Ímpeto reformista do G-20
Para além das medidas macroeconômicas tomadas para conter a depressão, deveríamos também contar com tentativas de reorxdenações estruturais na esfera financeira. É essa a principal aposta do G20 em sua reunião, em Londres, no início de abril
Os efeitos devastadores da crise parecem ter chegado ao limite de suscitar algumas reordenações nas regulações econômicas e financeiras do capitalismo globalizado. Convém até louvar, como John Maynard Keynes, essa capacidade, que alguns chamam polidamente de pragmatismo, de conduzir “homens de Estado e gestores a limitar as consequências mais graves dos erros do ensino que os formou, a tomar iniciativas quase em contradição com seus princípios e a não serem, na prática, nem ortodoxos nem heréticos”1.
Façamos uma avaliação: em apenas três ou quatro meses de crise, muitos se apressaram em votar novos e rigorosos orçamentos2, apertar a política monetária para evitar os “efeitos inflacionários de segundo turno”3 e completar “a integração financeira europeia”4, passando também a dar injeções colossais de liquidez no sistema bancário. Foram os mesmos que baixaram as taxas de juros a níveis historicamente nunca vistos, criaram estruturas públicas de compra dos ativos tóxicos, forneceram garantias estatais a empréstimos interbancários e assumiram “falsas” participações nos bancos, às vezes nacionalizando-os – este último movimento encabeçado por Londres e Washington. Além disso, lançaram programas de recuperação que ultrapassam todos os limites imagináveis (chegando a cavar um déficit orçamentário de 10% no Reino Unido e nos Estados Unidos, apenas para o ano de 2009, e fazendo voar pelos ares o pacto de estabilidade e crescimento europeu), socorreram diretamente a indústria automobilística, dando recomendações, nem sempre seguidas de resultados, para moderar as inversões de dividendos, moralizar os estoques opcionais, elevar ao teto as remunerações.
Em suma, é um manual da heresia econômica. É verdade que já há vozes se levantando para advertir que será preciso voltar rapidamente à ortodoxia orçamentária – o que acaba de ser feito, aliás, sob a direção da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional (FMI), pela Hungria e a Letônia, e em breve o será pela Romênia – ou prevenir qualquer tentação protecionista.5 Mas por enquanto ainda podemos presumir que “somos todos keynesianos”6.
Claro, se é verdade que “cozinha é muito mais que receitas”, a regulação do capitalismo também é bem mais complexa que essa “adoção súbita” do keynesianismo. Lançar um tapete de euros e dólares às brasas, em um mundo configurado por 30 anos de reformas neoliberais, é como obrigar um asno empacado a andar. A política industrial, o papel dos sindicatos, o imposto progressivo sobre a renda, a oferta igualitária de serviços públicos, a gestão do território, a política de comércio, as regras sociais e ambientais do comércio exterior… essas estruturas hoje fazem falta para receber dignamente a herança keynesiana. Podemos temer que invocando mais uma vez, no pânico, o “retorno de Keynes”, sem nos interrogarmos sobre a configuração das instituições capazes de lhe dar cobertura, estamos preparando sua próxima mortalha.
Para além das medidas macroeconômicas tomadas para conter a depressão, deveríamos também contar com tentativas de reordenações estruturais na esfera financeira. É essa a principal aposta do G207 em sua reunião, em Londres, no início de abril. Em primeiro lugar, não podemos nos fazer de rogados ao avaliar o ímpeto reformador dos principais atores dessa cúpula: todo o espectro de mazelas de que as finanças aparentam ser capazes parecem estar cobertos. Promete-se atacar os paraísos fiscais, ambiciona-se controlar melhor os hedge funds, deseja-se voltar às normas contábeis (o registro dos ativos no justo valor, fair value) que precipitaram a falência dos bancos, repensar os cálculos prudenciais dos estabelecimentos financeiros (para que não agravem as tendências cíclicas), remodelar as remunerações dos atores dos mercados (para que assumam os “bons” riscos), prepara-se um melhor enquadramento do trabalho das agências de notação (para evitar os conflitos de interesse), deseja-se reforçar a capacidade de empréstimo do FMI, fala-se até em “retomar os mecanismos de titularização sobre bases sadias”8. Dezoito meses antes, ninguém se daria ao trabalho de ler um folheto altermundialista com essa mesma pauta.
