poderosos.
A aldeia se chama Condor Iquiña. Ela não existe no mapa, está esquecida. Pela estrada passam apenas dois ônibus por semana. Aqui, os aymarás sobrevivem graças ao cultivo da batata, à criação de lhamas e de alpacas. Quando não chove, o rebanho morre. E os humanos fogem. “As pessoas acabam se exilando em regiões quentes”, constata, desiludida, Porfiria Karka, dirigente da comunidade. “Este lugar está se tornando um deserto. Muitos jovens se mudaram para a Espanha, para o Brasil, para a Argentina e para El Alto1. Não sobrou ninguém além dos velhos.”
Graças ao presidente Evo Morales a eletricidade foi instalada há um ano. “Nuestro hermano”, como diz Porfiria. Eles não entendem lá muita coisa sobre a questão política. Bastante compressível, já que esses aymarás não dispõem de jornais e captam somente algumas ondas de rádios que consideram “muito manipuladas”.Quando “Evo” chegou ao poder se sentiram orgulhosos. Enfim, um indígena. Eleito presidente em 2005, ele contou com grande apoio dos povos originários, que hoje representam 62% da população. Foi uma vitória impressionante: 53,74%. Um chefe de Estado nunca havia obtido mais do que 35% dos votos nessa nação andina.
“A Bolívia está mudando. Evo mantém suas promessas”, dizem os cartazes espalhados por integrantes do governo. Quase três anos depois do pleito alguns sucessos são incontestáveis. Mas às vezes é difícil percebê-los diante de todos os esforços dos adversários para minimizá-los.
A “nacionalização” dos hidrocarbonetos – na verdade, uma renegociação dos contratos multinacionais – permitiu o aumento das rendas estatais. Graças a esse maná, os programas sociais mais urgentes ganharam vida, tais como a renta dignidad, que doa 200 bolivianos (em torno de R$ 48)2 por mês a todo cidadão com mais de 60 anos. O salário mínimo também melhorou: ainda que insuficiente, deu um salto para 575 bolivianos (R$ 130). Enlouquecendo os grandes proprietários do leste do país, terras são distribuídas aos camponeses3 e um Banco do Desenvolvimento deverá permitir acesso ao crédito para micro e pequenos empreendedores.
Sem dúvida, essas ações já seriam suficientes para a oposição denunciar a política de Morales como “populista”. Junte-se a elas a alfabetização de centenas de milhares de pessoas graças ao método cubano Yo sí puedo (“Sim, eu posso”) e os 2 mil projetos em áreas como saneamento básico, pavimentação, eletrificação e instalações esportivas, e o caldo transborda. Repleta de tensões étnicas, polarização política e confrontos regionais, a situação no país se degrada a cada dia.
Alteração nos fundamentos da sociedade
O fato é que desde a chegada de Morales à frente do Estado seus opositores fizeram de tudo para que o “índio” fracassasse. Em 2007 o Senado bloqueou mais de cem leis enviadas pelo governo central. E foi precisamente negociando com esses parlamentares em 2006 que o presidente cometeu seu primeiro erro: o MAS (Movimento ao Socialismo) de Morales entrou em acordo com o Poder Democrático e Social (Podemos), partido do ex-presidente de direita Jorge Quiroga, quando da convocação da Assembléia Constituinte, antiga reivindicação indígena que pretendia alterar os fundamentos da sociedade boliviana.
A mistura de ingenuidade democrática e falta de experiência teve conseqüências sombrias: agindo como instância pré-constituinte, a Assembléia Nacional decidiu que a nova Constituição Política do Estado (CPE) deveria ser votada “por uma maioria de dois terços” antes de ser submetida ao referendo popular.
Em nome de um hipotético consenso que garantiria o processo, Morales aceitou, de forma imprudente, a proposta. Realizada a eleição para confirmar os representantes da CPE, o governo saiu amplamente vitorioso e não percebeu, de imediato, que com 130 dos 255 eleitos jamais alcançaria os dois terços. Estava armado o circo para que a oposição boicotasse sistematicamente a Constituinte.
Designada para elaborar a nova lei fundamental em um ano, a Assembléia levou oito meses apenas para redigir seu regulamento interno. Com o fim do prazo que lhe foi atribuído para tanto, estava previsto que seu mandato fosse prolongado. Após novo acordo entre MAS e Podemos, a Assembléia Nacional aceitou a prorrogação e estipulou que a CPE poderia ser aprovada “por uma maioria simples”.
Refúgio para aprovar a constituição
O presidente da Academia Boliviana de Estudos Constitucionais, o advogado Jorge Antonio Adum, foi um dos primeiros a levantar a voz contra a decisão: “O Legislativo não pode reaparecer e, com a Constituinte ainda em atividade, modificar as regras do jogo. É inconstitucional, não está em suas atribuições”. O argumento tinha alguma pertinência. Não obstante, as novas regras foram editadas como lei da República, com a participação da oposição.