No entanto, muitas razões clamam que não se dê crédito fácil demais a esse ímpeto reformista. A primeira delas é que os atores não estão necessariamente de acordo a respeito das frentes prioritárias, nem da profundidade dos remédios a ser considerados, nem dos dispositivos a ser adotados. A segunda é que essa fase da gestão institucional da crise não deixou realmente de ser inspirada pelo liberalismo. A abordagem continua sendo a da “gestão dos riscos”. As medidas tomadas estão dentro desse registro, no qual tudo é apenas questão de aumento da transparência, controle dos sistemas de incitação, regulação prudencial, supervisão, reforço da governança e da administração do risco. Ou seja, toda uma engenharia de ordem tecnopolítica visando alcançar as derivas induzidas por uma doutrina que continua intacta: aquela que cria os riscos em nome da liberdade de empreender e tenta depois domesticar a besta, quando já foi ultrapassada por sua criatura.
Digamos que as reordenações que sairão desses pequenos trabalhos de manutenção nas finanças globais assemelhar-se-ão, ponto por ponto, àquelas que preparam os pais – considerando uma educação liberal – diante dos riscos inconsequentes que assumem seus adolescentes. Se sua prole colocou na cabeça que toda manhã irá atravessar de uma torre a outra da Catedral de Notre Dame equilibrando-se em uma corda bamba, que pelo menos sejam tomadas as seguintes medidas: peça-lhe para o manter informado da hora em que irá começar (transparência da informação); para lhe telefonar quando tiver terminado, contando como foi (prestação de contas); para se agasalhar antes da travessia e para não fazê-la mais durante a noite (melhor administração do risco); para recusar as câmeras de televisão (remodelagem das incitações para uma tomada de risco razoável); para não se balançar, querendo impressionar os passantes (evitar os movimentos procíclicos); para aceitar que um amigo de confiança faça o papel de observador (supervisão); e para não mais levar junto sua irmãzinha (controle dos riscos sistêmicos). Assim, tudo correrá bem.
Se já estamos bastante advertidos das faculdades de geração de mazelas das finanças contemporâneas, uma dúvida permanece quanto a suas possibilidades de se tornar útil. As respostas que pretendem “remodelar as finanças globais e o sistema econômico com vistas a restaurar a confiança”9 parecem preceder a reflexão, em nível político, sobre a própria utilidade dessas atividades, e sobre o interesse em “reforçá-las” ou “aperfeiçoá-las”. Em uma economia de empresa privada, quais são as funções essenciais das finanças? Os economistas geralmente reconhecem os seguintes papéis: garantir a liquidez da poupança, financiar o investimento produtivo, permitir os avanços dos salários e dos consumos intermediários, facilitar as recomposições industriais e cobrir certos riscos ligados a compromissos de prazo, como taxas de juros e câmbio.
Isso deveria constituir a base de nossas reflexões: quais são os melhores tipos de instituições para cumprir essas funções. E, principalmente, de que parte do atual castelo de cartas das finanças realmente precisamos para que esses papéis sejam cumpridos?
Empreender esse pequeno inquérito intelectual pode nos levar longe: trata-se de colocar em xeque todo um setor de atividade, que emprega centenas de milhares de pessoas no mundo, captando uma fração desproporcional da renda global. Caso consigamos fazê-lo, considerando que o cenário mundial mudou, seria até possível que seus advogados não conseguissem continuar gozando do habitual privilégio da inversão do ônus da prova, que lhe conferia sua capacidade de gerar mazelas.
*Laurent Cordonnier é economista e mestre de conferências da Universidade Lille-I. Autor de Pas de pitié pour les gueux (Nenhuma piedade para os miseráveis), Paris, Raisons d’Agir, 2000 e de L’Economie des Toambapiks, Raisons d’Agir, Paris, 2010.