Em Sucre, sede da Constituinte, a nova rodada suscitou muito barulho e diversas manifestações. Em 23 de novembro de 2007, impedidos pelos comitês cívicos4 de continuar seu trabalho, os eleitos pertencentes à maioria se refugiaram em um liceu militar. Do lado de fora, disputas entre as forças da ordem e opositores deixaram três mortos. Finalmente em 9 de dezembro, em Oruro, o projeto de Constituição foi votado por dois terços dos presentes – os militantes do MAS e seus aliados. Dentro das regras, segundo eles. Com um detalhe apenas: o desrespeito aos prazos de convocação provocou a ausência da oposição.
Ao escolher este caminho, o MAS permitiu que a direita boliviana tremulasse a bandeira da democracia, apesar de seus antecedentes militaristas, autoritários e ditatoriais. É o que ocorre também com a questão da “autonomia” das províncias, em que o governo parece dar a chibata para que o açoitem.
A primeira medida concreta sobre esse tema data de 2 de julho de 2006, quando, por iniciativa do governo boliviano, realizou-se um referendo sobre a autonomia dos departamentos. Num país que sofreu historicamente uma centralização excessiva, o acontecimento foi saudado pelo próprio presidente, que acentuou a necessidade da autonomia indígena. Mas, preocupado com o que aconteceria aos departamentos, poucos dias antes do pleito Morales decidiu fazer uma vigorosa campanha pelo “não”. E tinha boas razões para isso: os quatro atuais governadores de oposição da Media Luna5 (Santa Cruz, Tarija, Beni, Pando) haviam manifestado intenções separatistas.
Assim, seguindo a orientação de Morales, o “não” obteve ampla maioria no conjunto do país. Por outro lado, em nível local, Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija votaram majoritariamente pelo “sim”. E reclamaram a aplicação imediata dos resultados, recusada em seguida pelo presidente. A situação tornava-se cada vez mais difícil para o governo central. Afinal, o próprio Evo assinou a lei 3.365 para a convocação do referendo, que estipulava, em seu artigo 2º, que “aqueles departamentos que, por meio do presente referendo, o aprovarem por maioria simples, terão acesso ao regime das autonomias departamentais imediatamente após a promulgação da nova Constituição [Política] do Estado”. A não-ratificação do pleito foi motivo suficiente para a oposição levantar um novo estandarte, o da descentralização.
O terceiro front de luta aberto pelos opositores foi o da “capitalidad”. Historicamente capital constitucional do país, Sucre perdeu esse posto após a guerra federal de 1890, quando os poderes Executivo e Legislativo foram transferidos para La Paz, restando-lhe apenas o Judiciário. De repente, mais de cem anos depois, a cidade resolveu reclamar o retorno de seu status.
Aninhada num vale contornado por montanhas, brancas como os edifícios de seu centro colonial, Sucre se destaca em meio às zonas rurais do entorno do departamento de Chuquisaca. Lá, a maioria da população é indígena. Seus habitantes são os mais pobres da Bolívia. Clima seco, declives escarpados, terras inférteis. Uma agricultura reduzida a sua mais simples expressão. E um voto em massa a favor de “Evo”.
Como em qualquer outra cidade boliviana, existem em Sucre traços de discriminação com o “índio”. Não era nada extraordinário, até que o novo chefe de Estado instalou no local a Assembléia Constituinte. Desde sua eleição para essa Assembléia, Urquizo Cullar, dirigente da Federação Única dos Povos Originários de Chuquisaca, se viu na difícil situação de persona non grata.Sua foto e as de seus companheiros indígenas eleitos pelo MAS foram expostas em muros, lojas e restaurantes, acompanhadas das inscrições “Traidores” e “Inimigos do Departamento”. “Representar as zonas rurais na Assembléia era um delito, assim como ser camponês e quéchua”, analisa Cullar. Em 10 de abril de 2008, ele foi agredido e seriamente ferido. “Enquanto eles me batiam, eu os ouvia: ‘É preciso acabar com o índio! Vamos cortar-lhe a língua, arrancar seus olhos da cabeça’. Apresentei uma queixa formal, mas, infelizmente, ela se perdeu na capital do poder judiciário!”.
Mudança de lado
Esse foi apenas um dos lamentáveis episódios de violência. Agora, nenhuma bandeira do MAS ondula sobre as casas de Sucre. Do contrário, seriam queimadas.
Em 22 de julho, os magistrados municipais elegeram para a prefeitura uma indígena de pollera6, Savina Cuellar. Antiga militante do MAS, ela aprendeu a ler graças ao programa cubano “Yo sí puedo”. Ícone da oposição, Cuellar reagrupou a direita com seu discurso político que se contenta em propagar sua raiz indígena. Ela ganhou a prefeitura graças à zona urbana que tem 71% da população, enquanto seus “irmãos indígenas” das zonas rurais votaram em massa contra a sua candidatura.
O exemplo se repete em muitas outras cidades em que a polarização entre o campo e a cidade já atingiu um patamar extremo. Uma delas é Santa Cruz, a mais povoada e próspera da Bolívia. Lá, o “sim” à autonomia triunfou em 2 de julho de 2006, mas não foi colocado em prática. Insistindo em seu posicionamento, o governo de Santa Cruz organizou, em 4 de maio deste ano, um referendo ilegal que se mostrou amplamente favorável à aprovação de seu estatuto de autonomia – apesar de contabilizar 38% de abstenções.
Os departamentos de Beni, Pando e Tarija, onde se concentram as grandes reservas de gás, seguiram seus passos. Caso implementados, esses “estatutos”atribuiriam ao Departamento as competências sobre a telefonia (fixa e móvel) e as telecomunicações; as estradas e as ferrovias; a definição das políticas, planos e programas de educação; a eletrificação urbana e rural; a política energética; os regimes do trabalho, de seguridade social e de saúde; a administração da Justiça; e a designação dos responsáveis pelas instituições e organismos do Estado que atuariam no Departamento7. Em matéria de imprensa, previa-se a proibição da destinação “discriminatória” da publicidade estatal e a concessão “discricionária” pelo poder central de freqüências de rádio e de televisão. Ao mesmo tempo, “o Executivo departamental poderia criar meios de comunicação de massa”!
Apoiadora das ditaduras até a década de 1970, e da democracia neoliberal a partir dos anos 1980, a burguesia de Santa Cruz sempre participou do governo central até que o “índio” chegou ao poder. “Vendo então seus interesses em perigo, esses grupos de poderosos inventaram a tese da autonomia. E toda uma campanha midiática lhes permitiu defender suas prebendas por meio de um novo mito no qual eles mesmos não crêem”, diz Jorge Paz, dirigente de um bairro periférico da capital cruceña. Sua campanha é pela recuperação de “seu IDH confiscado” – da ordem de 30% das receitas, destinadas ao financiamento da renta dignidad – esquecendo, de modo calculado, que a nacionalização dos hidrocarbonetos compensou essa perda ao aumentar o preço de venda das riquezas naturais do país e distribuiu uma parte maior do que foi arrecadado aos municípios.
Foi analisando esse conturbado quadro político dos últimos três anos que Evo Morales decidiu convocar um referendo revogatório nacional, ao qual deveriam se submeter não apenas o presidente e o vice-presidente, mas também os oito governadores. Era mais uma tentativa de definir pelo voto popular a vontade do país. Havia duas possibilidades: a ratificação do governo indígena ou sua ruína. Evocando a provável derrota de Evo Morales no departamento de Santa Cruz, o governador Rubén Costas ameaçava: “Nós não vamos dizer que ele não poderá mais vir aqui. Pode vir, mas a passeio, porque aqui ele não governará mais”8.
Muitos reprovam Morales por gastar sua energia tentando melhorar a sorte dos pobres da Bolívia. E como esse é um país majoritariamente de índios, o grosso dos programas sociais se dirige prioritariamente a eles. Populismo indigenista? Talvez, em certa medida. Mas também uma consideração das relações de força. O elemento humano é sempre difícil de controlar, particularmente quando se trata de uma massa indígena historicamente marginalizada e, por essa razão, legitimamente teimosa e obstinada. Prova disso é o vigoroso movimento lançado pelos mineiros e pelos professores da Confederação Operária da Bolívia (COB), que mesmo neste momento delicado pressionou o governo a anunciar, em 9 de agosto, a substituição pelo Estado das duas empresas privadas que administravam o sistema previdenciário – BBVA e Grupo Zurique.
No dia seguinte a essa decisão, Evo Morales foi amplamente confirmado em sua função, com 67% dos votos. O mesmo ocorreu com os governadores de Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija9.
Presidente do Conselho Nacional Democrático (Conalde), que reúne as regiões autonomistas, Rubén Costas anunciou desde já que continuará a impulsionar a autonomia e “a resistir às reformas promovidas por Evo Morales, como a nacionalização dos recursos naturais e a redistribuição da terra”10.
Nos dias anteriores ao referendo, se multiplicaram “greves de fome” dos comitês cívicos nas regiões conservadoras, além de distúrbios, ações violentas e um chamado, feito pelo prefeito de Santa Cruz, Percy Fernandez, à derrubada do chefe de Estado pelas forças armadas.
Em Campero, no altiplano, uma reunião acabava de acontecer quando encontramos Geraldo Condori, a autoridade aymará da comunidade. “Aqui, existem masistas, não-masistas e independentes. Decidimos dar apoio a nosso companheiro Evo. Lutaremos por ele.” Não muito longe dali, em Condor Iquiña, a doce Porfiria Karka nos olha bem nos olhos, com o queixo apoiado sobre as mãos: “Não vamos deixar que nos esfolem. Se eles retirarem Evo Morales, haverá uma guerra. E vai ser muito séria”.
*Maurice Lemoine é jornalista e autor de “Cinq Cubains à Miami (Cinco cubanos em Miami)”, Dom Quichotte, Paris , 2010.